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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Teoria política

O extremismo está mais para uma ortodoxia do que para um desvio

extremismo
Crânios de uma vala comum de vítimas do Khmer Vermelho, partido liderado pelo ditador Pol Pot no Camboja até 1979. (Foto: Bigstock)

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Do alto de suas convicções, o que você faria se acordasse ditador do Brasil, com direito a banho de sangue e tudo? Eu, em um devaneio ditatorial, botaria veganos na cadeia e criminalizaria a presença de psicólogas em departamentos de RH. Quem considera que a vida humana vale tanto quanto a de um porco não poderia viver em sociedade. E, como creio que 99,9% das psicólogas são completamente desequilibradas, elas seriam mantidas longe de RHs a fim de que o país prosperasse.

Que mais? Bom, se eu tivesse acordado ditadora, isso implica que os atuais mandatários do país – o Supremo (Tribunal Federal) e demais “operadores do direito” – já não mandariam mais nada. Os ongueiros talvez fugissem para Miami por conta própria. Sem financiamento, acabaria a ideologia de gênero. Deixe-me pensar mais no que eu faria com poder para promover banho de sangue. Acho que é só isso mesmo: nada de veganos, nada de psicólogas de RH e, pelo sim, pelo não, nada de ideólogos de gênero (os seguidores de John Money), nem de segregacionistas raciais. Que mais? Que mais? Ah, não poderia esquecer: fechar todas as faculdades de educação freireanas. No mais, para começar a recuperar a família brasileira, eu acabaria com a compulsoriedade de exames de DNA e do arbítrio estatal sobre as pensões de alimentos. Acabaria também com o ECA e mandaria uma comissão de notáveis fazer uma nova legislação penal. Enquanto não ficasse pronta, voltava a valer o direito penal anterior à Constituinte.

Pronto. Isso é o que eu faria se acordasse com poderes supremos.

Fiz esse exercício por causa da choradeira sobre extremismo, opostos, teoria da ferradura etc. A atual onda de criminalização da oposição ao progressismo se vale da noção de “extremismo”. Este termo só faz sentido se pensarmos a política como um contínuo com pontas ou extremidades. Se você estiver muito para a ponta da direita, é um extremista de direita. Se estiver muito para a ponta da esquerda, é um extremista de esquerda. A tarefa do bom democrata seria parecida com a do cabeleireiro: ficaria aparando as pontas. Mas até onde a ponta deve ser aceitável? Isso, só o bom democrata sabe. Ele fica planificando o posicionamento político dos outros e, ao cabo, sua guerra contra as pontas bem pode levar a uma máquina zero. E como o cabelo e as posições políticas teimam em nascer, teria de ser uma máquina zero passada todos os dias. Ao cabo, ser um democrata equivaleria a ficar mandando nos outros, xingando todo mundo de extremista e mandando botar na cadeia.

A política é mesmo um contínuo?

Essa visão é muito questionável. Para começo de conversa, é preciso aceitar que existe algum critério objetivo intrínseco às opiniões políticas que as faça esquerdistas ou direitistas. O critério objetivo mais bem aceito é o de Bobbio, que considera que a esquerda se define pela busca da igualdade. Se se norteia pela igualdade, é esquerda; se não, é direita. Esse critério, objetivo e binário, tem a vantagem de não canonizar a esquerda nem demonizar a direita. Pol Pot era de esquerda porque se pautava pela igualdade; Hitler é de direita porque não se pautava pela igualdade. Roberto Campos não se pautava pela igualdade, então era de direita. Ambientalistas seriam de direita, já que seu norte está no meio ambiente.

Minha objeção a essas sistematizações é que não há nenhum critério objetivo intrínseco às categorias de esquerda e direita. Creio que o máximo de objetividade que se possa alcançar, nesse quesito, é o mesmo da antropologia cultural. Dá para um antropólogo ir a uma tribo e dizer objetivamente quais são seus costumes e crenças. Do mesmo jeito, dá para pegar as classificações políticas – que são variáveis entre países e períodos – e descrever como são usadas. Karl Marx é o ícone da esquerda? Pois se ele ressuscitasse hoje na Califórnia seria classificado como extrema-direita e supremacista branco, já que de fato acreditava nessa superioridade e, ainda por cima, não desconstruía os papéis de gênero. As classificações de direita e esquerda variam demais conforme a cultura; não há nenhum critério intrínseco.

Situação bem diferente é a de uma doutrina política. Ninguém sentou e escreveu uma obra para lançar a ideia de Esquerda, mas muitos propuseram o socialismo. Por mais que essa escola de pensamento tenha variado, existe um critério objetivo para dizer se alguém é socialista ou não. Se acredita na planificação da distribuição da riqueza, é um socialista. Monarquia, idem: se alguém acredita que o chefe de Estado de um país deve ser um Rei ou Imperador hereditário, é um monarquista. Ao conhecermos uma teoria política ou social, temos o critério objetivo para julgar o pertencimento político de alguém. “Esquerda” não é uma teoria política. “Direita” não é uma teoria política. Progressismo é um conjunto de teorias políticas e sociais que já foi, até meados do passado, considerado de direita. Hoje, é de esquerda.

Se teorias políticas são entidades distintas, não creio que faça sentido enfileirá-las como se estivessem numa prateleira e pretender que haja alguma cientificidade nisso.

A escala F

No entanto, como já vimos, existe o projeto de criminalizar a oposição popular ao progressismo, com a elite tratando o povo como se ele fosse o povo alemão derrotado em 45. Presume-se que todos sejam suscetíveis ao fascismo. Nisso, o fascismo passa de uma posição política particular (surgida na Itália, na primeira metade do século XX) a característica inata que requer repressão. O palpiteiro Theodor Adorno criou a escala F a fim de medir a escala de fascismo que uma pessoa poderia afetar. É uma medida que se pretende científica e psicológica. Na prática, a disposição conservadora é tratada como doença mental. Em breve deve sair neste jornal um texto do colega Eli Vieira contando que só por agora a psicologia social passou a admitir a possibilidade de haver uma personalidade autoritária de esquerda. O normal da “ciência” é patologizar alguma coisa lá que eles chamam de direita, e que pode se resumir, ao meu ver, como mera oposição ao progressismo. De modo que Marx, hoje, seria de direita, porque não era progressista e ainda por cima era bem careta.

A possibilidade de deslizar

Somando-se a crença de que as ideologias são como pontos num contínuo (ou num “espectro”, como diz o pessoal da ideologia de gênero) à crença de que o fascismo brota espontaneamente como um tumor da alma, faz sentido o temor de que deslizemos. Estamos aqui, de boa, achando que homem é homem e mulher é mulher, quando de repente eis que deslizamos para a extrema-direita. Demos um pulinho na esteira rolante e, ao retornarmos ao mesmo ponto, a reta já se moveu sob os nossos pés e agora estamos na extrema-direita. Ou fomos nós que nos movemos? Não sei, não sei. Por via das dúvidas, o certo é reconhecer o pecado e acompanhar a esteira: dizemos que fomos esclarecidos, e agora sabemos que homem e mulher são dois polos do espectro de gênero, e só extremistas negariam a existência de pessoas não-binárias. A noção de espectro político serve para o progressista ficar empurrando os outros pras pontas e xingando de extremista.

Ora, o extremismo é associado a violência e com banho de sangue. Por isso me perguntei o que eu faria caso me fosse dado poder para tal. Pois bem: não faria nadica de nada historicamente associado ao nazismo. Minhas convicções políticas são um ponto discreto, e não um marco difuso num degradê, sujeito a chegar para lá ou para cá.

O que pode mudar ao longo do tempo é o estilo da oposição. Um conservador na Suíça pode ser totalmente avesso à violência; mudando-se para Portland, porém, poderá manter as próprias convicções políticas ao tempo que prepara um arsenal pensando em legítima defesa (a situação de anomia em Portland é coberta pelo jornalista Andy Ngo, ele próprio uma vítima da violência dos antifas. Em resumo, gangs antifas são terroristas e matam impunemente). O conservador estaria raivoso e violento, mas com razão. Ainda assim, isso seria descrito como extremismo ou radicalização e condenado em si mesmo.

Se o progressismo vai se tornando mais intrusivo e dominante, é natural que as pessoas fiquem irritadas. Isso pode fazer delas apenas violentas, mesmo que não mudem de ideia. E pode fazer delas também mais violentas e radicais, caso suas convicções políticas tenham sido alteradas. E é natural que sejam alteradas, já que essa ascendência se deu nas democracias. Mudada a experiência, mudam-se as convicções de alguns. É natural que alguns desistam da democracia ao vê-la sucumbir ao progressismo. Ainda assim, isso não é como um tumor de geração espontânea; é reação à experiência.

O que deveria preocupar mais na política não é o humor dos seus adeptos – que deve variar conforme o clima político –, mas sim saber se eles são fanáticos guiados por uma ortodoxia maluca. Se tudo der certo para o vegano, você e eu não comeremos sequer ovo; quando tudo deu certo para os revolucionários iranianos, mulher nenhuma pôde andar sem véu. Quando tudo deu certo para os comunistas, todo o mundo perdeu propriedade etc.

O bom é que essa gente tem uma bíblia para chamar de sua. O Manifesto Comunista, a Libertação Animal… Assim como monarquistas e socialistas, têm uma teoria que pode ser conhecida. Na verdade, o próprio Mussolini definia o fascismo como uma “terceira posição”, colocando-se além do liberalismo e do comunismo.

Ninguém se coloca espontaneamente no degradê esquerda-direita. Quem faz isso é progressista, para chamar os outros de extremistas e negar-lhes a legitimidade, obrigando-os paulatinamente a seguir a sua ortodoxia.

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