Os melhores livros de ciências sociais merecem ganhar os holofotes anos depois de serem publicados, que é quando a poeira baixou, mais coisas aconteceram, e as coisas contidas ali foram confirmadas em vez de refutadas. Pois bem: em janeiro de 2008, Jonah Goldberg, então editor da revista conservadora National Review, lançou seu livro Liberal Fascism. Virou best-seller e ganhou tradução brasileira pela Record em 2020, com o título Fascismo de Esquerda.
Talvez seja uma boa tradução para um título. Afinal, até meados da década passada, podíamos com segurança afirmar, sem resistência, que liberal, embora se escreva igual, em inglês e português, tem significado bastante diferente. “Liberal” no Brasil passou de xingamento a descrição de uma corrente de pensamento legítima; agora, tem ocorrido um novo processo em que “liberal” vem se tornando termo elogioso em si mesmo, tal como era “esquerda”. Na verdade, egressos do petismo e da social-democracia pararam de usá-lo como xingamento e a tomá-lo como autoelogio. Na língua inglesa, a coisa também é complicada, pois os Estados Unidos em particular usam “liberal” com um significado diferente dos demais. Por isso há a tendência lá de os conservadores falarem em “liberalismo moderno” e “liberalismo clássico”, para deixar claro a qual movimento político se referem.
História dos termos
Jonah Goldberg conta a origem da confusão. A ideologia progressista, que existe desde o século XIX, teve seu primeiro grande sucesso com a presidência de Woodrow Wilson, que pôde usar a I Guerra Mundial para fazer crescer o Estado (o primeiro presidente progressista fora Teddy Roosevelt, um adversário político de Wilson que diferia dele mais pelas maneiras do que pelas ideias. Wilson era um acadêmico cheio de bons modos; Teddy, um cavaleiro impetuoso).
Na II Guerra Mundial, outro presidente da mesma ideologia está no poder e usa a guerra para inchar o Estado: Franklin Delano Roosevelt (FDR). Nessa época, o progressismo muda de nome e passa a ser chamada de liberalismo. Segundo Jonah Goldberg, isso é um empréstimo do idioma alemão. A Prússia de Bismarck era o referencial dos progressistas. Na Prússia de Bismarck, chamava-se de liberalismo a ideologia que promovia a libertação via Estado, e não a corrente política que, desde o século XVII, defende a liberdade do indivíduo perante o Estado por meio da divisão de poderes.
Nos anos 50, como reação ao crescimento do Estado logrado por FDR, surge o movimento conservador nos Estados Unidos.
O terceiro grande momento do progressismo é a Guerra Fria, com a criação do mito Kennedy. Como “direita” passou a significar conservadorismo nos Estados Unidos, nessa época o progressismo – já chamado de liberalismo – passou a ser chamado de esquerda. Assim, os progressistas se empenharam ao máximo para esconder que o assassino de Kennedy era um comunista. Em vez disso, Kennedy teria morrido por causa do “ódio”; a culpa coletiva caía sobre o Texas, pois aquele estado, onde ele morreu, era um local cheio de “ódio”. Lyndon Johnson, o vice que assumiu a presidência, seria uma espécie de São Paulo do progressismo contemporâneo, erigido sobre o martírio do Jesus Kennedy.
Cronologicamente, o livro termina com a Hillary Clinton da década de 90. Para Goldberg, essa senhora saída da Igreja metodista que passou os anos 90 pregando sobre a emancipação das crianças perante os pais opressores, operada por um Estado amoroso, seria, até então, a última pregadora ativa do progressismo, porque nos anos 2000 eles eram reativos e só falavam de Bush.
Fascismo
O progressismo, para Goldberg, é o fascismo dos Estados Unidos. Nisso, cai-se, naturalmente, no tema bastante vandalizado da definição do fascismo. Apresento a descrição dele, que eu aceito e achei bem boa: “Particularmente após a Primeira Guerra Mundial, mas tendo começado muito antes, um momento fascista surgiu das cinzas da velha ordem europeia. Ele reuniu os vários elementos que compunham a política e a cultura europeias: a ascensão do nacionalismo étnico, o Estado de bem-estar social de Bismarck e o colapso do cristianismo como fonte de ortodoxia social e política de aspirações universais. Em lugar do cristianismo, oferecia uma nova religião do Estado divinizado e a nação como uma comunidade orgânica”. O fascismo, portanto, é a religião civil que coloca o Estado no lugar de Deus e o faz dar sentido à vida dos homens. Goldberg coloca a Revolução Francesa como a primeira manifestação do fascismo na história ocidental, e não está sozinho nisso: Stefan Zweig, que escapou do nazismo, dedicou-se a fazer uma biografia do burocrata revolucionário Fouché justamente por enxergar na Revolução Francesa antecipações pertinentes do nazismo. É difícil discordar dele, quando nos chama atenção ao fato de que foram os revolucionários franceses os primeiros inventores de método de execução em massa: enfiar a população de cidades rebeldes (mulheres e crianças inclusas) em barcos e afundá-los.
O termo “fascismo liberal”, que dá título ao livro, é retirado de H. G. Wells, hoje conhecido por sua obra de ficção, mas à época conhecido e prestigiado como teórico político, por sua obra A Nova Ordem Mundial, de 1940. Antes disso, em 1932, o autor propunha na Universidade de Oxford um fascismo liberal ou um nazismo esclarecido como saída para o mundo. Apesar disso, se pesquisarmos a faceta política de H. G. Wells, o encontraremos como muito bonzinho, como um precursor dos direitos humanos.
Uma coisa premonitória do livro de Goldberg é ele dizer que Admirável Mundo Novo, e não 1984, é a distopia a ser temida no século XXI. O fascismo do futuro não é uma bota esmagando o rosto da humanidade; é uma tirania maternal que oprime a humanidade para o seu próprio bem.
Ainda segundo ele, o fascismo varia de cultura para cultura. Os italianos não eram obcecados por raça e não poderiam ser antissemitas. A cultura fez com que, durante o domínio nazista, morressem muito mais judeus franceses do que italianos, porque os franceses estavam mais dispostos a caguetar os judeus do que os italianos. Além disso, a proporção de judeus filiados ao Partido Fascista era superior à proporção de judeus na Itália. O antissemitismo, portanto, está longe de ser obrigatório no fascismo.
Um traço distintivo da cultura norte-americana é sua aversão ao Big State. Por isso, a forma como o fascismo se apresenta por lá é maternal e gentil. Nada de botas e militarismo. Trata-se de culto ao Estado.
Fatos históricos
Descontados então os eventos anteriores ao século XX, a tese de Goldberg é que “a primeira aparição do moderno totalitarismo no mundo ocidental não foi na Itália nem na Alemanha, mas nos Estados Unidos da América”. De fato, ele nos dá um relato alarmante do governo de Wilson: ele foi o primeiro presidente ocidental a criar algo similar a um ministério da propaganda, o Comitê da Informação Pública (1917-1919), comandado pelo jornalista George Creel. O objetivo do órgão era combater a desinformação kaiserista (isto é, a serviço do Kaiser, inimigo na I Guerra). Um cartaz do órgão alertava que “ele repete todos os rumores e críticas que ouve sobre a participação de nosso país na guerra”. Por isso, o Comitê treinara os Four Minute Men, que memorizavam em um discurso de quatro minutos as informações certificadas pelo governo e proferiam-no “em reuniões públicas, restaurantes, cinemas – qualquer lugar onde houvesse pessoas reunidas – para defender a guerra e alertar que ‘o próprio futuro da democracia’ estava em jogo. Somente em 1917-18, foram feitos 7.555.190 discursos em 5.200 comunidades”. Nas escolas, as crianças faziam juramentos e cantavam músicas sobre esforço de guerra.
Segundo Goldberg, Wilson bota McCarthy no bolso: “Sob a Lei de Espionagem de junho de 1917 e a Lei de Sedição de maio de 1918, qualquer crítica ao governo, mesmo em sua própria casa, poderia lhe render uma sentença de prisão. […] Em Wisconsin, um funcionário do estado pegou dois anos e meio por criticar uma campanha de levantamento de fundos para a Cruz Vermelha. Um produtor de Hollywood recebeu uma condenação de dez anos de cadeia porque fez um filme mostrando tropas inglesas cometendo atrocidades durante a Revolução Americana. Um homem foi levado a julgamento por haver explicado em sua própria casa por que ele não queria comprar os Títulos da Liberdade”. Perto de Wilson, Getúlio Vargas era um democrata.
E polícia secreta? O Departamento de Justiça criou a Liga Protetora Americana. Seus membros “receberam braçadeiras – em muitas delas escrito ‘Serviço Secreto’ – e foram encarregados de ficar de olho em seus vizinhos, colegas de trabalho e amigos. Usados como espiões privados por promotores fanáticos em milhares de casos, recebiam amplos recursos governamentais”. Eles acuavam negros para se confessarem estupradores de brancas e tinham uma Patrulha Vigilante Americana incumbida de dar uma sova em desertores (gente que não quis se alistar para a guerra), ou gente que praticasse “oratória sediciosa” nas ruas. Em 1918, a Liga tinha passado os 250 mil associados. Esse povo realizava as Batidas Palmer.
Eugenia
São deste período também a eugenia e a Lei Seca, que pretendia deixar todo o povo sadio. Uma coisa que coloca Goldberg acima do conservador norte-americano médio é o fato de ele mudar o disco do anticomunismo. Ele mostra que a elite que se entusiasmara com a Revolução Russa se entusiasmara também com Mussolini e com Hitler. Mas que a simbiose dos Estados Unidos se dava muito mais com a Alemanha do que com qualquer outro país fascista. Os EUA inventaram a eugenia; a Alemanha a aplicou de maneira exemplar.
O projeto alemão de melhorar a raça começou pela eutanásia e pela esterilização forçada. Já escrevi aqui sobre os tribunais de esterilização na Alemanha do nacional-socialista Hitler que o socialista Allende quis imitar no Chile. Um médico dizia que fulano tinha que ser esterilizado em nome da saúde do povo, e então o tribunal especializado julgava. Pois bem: ao que parece, a primeira vez em que uma enfermeira acionou a Justiça para esterilizar alguém em nome do bem comum e obteve êxito foi nos Estados Unidos, bem antes da ascensão do nazismo.
Leiamos esta história passada em 1927 trazida por Goldberg: “O estado da Virgínia considerou uma jovem, Carrie Buck, ‘inapta’ para procriar (embora, como se viu depois, ela não fosse retardada, como o estado havia afirmado). Ela foi enviada à Colônia Estadual Para Epiléticos e Débeis Mentais, onde foi induzida a consentir numa salpingectomia, ou retirada das trompas. O caso dependia, em parte, do relatório de um importante eugenista americano, Harry Laughlin, do Gabinete de Registros Eugênicos (Eugenics Record Office) […]. Sem nunca haver se encontrado com a jovem, Laughlin deu crédito à declaração de uma enfermeira que comentou a respeito da família Buck: ‘Essas pessoas pertencem à preguiçosa, ignorante e inútil classe de brancos antissociais do Sul.’ Consequentemente, Laughlin concluiu que a esterilização eugênica seria ‘uma força para a mitigação da degenerescência da raça.’ Pronunciando-se em nome da maioria, [Oliver Wendell] Holmes produziu um parecer resumido em pouco mais de uma página. […] Citando somente um precedente, uma lei de Massachusetts que obrigava que os alunos de escolas públicas fossem vacinados, Holmes escreveu que ‘o princípio que justifica a vacinação compulsória é amplo o bastante para incluir o corte das trompas de Falópio… É melhor para todo o mundo que, em vez de esperarmos para executar descendentes degenerados por crimes que cometeram, ou deixá-los morrer de fome por conta de sua imbecilidade, a sociedade possa impedir que os manifestamente inadequados deem continuidade à sua espécie.’”.
Por fim, vale destacar (e Goldberg o fez) que a esterilização compulsória foi adotada por países nórdicos e só na década de 70 a Suécia abandonou a prática. Ninguém aponta o dedo na cara dos suecos como monstros; ao contrário, são vistos por nós como muito evoluídos e bonzinhos.
Aqui estão alguns esqueletos no armário da esquerda norte-americana. Segundo Goldberg, o que caracteriza o liberalismo moderno é a tríade Estado de bem-estar social, aborto e identitarismo. Tudo isso tem relação direta com essas origens espúrias, e fica para a próxima.
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