Tanto o conservadorismo quando o liberalismo surgiram na Inglaterra, mas só o conservadorismo costuma ser chamado de “conservadorismo britânico”. Creio que essa qualificação sirva para realçar o aspecto teórico do conservadorismo, pois há muitos iletrados que batam em mesa de bar dizendo-se conservadores.
“Conservadorismo britânico” diz respeito à prole de Edmund Burke; “conservadorismo” puro e simples pode ser só um sujeito que esbraveja “contra essa sem-vergonhice toda que está aí”. Outro perigo ao qual o conservadorismo está exposto desde o século XX é o de ter seu rótulo roubado por revolucionários anticomunistas. Existe um risco análogo no liberalismo, que é o de ter o seu rótulo sequestrado por revolucionários simpáticos ao comunismo – mas nem por isso os liberais fazem questão de se dizer “liberal britânico” para remeter a Locke.
Assim, o mais razoável me parece inferir que, ao contrário do liberalismo e de uma porção de ismos, o conservadorismo é uma corrente que goza de uma popularidade espontânea e vaga. Também, pudera: reagir às novidades mais barulhentas é um ímpeto que as pessoas têm naturalmente, sobretudo quando não são jovens nem intelectuais.
Vemos velhos pouco escolarizados esbravejando no bar, se dizendo conservadores e exaltando o Boçonário (sic). Como fica o intelectual leitor de Burke? Fica mal, misturado com zé povinho. Por isso, no Brasil amiúde apontam gargalos aleatórios para determinar quem pode se chamar de conservador: pode ser o uso de gravata borboleta, o hábito de fumar charutos e até mesmo a apologia do voto em Lula.
Contra esse ímpeto de gargalos aleatórios, e em consonância com a popularidade difusa do conservadorismo, Russell Kirk fez um livro que vem bem a calhar: A mentalidade conservadora, recém-publicado em português pela É Realizações.
As origens britânicas
Embora Locke, o primeiro teórico do liberalismo, seja anterior a Edmund Burke, o primeiro teórico do conservadorismo, o surgimento do liberalismo é compreendido como um fenômeno conservador: aparece para impedir as inovações autoritárias do Rei da Inglaterra. Com a Revolução Gloriosa, a Bill of Rights de 1689, inspirada nas ideias do filósofo John Locke, restringe os poderes outrora absolutos do monarca, retira-lhe a liberdade de legislar e julgar e confere a um parlamento eleito os poderes legislativos. Todos se tornam igualmente sujeitos à lei, inclusive o Rei.
A fim de conservar liberdades, cria-se o liberalismo, na visão de Russell Kirk. Já o conservadorismo ganharia um defensor durante a Revolução Francesa. Enquanto os homens de letras ingleses se encantavam com o movimento filosófico e racionalista que derrubava a monarquia francesa, Burke se esforçava por realçar sua face sangrenta e bárbara, bem como por fazer previsões que mais tarde se confirmaram. A moral que ele extraía daí era a seguinte: devemos cuidar de nosso corpo político com reverência e cautela, tal como cuidamos dos ferimentos do nosso pai.
A ordem que existe não é gratuita; foi construída por séculos. Um homem seria um idiota se achasse que pode partir o relógio para remontá-lo como lhe der na telha – por que acha que pode quebrar a sociedade, uma coisa mil vezes mais complexa do que um relógio, para refazê-la como lhe aprouver?
A noção de usos consagrados, portanto, guia o conservador. Burke era um religioso e via a sociedade humana como uma criação da Providência; ordem social era ordem providencial.
Naturalmente, ninguém precisa ser um britânico para ser um conservador ou um liberal. Na verdade, ninguém sequer precisa ter lido Burke para ter essa sensibilidade pela ordem vigente, e talvez o velhote iletrado tenha razão ao se identificar como conservador por deplorar os usos e costumes propagados pelo PSOL. Por outro lado, o bom-moço diplomado, que ostenta livro no sovaco, está errado ao dizer que é liberal, se defende a desigualdade dos cidadãos perante a lei, como fazem os defensores de cotas identitárias.
Mais que britânico, agrário
O livro de Russell Kirk é sobre o conservadorismo no mundo anglófono, especialmente Inglaterra e Estados Unidos. O fio condutor do conservadorismo é a reação dos modos de vida tradicionais à ascensão da indústria. No século XIX, isso significou, mais precisamente, a resistência do mundo rural aos centros urbanos.
O drama começa com os efeitos sobre as eleições. Se as massas deixam o campo e migram para as cidades, se os bebês deixam de morrer em tenra idade com o avanço da medicina, há uma explosão demográfica urbana. Isso implica que distritos rurais despovoados terminam por ter uma representação eleitoral desproporcionalmente grandes, enquanto que as cidades ficam subrepresentadas. Na Inglaterra, passou nessa época o princípio de “one man, one vote” (“um homem, um voto”). Isto, porém, trouxe uma outra espécie de desequilíbrio: como as áreas rurais são sempre menos povoadas do que as urbanas, os interesses da cidade prevalecem sobre os interesses rurais.
Um traço cultural da cidade é a sua maior facilidade em aderir a ideias novas. O século XIX, na Inglaterra, foi o século de influência de Jeremy Bentham, o sujeito que calculava matemaricamente índices de prazer e acreditava que a finalidade da sociedade era garantir a maior felicidade para o maior número de pessoas. Bentham é o pai do utilitarismo, coisa totalmente avessa às noções de usos consagrados.
Russell Kirk considera que Bentham é um antecipador de Marx. Tanto um quanto outro se orientam somente pelas necessidades materiais humanas: tudo se passa como se, mantendo os homens bem alimentados e aquecidos, um governo teria esgotado as realizações humanas. Tal como os marxistas, Bentham sonha com um planejamento central que dê conta das necessidades materiais humanas, e provê uma padronização nacional no ensino, que passa a ser voltado somente para o aprendizado de coisas úteis. A Igreja Anglicana deixa de educar e a educação deixa de ter um sentido moral. Tudo o que há nos cálculos de Bentham são Estado e indivíduos atomizados, sem que se dê muito espaço para associações religiosas ou de classe.
Assim, na Inglaterra um vigoroso utilitarismo urbano foi varrendo o conservadorismo, a agricultura e a educação moral. As massas proletárias, sem religião nem tradições, iam se aglomerando em sindicatos e partidos. O trabalhismo se desenvolveu bem no solo do utilitarismo.
Tinha caboclo conservador nos EUA
Russell Kirk conta a história inicial dos Estados Unidos como sendo a da tensão entre o Norte urbano e centralista contra o Sul agrário e conservador. Como o Norte ganhou, nós conhecemos muito pouco da cultura sulista dos Estados Unidos. Lendo Russell Kirk, descobrimos, por exemplo, que um líder político e conservador burkeano era um mameluco escravocrata que de orgulhava de descender da índia Pocahontas: John Randolf of Roanoke. Aprendemos que a questão escravocrata era uma das várias incompatibilidades entre nortistas e sulistas. Outra, bastante importante, é que princípio de one man, one vote (“um homem, um voto”) traria uma vantagem política para os estados fabris e urbanos. Afinal, estados urbanos concentram muito mais população do que estados agrários, logo, ficam com mais votos.
Mesmo que tal princípio não tenha prevalecido, aprendemos que o Norte, assenhorando-se do poder, usou-o para subsidiar a indústria em detrimento do campo. Isso foi feito com a mentalidade mercantilista segundo a qual o maior objetivo econômico de um país é ter a balança comercial positiva, e compete ao Estado manietar a economia para conseguir isto. O mercantilismo é justamente a teoria econômica que Adam Smith demoliu.
No entanto, os Estados Unidos não tombaram perante a centralização planejadora, e sua Constituição tem uma longevidade de fazer inveja a países europeus. Há que se notar que, diferentemente da Inglaterra, os Estados Unidos não acabaram com sua agricultura, nem se tornaram exclusivamente urbanos. O país tinha um imenso território a Oeste para colonizar e cultivar. Assim, as pessoas não precisavam se amontoar todas nas cidades para vender sua força de trabalho por uma bagatela, se podiam ir ao Oeste procurar ouro ou se tornar fazendeiras. Isso deve ter contribuído para o relativo bem-estar do trabalhador urbano americano.
Algumas queixas, porém
Russell Kirk tem pelo menos dois problemas típicos dos nativos dos Estados Unidos. Um é a confusão entre liberalismo e progressismo ou esquerdismo. Isto não é usual nem na Inglaterra, nem no vizinho Canadá. Na maior parte do livro, porém, o paradigma de liberal para Russell Kirk é Jeremy Bentham, em vez de John Locke ou Adam Smith. Custava chamar de utilitarismo?
O outro problema é a implicância com todo e qualquer tipo de descrente religioso. Ele coloca a fé em Deus como requisito essencial ao conservadorismo e, por isso, descarta o Lorde Bolingbroke e David Hume do seu rol de conservadores. No entanto, ele arrola o ateu George Santayana como conservador e omitindo o seu ateísmo.
É uma questão interessante, a de se um anticlerical pode ser um conservador. Até certo ponto, todo protestante é um anticlerical, mas o conservadorismo surgiu justamente numa nação protestante. Por outro lado, Burke tinha mãe católica e era frequentemente acusado de ser um católico disfarçado. Na própria compilação de conservadores feita por Kirk, chama a atenção a quantidade de autores católicos se destacando nos Estados Unidos e na Inglaterra, já que eles são minoria em ambos os países. A relação entre conservadorismo e catolicismo é interessante; a tensão do protestantismo com a insubmissão à autoridade, também. Mas nem todo ateu é anticlerical. Alguns defendem a Igreja são e conservadores, como bem mostram Santayana e o próprio Bolingbroke.
Por fim, há uma questão da tradução. State foi traduzido uniformemente como “estatal”, sendo que às vezes significava “estadual”. Se o leitor não tiver em mente a ambiguidade do inglês, ficará perdido quando os conservadores norte-americanos opõem o poder estatal à centralização. É que state power aí era pra ser poder estadual, dos estados contra a centralização em Washington.