Eu escrevo há anos contra o movimento negro. Pela primeira vez, sinto que a maré mudou e agora os negros não são mais a vaca sagrada do progressismo no Brasil. Agora, a bola da vez são as pessoas trans. Há poucos anos, a carteirada de “mulher negra lésbica” seria irresistível no meio progressista. No fim do ano passado, porém, a aluna que confrontou a pessoa barbada que estava no banheiro feminino da UnB levou a pior. De nada bastaram as carteiradas. Os estudantes profissionais se manifestaram contra a transfobia. Só uma meia dúzia de sites feministas alternativos e o jornal do PCO mencionaram que a mulher acusada de transfobia era negra e lésbica.
De fato, esses dois predicados são irrelevantes de um ponto de vista moral, porque mulher nenhuma deve se deparar com um indivíduo agressivo, dotado da força física de um homem, dizendo-lhe: “Cara é minha mão na sua cara”. Mas esses dois predicados são muito relevantes do ponto de vista político: provam que o progressismo deu mais uma guinada, e que a luta contra a transfobia recebe tratamento prioritário frente às demais causas identitárias.
E eu creio que isso seja o ponto de chegada de uma trajetória pensada, em vez de consequência de flutuações inconscientes. O fim dessa trajetória é um mundo em que nenhum ser humano tem direitos inatos.
Vejamos a trajetória de absorção das bandeiras identitárias pela causa trans no Brasil.
Movimento negro, o mais forte no Brasil
No Brasil, desde a ditadura militar, ser intelectual quase sempre significava ser de esquerda. E, dos três grandes grupos identitários tradicionais – negro, mulher e homossexual –, só o movimento negro realmente gozou de algum status dentro da esquerda brasileira não progressista. As feministas e os militantes gays eram facilmente tachados de burgueses, o que fazia de sua luta por direitos algo conservador e portanto ruim, aos olhos dos comunistas (a mera ideia de que a causa gay pudesse ter alguma coisa a ver com a esquerda deixaria boquiabertos tanto os gays como os esquerdistas, já que a homossexualidade era entendida como vício burguês a ser reprimido pelo Estado. O ativismo gay por direitos era liberal).
O progressismo deu mais uma guinada, e a luta contra a transfobia recebe tratamento prioritário frente às demais causas identitárias
Os negros, por outro lado, podiam ser mais ou menos identificados com os pobres. Assim, não foi difícil comunistas, trabalhistas e integralistas se aproximarem da questão racial fundindo a imagem do negro e a do trabalhador oprimido. Mas ainda costumava ser uma perspectiva inspirada pelo universalismo: todos os homens eram iguais, e se os negros costumavam ser pobres, é porque a sociedade era corrupta. Uma revolução haveria de acabar com a pobreza, de modo que seria indiferente um homem ser branco ou negro.
Durante o regime militar, a Fundação Ford trabalhou para inverter essa fórmula: a questão racial ganhou vida própria e foi se libertando da questão de classe. Começou com Florestan Fernandes – que ainda reconhecia que à medida que os negros subissem de vida o preconceito diminuiria, mas não queria que isso acontecesse. Depois reciclaram um militante racista de uma ala minoritária da Ação Integralista, Abdias do Nascimento, e começou a história de que o Brasil é um grande país negro fora da África cuja pobreza se deve a uma conspiração de uma minoria branca. Surge a maquiagem estatística segundo a qual os não brancos são negros, que faz da Amazônia uma área mais negra que a Bahia (Já escrevi bastante sobre as obras do identitarismo negro brasileiro neste jornal).
Por meio do movimento negro, o feminismo conseguiu crescer na esquerda brasileira, livrando-se da pecha de afetação burguesa. Mas isso foi só no século 21. Houve um racha entre feminismo negro (bom) e feminismo branco (ruim). Pela via da interseccionalidade, as feministas brancas puderam enfim fazer suas queixas, desde que ressalvassem que as mulheres negras sofriam mais ainda, por causa da intersecção de opressões estruturais. A luta de classes um dia legitimou a luta negra, e a luta negra passou a legitimar o feminismo negro. A luta de classes sumiu do mapa e aí ascenderam as dondocas negras que escrevem manual lacrador para RH e fazem propaganda de bolsa de grife.
Militância feminista engolida pelo gênero
Antes de a militância feminista virar algo hegemônico na mídia, existiam uns enclaves feministas na academia que começaram a surgir ali pela época do regime militar. Isto se deve à ascensão da Nova Esquerda com o maio de 68, no plano internacional; e, no plano nacional, à aproximação dos militares com os Estados Unidos. Isto abriu as portas para a Fundação Ford. No século 21, esses enclaves brasileiros seguiram o mesmo percurso dos seus pares globais: os woman studies (estudos da mulher, ou estudos feministas) viraram gender studies (estudos de gênero).
Isto começou com Judith Butler. Em Gender Trouble (“Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade”, 1990), ela deu um passo além do dito de Beauvoir – segundo o qual as mulheres não nascem mulheres, mas se tornam – e decidiu que ser mulher era uma questão gramatical, ou seja, de pertencer ao gênero feminino gramatical. O gênero seria um papel que as pessoas interpretam. Se eu decidir que sou homem, vou atuar como um homem e isto basta (por analogia, se eu quisesse dizer que sou duas pessoas, aí seria uma questão de número, e eu exigiria ser tratada no plural. Eu sou Bruna. Concordam com meu nome o feminino e o singular). E, como é uma questão de atuação, eu posso ser Bruna agora e Bruno depois. Tratar-se-ia de “gênero fluido”.
A teoria de gênero é anterior a Butler; é de John Money, pai da terapia afirmativa de gênero. Ele fez experimentos com gêmeos e já há uma porção de matérias nesta Gazeta sobre esse distinto cidadão defensor da pedofilia. Mas, pelo que pude observar das minhas relações pessoais, raramente quem estuda Butler sabe da existência de John Money.
À medida que a influência de Butler se espalhou, o feminismo deixou de ser algo relativo às fêmeas da espécie humana e passou a focar na identidade da pessoa que se autoidentifica com o gênero feminino.
Noutros países ocidentais, a identitarização da esquerda não se deu pelo movimento negro, mas sim pelo feminista. No mundo anglófono, por exemplo, era bem mais comum do que no Brasil falar do feminismo em termos econômicos, tratando o trabalho doméstico como “tripla jornada” e fazendo malabarismos estatísticos para condenar a diferença de salários entre homens e mulheres. Não deixa de ser curioso que países racistas que efetivamente tiveram segregação racial e recebem montanhas de imigrantes escuros tenham preferido tratar a opressão das mulheres, e não dos negros e imigrantes, como questão econômica. Isso mostra que o identitarismo é mesmo uma mania de classe média – ou, como diziam os esquerdistas d’antanho, uma “afetação burguesa”.
O movimento gay vira sopa de letras
A militância gay era a mais difícil de ser aceita pela esquerda e pela sociedade em geral. No mundo acadêmico brasileiro, não sei precisar quando se tornou uma cadeira; mas sei que, quando o feminismo virou “gênero e diversidade”, os gays entraram no balaio. Antes disso, já vinha ocorrendo uma revisão e multiplicação da sigla GLS (gays, lésbicas e simpatizantes). Os primeiros passos foram concordar que as lésbicas são mais oprimidas, de modo que têm de vir na frente, e que os transexuais não são a mesma coisa que os homossexuais. Daí surgiu o LGBT. Graças à teoria de Judith Butler, cresceu para LGBTQ. A teoria se chama queer theory, algo como “teoria bicha”, mas os acadêmicos traduzem como “teoria queer” e fazem de conta que gay e queer não designam o mesmo “gênero”, embora designassem homens homossexuais (Queer era pejorativo, daí eu traduzir como “teoria bicha”).
A teoria de gênero é anterior a Butler; é de John Money, pai da terapia afirmativa de gênero, que fez experimentos com gêmeos. Mas raramente quem estuda Butler sabe da existência de Money
O movimento gay é mais antigo nos países de língua inglesa; seu marco inicial são os protestos de Stonewall ocorridos em 69 nos EUA. Surgiu lá a bandeira do arco-íris, que passou décadas como símbolo inabalável do Orgulho Gay. Em 2018, porém, foi criada a bandeira do Orgulho Progressista, que põe um triângulo rosa, azul, branco, marrom e preto sobre o arco-íris. Isso significaria as questões trans e racial. Essa bandeira ganhou uma importância burocrático-empresarial que a bandeira original jamais teve, e chegou a ser hasteada na Inglaterra em substituição à do Reino Unido.
Objetividade possível e lógica reparatória
O progressismo opera segundo uma lógica reparatória formalizada pela ONU na Conferência de Durban (já criticada por Magnoli em seu clássico Uma gota de sangue), em 2009. Dever-se-ia tratar a questão racial pensando em raça perdedora e raça vencedora, com uma devendo pagar reparações à outra por opressões perpetradas no passado.
No Brasil, país mestiço, isso redundou em tribunal racial (não deixe de ler esta matéria). É muito fácil classificar Pelé como negro e é muito fácil classificar Gisele Bündchen como branca, mas não é fácil classificar Chico Buarque como negro ou como branco. Abre-se então a brecha da politicagem: ACM Neto é branco porque é neto de ACM e Camila Pitanga é negra porque é filha de Antônio Pitanga, mesmo que tenha interpretado a índia Catarina Paraguaçu no cinema. E, como os tribunais raciais formais das universidades não são auditáveis, se passar um branco amigo para a cota do negro, ninguém vai saber.
As cotas se espalharão cada vez mais pela sociedade – inclusive e sobretudo na iniciativa privada, pelo ESG – e será reconhecido como oprimido, cada vez mais, o indivíduo trans não binário (que não se considera homem nem mulher e é aludido em “todes”)
A lógica da reparação saiu do domínio da raça e se espalhou para as demais questões. Na questão da sexualidade, existem indivíduos ambíguos, mas existem gays e lésbicas que ninguém imaginaria se relacionando com o sexo oposto. Se Clodovil fosse vivo e houvesse cota para gay, seria impossível negar-lhe uma vaga; assim como seria impossível negar uma vaga de negros para Pelé. Quanto às mulheres, aí é que haveria a menor ambiguidade possível, pois o sexo é binário e são muito poucos os hermafroditas. E mais: mesmo levando em conta transexuais, não deveria ser difícil distinguir entre quem alterou o corpo e quem não alterou o corpo. Antes da teoria queer, os transexuais queriam meramente viver como alguém do sexo oposto sem passar por constrangimentos (daí lutar pelo “nome social”, por exemplo, para a dama não ser chamada de Roberval na sala de espera). O Supremo mudou esse embasamento na realidade física e agora o gênero é definido pela autodeclaração.
Como o que impera é a lógica da reparação, já há cotas para pessoas trans. Na Universidade Federal do Sul da Bahia, a última criada por Dilma, uma pessoa barbada entrou em Medicina alegando ser trans e, após gerar revolta nos estudantes, acabou tendo a matrícula cancelada por fraude. Se o que vale é a autodeclaração, e se ter uma barba não significa absolutamente nada, como discernir trans verdadeiros e falsos? A expulsão da pessoa barbada como fraudadora ocorreu em 2020, sinal de que muita água rolou nestes dois anos.
Então creio que ficaremos assim nos próximos anos: as cotas se espalharão cada vez mais pela sociedade – inclusive e sobretudo na iniciativa privada, pelo ESG – e será reconhecido como oprimido, cada vez mais, o indivíduo trans não binário (que não se considera homem nem mulher e é aludido em “todes”). A autodeclaração é solipsista, sem base para averiguação objetiva. Assim, caberá a alguma agência reguladora criar métodos supostamente científicos de discernir fraudadores e honestes (sic).
Quanto ao Estado, ele, uma vez sequestrado por cartéis lacradores, considerará que você não tem direito a nada, nem mesmo à vida, pois é um privilegiado e um opressor estrutural.
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