“A ética protestante e o espírito do capitalismo”, do prussiano Max Weber (1864 – 1920), é uma das bíblias do marxismo brasileiro dos anos 1960 ou 1970. Os dinossauros marxistas leram o livro e depreenderam só uma coisa: povos protestantes têm o espírito do capitalismo. A partir daí, assumiram uma dessas duas posturas: ou têm como provado por A mais B que os Estados Unidos são maus como pica-paus, por serem protestantes, ou veem com bons olhos o fato de o Brasil se encher de igrejas evangélicas, porque assim ingressaríamos enfim no capitalismo, nos tornaríamos um país industrial (como a Inglaterra do XIX) e teríamos assim cumprido os requisitos necessários à Revolução, revelados por Marx. Essa segunda corrente, menos visível, tem como expoente hoje Roberto Mangabeira Unger.
No entanto, o livro é antimarxista. Diz expressamente que explicações materiais do mundo são ineficazes para dar conta do capitalismo moderno. Tampouco faz sentido enxergar uma evolução linear, pois, do contrário, seria das ricas cidades-Estado italianas, e não da precária colônia da Nova Inglaterra, que deveríamos esperar que surgisse o capitalismo moderno. Por que os banqueiros italianos não fizeram da península uma potência capitalista? Como os colonos ingleses na América, com escassez de moeda, acuados por índios, pobres, se tornaram a maior potência capitalista de que se tem notícia? A resposta para isso está no espírito. O homem, para Weber, não é inteira e externamente determinado por condições materiais; há o quinhão do espírito, das crenças religiosas e da cultura que porventura daí se origine.
Se pensarmos na condenação da Igreja à usura, vemos que essa não é uma descoberta chocante. Mas, como o marxismo já era moda na universidade e os Estados Unidos estavam no auge, o livro foi uma febre. Não restou ao marxismo senão incorporá-lo ao seu cânone e contar com a burrice ou bitolação dos seus quadros.
Desencanto do mundo, sacralização do trabalho
Para Weber, o mundo ocidental saiu do tradicionalismo católico para a modernidade capitalista. Foi uma transformação espiritual que acarretou uma transformação material. Ele toma toda a precaução de frisar que está interessado em teologia somente na medida em que ela serve para explicar o comportamento humano, e não como uma disciplina autônoma. Assim, caracteriza o mundo do católico como um mundo mágico, encantado, em que existem recursos sobrenaturais para que o cristão garanta a coisa mais importante de sua vida, que é a salvação.
De um ponto de vista prático, para Weber não há grandes diferenças entre um mago e um padre: se você pecou, pode procurar um homem dotado de influências especiais que irá lhe ajudar junto ao divino. Nada do que o padre diz se pretende racionalmente justificado; rezar terço é um rito estritamente sacro (ou mágico), sem compromisso com cálculos mundanos. Se aparecer um estudo dizendo que rezar o terço traz benefícios à saúde ou ao bolso, será recebido com indiferença pelo católico.
Lutero dá o pontapé inicial ao desencantar o mundo. Com a Reforma, não existe mais a diferenciação entre o estilo de vida supramundano de uma elite espiritual voltada ao Outro Mundo (os monges) e o estilo de vida intramundano do cristão. Todos os filhos de Deus devem ser igualmente votados à adoração do Senhor. As mortificações do monge, destituídas de qualquer utilidade mundana, passam a ser vistas como superstição e irracionalismo. Em vez disso, há a glorificação do trabalho como meio de espalhar a glória de Deus. O estilo de vida passa a ser todo intramundano, mesmo que orientado para o Outro Mundo. O de cá resta desencantado e não há ritos mágicos que garantam ou contribuam para a salvação.
Para a moral tradicional, o trabalho sempre foi um meio de se obter o necessário para tocar a vida. Se o tempo do trabalho compete com o tempo do lazer, essa é uma maneira razoável de se encarar a vida. Weber menciona o impacto que o aumento do pagamento teve entre roceiros tradicionais: em vez de estimulá-los a trabalhar mais, eles passaram a trabalhar menos, pois menos lotes bastavam para tirar o mesmo valor de antes, e então folgavam mais cedo.
A vontade de trabalhar ao máximo, muito mais do que o necessário, sem pensar nos prazeres, não tem justificação racional. É uma vida penosa, dura e é o ascetismo novo com o qual os protestantes substituíram o monástico.
Esfriada a fé, mantém-se uma cultura em que o trabalho é bom por si mesmo. É uma pena que Weber tenha morrido prematuramente. (Uma pena para nós; para ele deve ter sido bom). A inscrição “O trabalho liberta”, em Auschwitz, daria o que pensar. E também o discurso de Heidegger, filósofo das SA, tratando das fogueiras de livros escritos por judeus: “elas não se apagarão […] antes que o último dos parasitas que os escreveu esteja internado num campo de trabalho, e que os cabelos desses animais tenham sido raspados e seus corpos lavados”.
O trabalho aparece junto com o fogo e a limpeza do corpo. Vira um rito mágico de purificação, embora saibamos que, numa sociedade nazista, não haveria purificação bastante para os judeus.
Lucro como signo da Graça
O passo mais importante, porém, foi dado por Calvino, com sua doutrina da Graça. Há apenas uma quantidade limitada de seres humanos destinados à Vida Eterna, aos quais Deus concedeu o dom da Graça de antemão. Assim, já viemos ao mundo fadados à aniquilação ou à Vida Eterna, e é errado tentar fazer Deus mudar de ideia. Isto seria agir como os católicos, que compram um lugar no céu com as indulgências.
Segundo Weber (e é difícil discordar ele), isso põe o fiel numa ansiedade constante. Como saber que estou entre os poucos predestinados à Vida Eterna? Em vez de cuidar da própria salvação (à maneira católica), o calvinista busca a certeza da salvação.
Como eles descendem de Lutero, herdaram a apologia do trabalho como meio de ascese intramundana. Daí a coisa evoluiu para uma certeza de que o lucro é um sinal da Graça. Assim, quem quiser ter a certeza da salvação deverá trabalhar muito e lucrar muito, a fim de que possa testemunhar o signo da escolha divina. Foi esse motor irracional, ascético e religioso, que criou o capitalismo moderno. É olhando para as culturas religiosas que se pode identificar os dínamos originais do capitalismo moderno, e não o dinheiro.
Outros traços culturais
Além do desenvolvimento do capitalismo moderno, esse conjunto de crenças causou a padronização utilitária, a estima por bacharelados e o desprezo pela arte.
As artes ficaram mal aos olhos dos calvinistas porque iam na contramão do ascetismo e eram tachadas de “culto da criatura”. Em vez de fazer as coisas bonitas (as roupas, as casas, os utensílios), fazia-se tudo de maneira simples e ascética, o que terminou por implicar uma padronização bem conveniente para a indústria.
De resto, os calvinistas viam com muito bons olhos o cultivo do espírito proporcionado pelas universidades, e isso, naturalmente, se fazia também aplicando-o a coisas úteis, como os experimentos conducentes a invenções técnicas.
Uma vez apagada a chama da fé, porém, que mundo legou esse moderno espírito do capitalismo? Weber deixava um ponto de interrogação, mas não era nada otimista. Deixo uma citação do penúltimo parágrafo do livro. Os colchetes são acréscimos da edição revisada por Weber, tal como consta na edição da Companhia das Letras:
“A partir do momento em que não se pode remeter diretamente o ‘cumprimento do dever profissional’ aos valores espirituais supremos da cultura – ou que, vice-versa, também não se pode mais experimentá-lo como uma simples coerção econômica –, aí então o indivíduo de hoje quase sempre renuncia a lhe dar uma interpretação de sentido. Nos Estados Unidos, território e que se acha mais à solta porquanto despida de seu sentido metafísico [ou melhor: ético-religioso], a ambição de lucro tende a associar-se a paixões puramente agonísticas que não raro lhe imprimem até mesmo um caráter esportivo. Ninguém sabe ainda quem no futuro vai viver sob essa crosta e se ao cabo desse desenvolvimento monstro hão de surgir profetas inteiramente novos, ou um vigoroso renascer de velhas ideias e antigos ideais, ou – se nem uma coisa nem outra – o que vai restar não será uma petrificação chinesa [ou melhor: mecanizada], arrematada com uma espécie de convulsiva de autossuficiência. Então, para os ‘últimos homens’ desse desenvolvimento cultural, bem poderiam tornar-se verdade as palavras: ‘Especialistas sem espírito, gozadores sem coração: esse Nada imagina ter chegado a um grau de humanidade nunca antes alcançado.’”
Um mundo utilitário e sem sentido, à procura de uma metafísica estéril, se parece com o cenário que Douglas Murray descreve. Voltaremos a esse tema depois.
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