Professor, psicólogo e nutricionista são profissões muito árduas nos dias de hoje. Afinal, todas em tese devem usar a autoridade para promover a disciplina nos outros, mas tanto a autoridade quanto a disciplina estão fora de moda.
Esta semana O Globo deu uma daquelas matérias que, à primeira leitura, cremos tratar-se de sátira: “Obesidade: médicos pedem a proibição do uso do termo, entenda. Especialistas sugerem que o excesso de peso seja chamado de ‘Desregulação Crônica do Apetite’ para remover o estigma da condição.” Não é que o gordo ativamente coma demais e coma mal. Ele padece de um mal sobre o qual não tem ingerência nenhuma. Assim como uns têm hipotireoidismo e outros têm um sopro no coração, os gordos, coitados, têm uma desregulação crônica do apetite.
A origem de tal desregulação, como tudo nesta moral determinista, é o DNA: “Os cientistas identificaram genes que poderiam aumentar o risco de obesidade. Segundo eles, mutações levariam a mudanças nas partes do cérebro que regulam o apetite, levando alguns a comer demais e ganhar peso.” Ser gordo virou problema psiquiátrico genético. Por isso, a solução tem que ser médica: “Ao dar um novo nome a obesidade, os pesquisadores acreditam que abriria o caminho para pacientes que mais precisam acessar tratamentos, como as famosas injeções de Ozempic, que trata obesidade, mas está [sic] sendo utilizada [sic] para perda de peso, após ganhar espaço nas redes sociais.”
As “famosas injeções de Ozempic” são um remédio criado para tratar diabetes que é usado off label para emagrecer. Nas palavras do site oficial, “a injeção de Ozempic® (semaglutida) de 0.5 mg, 1 mg, ou 2 mg é um remédio injetável sob prescrição usado: [1] com dieta e exercícios para melhorar o açúcar no sangue dos adultos com diabetes tipo 2; [2] para reduzir o risco de acidentes cardiovasculares tais como ataque cardíaco, derrame ou morte em adultos com diabetes tipo 2 e com problemas cardíacos. Não se sabe se Ozempic® pode ser usado por quem teve pancreatite. Ozempic® não é para o uso de pessoas com diabetes tipo 1. Não se sabe se Ozempic® é seguro e eficaz para o uso de menores de 18 anos.” Durante a pandemia, quem propusesse uso off label de remédios antigos e conhecidos era tido por irresponsável. O MPF briga até com médico por isso. Já o Ozempic, liberado pela FDA para diabéticos em dezembro de 2017, é anunciado pela imprensa como a pedra filosofal dos gordos.
Ninguém sabe que efeitos colaterais esse remédio novo pode ter no longo prazo, pelo simples fato de que não deu tempo de se ter experiência do seu uso no longo prazo. No entanto, o site oficial do remédio já cita tumores de tireoide, cancerígenos ou não, entre os efeitos colaterais. Uma coisa é a publicidade pseudojornalística do remédio. Outra coisa é o que o próprio laboratório diz do remédio. O laboratório só se responsabiliza por esta, mas o grande público só se inteira daquela. Na hora dos processos, o laboratório está blindado.
Podemos nos perguntar pelos motivos que os jornais têm para dar tamanha publicidade à droga. Mas mesmo que porventura um dia se comprove que houve alguma prática irregular de propaganda, uma coisa não pode ser questionada: essa droga atende aos anseios da população geral.
O site oficial do remédio já cita tumores de tireoide, cancerígenos ou não, entre os efeitos colaterais. Uma coisa é a publicidade pseudojornalística do remédio. Outra coisa é o que o próprio laboratório diz do remédio.
No Brasil de hoje, quem tem o IMC normal é minoria estatística. Somados, gordinhos e gordões (i. e., os com sobrepeso e os com obesidade) são regra em vez de exceção (Marina que dê seus pulos para explicar onde está a centena de milhões de famintos neste país). Se o gordo de antes era um bonachão que gostava de comer muito e bem, figura ideal para se pedir uma recomendação de restaurante ou receitas, o gordo de hoje é o deprimido e ansioso que não consegue se controlar e come mais por compulsão do que por prazer e gosto. Resulta que essas pessoas – que não são poucas – têm vergonha de ser gordas. E não conseguem emagrecer.
Daí surgem algumas maneiras de lidar com o problema. A mais radical, inventada pelas feministas, foi até adotada por empresas de cosméticos: é dizer que ser gorda é uma mera questão estética e, portanto, engordar é libertar-se de padrões opressivos. Mas a mais comum é a pessoa dizer a todo o mundo que não saaaabe por que é gorda; só pode ser por uma questão de metabolismo. Afinal, ela não coma nadica de nada. Ao comer em público, faz um pratinho miudinho porque “estou de dieta”, a fim de corroborar a impressão de que a condição de gordo se deve a alguma maldição das Parcas. Na verdade, fazer um pratinho miúdo na refeição é consistente com o comportamento de gordo, que passa o dia petiscando e não faz as refeições direito. A pessoa de bom peso, por outro lado, fará um prato grande na hora da refeição e o gordo enxergará nisso mais uma prova da injustiça cósmica.
Alguns param aí. Outros dão o passo seguinte, que é procurar um especialista – o nutricionista – para resolver o problema no lugar deles. Acontece, porém, que o nutricionista não será capaz de ajudar o paciente sem saber o que ele come. Este está mais interessado em provar que é vítima de uma injustiça cósmica, porque, do contrário, se sentirá um idiota por procurar um especialista para ouvir que precisa parar de devorar um pote de sorvete antes de dormir, ou coisa semelhante. No fundo, o paciente sabe que usando o puro bom-senso ele poderia estar muito mais magro, mas se ele admitir isso, terá que abrir mão desses hábitos, e ele não quer. Quer uma justificação para ser gordo sem parecer um insensato. Então vai mentir para o nutricionista.
Se o nutricionista tiver renome ou for funcionário público, poderá bater na mesa e dizer que não acredita. O paciente que vá embora, se não quer melhorar. No caso do renomado, os pacientes sérios bastam para manter as contas; no caso do concursado, o salário continuará caindo na conta. Mas se o nutricionista depender de um volume grande de consultas, terá de bajular o paciente sabotador. Daí, suponho eu, vêm as dietas excêntricas que não têm nada a ver com emagrecimento, tais como as sem glúten e sem lactose. O nutricionista passa uma dieta aleatória difícil de seguir e a paciente pode se lastimar com as amigas de não ter tempo para essas coisas, ou que a quinoa orgânica não cabe no orçamento. Aí, sim, tem-se uma história plausível para continuar gorda: o especialista mandou comer tal e tal coisa assim-assado, só as atrizes da Globo têm condições de seguir essa dieta excêntrica, por isso só as atrizes da Globo são magras.
No fundo, o paciente sabe que usando o puro bom-senso ele poderia estar muito mais magro, mas se ele admitir isso, terá que abrir mão desses hábitos, e ele não quer. Quer uma justificação para ser gordo sem parecer um insensato. Então vai mentir para o nutricionista.
Pois bem. Assim era até surgir o Ozempic, que, segundo dizem “os especialistas”, trata um problema genético que leva os gordos a terem um apetite descontrolado. Agora o gordo pode até admitir que come muito, porque é genético e ele não tem nenhuma ingerência sobre isso. É caso psiquiátrico: na nossa época, ser caso psiquiátrico é bonito, porque assumir responsabilidade é constrangedor.
Agora que se estabeleceu que os gordos não têm responsabilidade pela própria comilança e que é possível emagrecer com injeções mágicas, podemos voltar a falar que gordos comem demais, que não faz bem à saúde ser gordo, e que as mulheres querem sim estar dentro de algum padrão de beleza que exclui a obesidade. O óbvio pôde vir à luz do dia novamente. Janja, a empoderada-mor, comemora os 8 quilos perdidos com o remédio sem ser menos revolucionária por isso.
Resta saber, porém, o que acontecerá com a profissão do nutricionista. A indústria farmacêutica, acompanhada do espírito de autoindulgência fomentado pela nossa cultura, fez da psicologia uma antessala da psiquiatria. Um psicólogo pode ter sucesso mercadológico dizendo à adolescente deprimida que ela é uma vítima dos pais, do machismo e do mundo, e encaminhando-a a um psiquiatra que lhe prescreverá antidepressivos (cuja eficácia é para lá de duvidosa). O mesmo se dá com a educação: as escolas preferirão professores que não digam aos pais que seus filhos são malcriados, mas sim que têm um problema constitutivo. Irão colocar as crianças no psicólogo, que irá repassar para o psiquiatra, que irá passar Ritalina para TDAH. E assim sucessivamente. Daí é possível que no futuro o nutricionista seja um trâmite burocrático para ser encaminhado ao psiquiatra e receber Ozempic para tratar a "desregulação crônica do apetite".
Resta saber o que acontecerá com a profissão do nutricionista. A indústria farmacêutica, acompanhada do espírito de autoindulgência fomentado pela nossa cultura, fez da psicologia uma antessala da psiquiatria
Mas há uma diferença importante entre as narrativas sobre as doenças relativas ao corpo e as doenças relativas apenas à alma. Não se cria uma identidade oprimida específica para o doente da alma, tal como deprimidos X não-deprimidos. No máximo, fala-se de neurotípico X neuroatípico, mas sequer se difunde uma expressão como “neuroatipicofobia”. A questão da obesidade lembra a da disforia de gênero. Ser gordo é uma identidade revolucionária e gordofobia é um novo pecado. No caso da disforia de gênero, o lobby nos EUA passou a perseguir as maneiras tradicionais de tratar o problema, tachando-as de transfóbicas, para admitir somente a “terapia afirmativa de gênero”, na qual o psicólogo e o psiquiatra têm que confirmar a condição de trans do paciente e receitar-lhe mudança de gênero. Será que a ideia de gordofobia vai servir para criminalizar qualquer abordagem da obesidade que não a medicamentosa? Na matéria d'O Globo, os "especialistas" pedem que o termo obesidade seja proibido, e que a "desregulação crônica do apetite" seja a substituição. Não se trata de uma mera mudança de nome, pois o segundo traz implícita uma explicação causal – psiquiátrica – da obesidade.
Ao que tudo indica, assistiremos a um aumento de tumores de tireoide nos próximos anos.
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