Se os leitores permitem, quero me deter no caso da menina de Santa Catarina grávida de 7 meses aos 11 anos, que namorava com o menino dois anos mais velho com o qual ela tinha relações de parentesco e dividia o teto. Segundo lemos neste jornal, a polícia tem dois jeitos de encarar a situação: ou bem ambos se estupraram mutuamente, porque nenhum dos dois tem idade legal para consentir, ou bem se leva em conta a exceção “Romeu e Julieta”. Não consigo achar nenhuma das duas situações razoáveis. Se fosse uma menina de 13 e um menino de 15, eu concordaria com a tese do Romeu e Julieta, porque aos 13, ainda que não tenha idade legal para consentir, a menina já tem hormônio suficiente para sentir tesão. Aos 10, não tem. Sem tesão, sem paixão, sem Julieta. Ao que tudo indica, ela fazia sexo antes da menarca com um garoto que mal tinha chegado à puberdade. Não acredito que o sexo tenha sido ideia deles.
Então precisamos nos deparar com a seguinte realidade: as crianças estão aprendendo sobre sexo por imitação, e tal coisa só é possível, em larga escala, com uma sociedade que decidiu que o sexo é uma coisa boa em si mesma. Este decididamente é o caso do Ocidente pós 68. Nossas elites intelectuais decidiram, e o resto pouco a pouco acatou, que sexo é uma coisa boa em si mesma. Das coisas boas em si mesmas faz-se propaganda. Antes de 68, entendia-se que o casamento por amor era uma coisa boa em si mesma. As crianças aprendiam por imitação – ouvindo histórias e vendo filmes – o papel que elas deveriam desempenhar no mundo dos adultos: os homens correm atrás das mulheres, que devem escolher o homem certo. O romantismo servia para tratar do assunto com muitos coraçõezinhos, sem alusões ao sexo.
Pode haver mil razões para se argumentar que o casamento por amor não é uma coisa boa em si mesma. Pode-se, por outro lado, argumentar (e creio que com muito mais facilidade) que o sexo tampouco é uma coisa boa em si mesma. De todo modo, no primeiro cenário tínhamos um programa sadio para dar às crianças uma ideia de como é o mundo adulto. Como explicar às crianças o mundo adulto quando se pauta tudo em sexo? Ainda que disséssemos aos intelectuais altamente sábios e desconstruídos: “Muito bem, vocês têm razão, o casamento é opressão e o romantismo é como guirlandas de flores ocultando grilhões de ferro. A verdadeira liberdade consiste em desfrutar de tantos corpos possíveis com a voracidade de quem come pudim durante a dieta”, seria necessário perguntar-lhes: “Como é que criamos as crianças com base nisso?”.
Das duas, uma. Ou bem se deixam as crianças ao léu, sem nenhuma ideia de como é o seu futuro de adulto – caso em que as travessas vão tentar descobrir sozinhas –, ou bem se fala de sexo para criança. Esta é bem a ideia dos progressistas, que, coerente e desavergonhadamente, insistem em educação sexual e de gênero o mais cedo possível.
Casar e virar ogra
Houve uma grande mudança no início do século 20. Quem, como eu, nasceu em 90 no Brasil, assistiu na infância à propaganda do casamento em duas fontes: filmes e desenhos da Disney, nos quais as mocinhas se casavam com os mocinhos, e nas novelas da Globo, que sempre acabavam em casamento de mocinho com mocinha. As crianças ouviam pagode, é verdade, mas versos como “O pinto do meu pai fugiu com a galinha da vizinha” contavam uma história de galinheiro que era entendida como tal. Quando se percebia o duplo sentido, é porque os hormônios tinham chegado.
Ali pelo fim dos anos 2000, a classe média já tinha internet barata. Era o auge dos blogues, e era também o início da penetração da propaganda abertamente feminista na sociedade. Começou ali por 2008 a circular a ideia de que a Bela Adormecida era vítima de estupro porque não estava acordada. Todas as princesas da Disney foram problematizadas e, em seu lugar, não se propunha nada. Nos EUA, a tendência deve ter começado antes. Eu tenho uma irmã 10 anos mais nova, então lembro que o filme de princesa da época era Shrek – uma obra recheada de piadinhas e referências que faziam os adultos e os crescidinhos darem risada, mas que seguia o script do casamento por amor. Não obstante, em vez de príncipe, há um ogro, e a bela princesa se transforma permanentemente em ogra para se casar. É de se questionar o impacto que esse filme teve sobre as meninas que o tiveram como formação; afinal, perder a beleza não é uma boa perspectiva, e é uma consequência observável em não poucos casamentos. “Quem casa vira ogra” é uma lição factível. Quanto aos homens serem ogros, não consigo imaginar um meio mais sucinto e eficaz de explicar feminismo pra criança.
Ogros tradicionalmente são maus porque parecem maus. Crianças associam o bom ao belo e o mau ao feio. Bons pais e educadores ensinarão a enxergar além das aparências. No entanto, não é razoável aniquilar o mais cedo possível qualquer vinculação entre bom e belo, como se não fôssemos capazes de usar nada da aparência para julgar alguém. Ao cabo, exigem dos adultos que não olhem para um cara que se veste como ladrão e achemos que é ladrão. A exigência feita (ou antes confusão imposta) às crianças é que não detectem predadores. Depois de séculos e séculos ensinando às crianças sobre o mal por meio de bruxas e monstros, agora é preciso desconstruir tudo.
Que tal será crescer sem a ideia de bicho papão? Esta é uma experiência que eu e você não temos. No entanto, é assim que a mídia, os educadores e não poucos pais formam as crianças. Formam-se gerações incapazes de entender que o mal possa ir além de palavras e opiniões. Umas ovelhas que não sabem da existência de lobos.
Book rosa generalizado
Vamos nos colocar no lugar das meninas e mulheres que nasceram já no presente século. O cenário cultural está tão alterado que um filme de tiro, porrada e bomba – Top Gun – é considerado contracultural. A TV e o cinema estão em declínio; a internet é o veículo da vez. Nela, uma infinidade de instagrammers, tiktokers e influencers do sexo feminino substituem as heroínas da TV e do cinema como modelo para as meninas. É um padrão as redes sociais de fotos atraírem meninas; anos atrás, o Tumblr foi para elas um veículo de contágio de uma série de doenças mentais ligadas ao corpo, tais como anorexia, bulimia, automutilação e disforia de gênero de início súbito.
Ao mesmo tempo, sites em que as meninas expõem suas fotos são um chamariz de soft porn grátis. Não é de admirar, portanto, que a moda de virar sugar baby tenha surgido e vingado até mesmo num país que proíbe a prostituição. As meninas tiram fotos sensuais, expõem-nas, e daí para suas redes virarem um “book rosa” (lembram-se dessa expressão?) é um pulo.
Mas elas se expõem ainda antes de terem idade para sentir tesão. O que quer dizer que se expõem por imitação, porque é isso que as instagrammers famosas fazem. Antes elas imitavam o que viam na TV e nos gibis; hoje, imitam soft porn desde criança. Por quê? Ora, porque é o que se faz, porque uma mulher de sucesso é quem faz o máximo de sexo possível com homens diferentes sem amar nenhum e ganha o máximo de dinheiro possível. Não é uma definição muito diferente da de uma prostituta.
Os pais que deixam criança solta na internet achando que estão seguras só por estarem dentro de casa podem estar deixando suas filhas virarem prostitutas.
Confusão mental
Dizer que o sexo masculino é mau é um jeito de transformar mulher em prostituta, porque desumaniza o homem perante os olhos femininos e transforma-os em mera fonte de renda. Assim, se uma moça que cresceu nesse ambiente cultural amar um rapaz, estará numa situação análoga à de um adolescente homossexual de criação religiosa na década de 50. Estará perturbada por sentimentos ilícitos e desprezíveis, que devem ser combatidos a fim de se tornar uma boa prostituta, que é o ideal de mulher proposto pelos progressistas.
Ao mesmo tempo, como o sexo se tornou bom em si mesmo, ela não terá critérios para condenar um abusador. O que há de errado em uma adolescente fazer sexo? Nada; errado é não fazer. Assim, o homem que queira se aproveitar de uma adolescente insegura (o que é quase um pleonasmo) não precisará fazer esforço nenhum; bastará saber apelar para a moralidade que lhe fora inculcada. Se a menina não quiser fazer sexo com ele, só pode ser uma radical de extrema direita, uma abominável fascista, uma recalcadíssima evangélica.
Nós olhamos para esse tipo de homem e dizemos que é mau. Mas dizer “homem mau” é como falar em “círculo redondo”. Não restam critérios para julgar a conduta masculina, se homem é mau.
Então deve existir um tipo de moça em conflito com o fato de se sentir encantada por algum rapaz (um desejo ilícito) e, ao mesmo tempo, se sente moralmente impelida a fazer sexo com qualquer predador que saiba usar do discurso progressista. Ela aceita fazer sexo contra a vontade, criando-se assim uma zona cinzenta entre o consentimento e o estupro.
Abuso sem estupro
No popular, chamamos de estupro o evento violento em que um homem penetra uma mulher à força, ou, mais raramente, desacordada após ser dopada. Por isso os pró-vida ficaram indignados ao saber que a menina de 10 ou 11 anos “namorava” com o quase irmão de 12 ou 13. Não há violência envolvida, pois há consentimento.
É um consentimento muito esquisito, muito confuso, já que não há tesão. É um consentimento pro forma, possivelmente fruto da vontade de imitar os adultos. O pai do menino e a mãe da menina transavam, eles transaram também. Foi-lhes ensinado, por via direta ou indireta, que ser adulto é isso, e as crianças copiam a seu modo o que os adultos fazem.
Pouco após o caso dessa menina, apareceu o de uma atriz nascida neste século que, exposta por um colunista social, explicou contra a vontade que foi estuprada e deu o bebê para a adoção. Para piorar, uma apresentadora pró-vida acusou-a de abandonar o bebê. Creio que as figuras deploráveis dessa polêmica – o colunista social e a apresentadora – já receberam o merecido esculacho público. Eu não queria deixar batido, porém, que o relato da atriz tem uma inconsistência muito grande. Ela fala que descobriu a gravidez já perto de parir, e que o ciclo menstrual estava normal. Creio que ninguém tenha notado o fato por causa do dogma da “palavra da vítima”.
Daí eu me pergunto como seria possível conduzir uma investigação policial num caso assim. Se uma evidente vítima de estupro for levada na marra para uma delegacia e disser que foi estuprada em Marte, sua palavra merece crédito? A única explicação viável para a mentira é a vítima se sentir culpada pelos acontecimentos e se empenhar ao máximo em ocultar uma relação abusiva. Isso explicaria a “descoberta” tardia da gravidez. Espero que a atriz consiga um dia ter claro para si que ela não é a pessoa que deveria ter vergonha nessa história. De todo modo, é normal as pessoas decentes se envergonharem de passar por situações degradantes, mesmo sem culpa.
Não penso que esse detalhe da história deva passar despercebido, pois aponta para zona cinzenta criada pelo progressismo; uma zona cinzenta onde os jovens são caça mansa para predadores espertos.
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