Desde o Plano Real até a eleição de Bolsonaro, o PSDB foi o maior vilão do PT. Muita gente hoje, em especial os olavetes, pretende que toda a oposição tenha sido nada mais que um teatro de tesouras, em que dois marxistas apenas fingiam que brigavam. Tanto no plano ideológico quanto no faccioso, essa visão me parece deficiente.
Primeiro, há uma enorme variedade dentro do marxismo e da esquerda. Não é tudo a mesma coisa, embora seja tudo parecido. Segundo, quem supõe um acordo entre lideranças acadêmicas não faz a menor ideia de como seja uma reunião de departamento. É absolutamente impossível imaginar a petista Marilena Chaui e o tucano Giannotti (recém falecido) firmando uma aliança sincera e duradoura. Qualquer um da filosofia sabe que esses dois colegas de departamento eram brigadíssimos, e quem está com a turma de um não pode estar com a turma do outro.
Desde quando os esquerdistas estiveram na ilegalidade era a mesma coisa: cada facçãozinha odiava a outra. Em “A vida de Brian”, o Monty Python captou bem esse sentimento de facciosidade, com a Frente Popular Judaica odiando a Frente Judaica Popular, ou vice-versa. O racha era proverbial dentro da própria esquerda. “Esquerda unida”, dizia-se, “só dentro da cadeia”.
Assim, é muito mais parcimonioso dizer hoje que esquerda unida, só com Bolsonaro. É como se Bolsonaro fosse Xerxes, e uma porção de tribozinha da Hélade se unisse excepcionalmente para enfrentá-lo.
Protopetistas e prototucanos
Ainda assim, a hipótese dos olavetes ganha plausibilidade aos olhos de quem nunca teve contato com a esquerda, porque de fato, pela primeira vez em décadas vemos uma aliança entre ambos. E olhando em retrospecto, temos que, de fato, o PSDB é um partido marxista. Um marxismo amorfo, com uma ideia de social-democracia muito vaga.
Na verdade, desde antes de existir o PSDB, a turma que deu origem ao partido era chamada de direitista e de agente da CIA pela turma do PT: turma do PSDB é do CEBRAP, um think tank financiado pela Fundação Ford e integrado por professores da USP precocemente aposentados pelos militares, tais como Fernando Henrique Cardoso e José Arthur Giannotti. Se eles não eram pró URSS e eram financiados por uma entidade dos EUA, então, concluíam os proto-petistas, eram direitistas e espiões da CIA.
O CEBRAP defendia aquilo que conhecemos hoje como nova esquerda: escola de Frankfurt, teoria crítica. Coisa já pós-soviética. O PT, por outro lado, foi formado por um legítimo saco de gatos, que mistura estalinistas e teólogos da libertação. Ao contrário da maioria dos tucanos, os petistas congregaram egressos da esquerda armada e deram-lhe grande destaque. Do PSDB, só me ocorre Aloísio Nunes na esquerda armada. No PT, tivemos Dilma Rousseff, Franklin Martins, José Genoíno, José Dirceu… Além disso, a sigla conta com o puxa-saquismo incondicional do PCdoB, um partido de linha albanesa responsável pela Guerrilha do Araguaia.
Assim, resumidamente, o PSDB é o partido de almofadinhas uspianos bancados pela Fundação Ford; o PT, o partido de fãs de Cuba ou da URSS misturados com os carolas carniceiros da Teologia da Libertação. O papel da Igreja na difusão do terrorismo pelas Américas ainda não foi dimensionado. Registro aqui apenas o fato de o MST ter surgido de Pastorais da Terra, de o primeiro atentado terrorista do regime militar ter sido perpetrado por uma organização católica (a AP, depois absorvida pelo PCdoB) e de o Sandinismo contar com o apoio dos padres da PUC local. Na Venezuela, pinturas de Jesus e Maria carregando fuzis enfeitam as favelas. Os teólogos da libertação não costumam ser propriamente marxistas, senão hegelianos. Hegelianos cultuam o Estado e a História.
Ao contrário do PSDB, o PT sempre teve um veio intervencionista e estatólatra. Ao contrário do PT, o PSDB sempre teve um veio identitário, já que era egresso da Nova Esquerda e bancado pela Fundação Ford, que no mínimo desde os anos 70 banca identitarismo.
O PT e o PSDB na democracia
Estatólatra, o PT encontrou um nicho eleitoral no vasto funcionalismo público brasileiro. Aliou isso a propaganda, muita propaganda, e conseguiu convencer os românticos de que era o partido da ética.
Mas, porém, contudo, todavia, o PSDB, no governo, privatizou grandes estatais e enxugou os gastos públicos. Embratel, Telebrás, Vale do Rio Doce – uma significativa parcela da atividade empresarial brasileira deixou de ser estatal e passou a ser privada. Assim, o poder do funcionalismo público encolheu e o do grande empresariado cresceu. Enquanto esse processo acontecia, o PT agiu como uma força reacionária, que tentava manter o Estado grande e acenava sem parar para o funcionalismo. Concluído esse processo, restou-lhe, em 2002, redigir a Carta ao Povo Brasileiro, que pode ser lida como uma carta ao novo ator político vitorioso: o grande empresariado.
Dito de uma maneira bem simples, o PT de Lula trocou de senhor e passou a servir aos senhores do PSDB. Se era necessário escolher sindicatos de funcionários públicos de um lado cartéis empresariais do outro, Lula não pestanejou.
Ora, as privatizações tucanas estão longe de serem livres de controvérsias e escândalos. Datam já dessa época os escândalos envolvendo o uso indevido do BNDES para favorecer empresariados amigos. BNDES e Daniel Dantas já apareciam nas páginas policiais por causa da privatização da Telebrás com FHC. Depois, apareceram por causa da Oi já privatizada, com Lula.
Não fará sentido redigir uma história do capitalismo de compadrio corrompendo a democracia desde as privatizações? Assim enxergo eu: a Fundação Ford, uma ONG bancada por gigantes monopolistas, comprou o PT, e fez do PT um novo PSDB. Como lemos nesta Gazeta, até a CUT ganha dinheiro dessa fundação. Sindicalista nunca foi de ficar com conversa de “mulher negra”, de “LGBTQIA+”. Antes era tudo barbudão de vermelho. Quando muda assim, tem dinheiro da Fundação Ford no meio.
E o funcionalismo?
Uma vez que chegou ao poder, o Lula deu um pé na bunda do funcionalismo. Só uma área do funcionalismo ganhou empregos, que é a academia. Ainda assim, os ganhos da carreira são bem mais modestos do que na época de FHC. Com Lula (e Haddad em particular), a classe acadêmica foi subjugada e comprada, com fins de propaganda.
O maior golpe de Lula no funcionalismo foi a reforma da previdência. Foi isto que causou a saída de uma série de parlamentares que fundaram o PSOL. Durante os governos petistas, era um partido de oposição mais estatólatra que ficava chamando o PT de neoliberal. Mas, ainda assim, não se vive só de funcionalismo. Então o PSOL encontrou mais um nicho eleitoral, que é a defesa dos interesses do narcotráfico, disfarçada de defesa dos direitos humanos.
O Brasil não tem mais um partido que possa ser identificado sobretudo com a defesa dos interesses do funcionalismo, porque essa casta caiu com as privatizações.