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Bruna Frascolla

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Violência

O Rio de Janeiro não precisa de problemas inventados

moise racismo
Rua Visconde de Pirajá, em Ipanema, na Zona Sul do Rio de Janeiro. (Foto: Bruna Frascolla)

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Em outros tempos, um crime de ódio racial que leva a vítima a óbito tinha um contorno claro no Ocidente: uma pessoa (em geral um homem) andava por uma rua escura quando um grupo de skinheads covardes o atacava. O homem podia ser um judeu ou um negro, um árabe ou um hispânico, a depender do país. O Brasil não era pródigo em crimes de ódio racial, pelo simples fato de que por aqui não acreditamos em raça, mas sim em cor. Além disso, é necessária uma grande uniformidade de raças (lá entre os países de formação protestante) ou de cores (entre nós) para que um homem sozinho possa ser “o diferente”. Judeus religiosos são um bom alvo, já que são sempre minoritários (exceto talvez em Israel) e botam um solidéu marcando a identidade. Um negro, quando minoritário, sequer tem a chance de esconder a raça: todo a sua pele o delata. Por isso, é um excelente alvo em locais onde é minoria.

Por questões demográficas e culturais (a crença em raças é um dado cultural), os crimes de ódio racial tendem a aparecer em países protestantes ricos e brancos. Por questões demográficas e históricas, outro habitat dos crimes de ódio racial é a Argentina e sua circunvizinhança. Nazistas transformaram aquele local em refúgio e mantiveram a sua cultura política. O país é de maioria branca, com uma colossal migração italiana tardia, ocorrida até o segundo quartel do século XX. Junta-se o caldo de cultura peronista (que apoiou os nazistas mesmo após a queda) à imigração contínua daqueles que vêm do país que aclamou ou em breve ia aclamar Mussolini. Perón e Mussolini eram dois capachos de Hitler amados pelos seus povos. A Argentina é um lugar complicado.

Delírio coletivo na imprensa comum?

Agora as manchetes anunciam um crime de ódio racial no implausível Rio de Janeiro. Não contra um oriental – que é um tipo raro no Rio – mas contra um negro; mais precisamente, Moïse, natural do Congo. Ainda que houvesse surgido uma célula neonazista no Rio, não é uma ideia minimamente exequível a de pegar todos os negros e matá-los na porrada. E isso por uma questão demográfica: negros no Rio estão longe de ser aquela minoria chamativa numa multidão de brancos.

Eis que surgem imagens do brutal assassinato do negro e os criminosos eram negros e mulatos. Branco, só o socorrista que apareceu depois.

Estamos presenciando um delírio coletivo? Mais ou menos. Estamos presenciando a imposição de um dogma que vandaliza o vocabulário e nos impede de olhar a realidade. O dogma é de que o nada mais negro é que uma eterna vítima do “racismo estrutural”. Negros não são seres humanos dotados de agência e de personalidades complexas. Todo o comportamento de um negro será explicado por uma agência externa, que é o tal do racismo estrutural. Se um negro se suicidar após receber o diagnóstico de uma doença incurável, sua decisão, nas mãos desses desumanizadores dogmáticos, será explicada como resultado do racismo estrutural. Porque eles são incapazes de olhar para o negro como um ser humano.

Com esse dogma, vandaliza-se o conceito de racismo. Se aceitarmos que o racismo é algo que só pode ser exercido por quem tem poder, então Hitler na cadeia não era racista.

Os problemas do Rio

Depois de nos proibir de olhar para os negros como seres humanos, o dogma nos proíbe de enxergar a cidade com seus problemas mais evidentes. Já contei aos leitores que passei este réveillon na Zona Oeste do Rio de Janeiro ouvindo tiros de fuzil junto com fogos. Comemoração. Contei também que o pessoal da Zona Oeste é neófito em matéria de tiro de fuzil: quem mora na chique Copacabana ouve. Eis a foto que tirei este ano na Rua Visconde de Pirajá, altura do cruzamento com a Vinícius de Moraes, no bairro de Ipanema:

O território está marcado. Não é o Estado brasileiro quem manda ali.

Eu poderia dizer pela enésima vez que isso remonta a Brizola. Poderia reclamar de Fachin, que impede a polícia de entrar em área dominada. Mas os leitores já estão carecas de saber disso tudo. Então vou dizer apenas que é aviltante a discussão girar em torno da cor do morto. Ah, bom, se fosse mais claro ou brasileiro, podia!

Quando ouvir ou ler isso, desligue a TV ou o rádio, cancele a assinatura, porque é um desrespeito à dignidade humana e à nossa inteligência.

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Problemas anteriores ao tráfico

Desta vez, como é Zona Oeste, o tráfico é exculpado e os olhos se voltam para as milícias. Eu não conheço a Barra da Tijuca direito; mas, se Ipanema é área dominada, faz perfeito sentido que a Barra o seja também. A Barra é a área nobre da Zona Oeste. É o prolongamento da orla da Zona Sul após a interrupção por vários acidentes geográficos que impedem banho de mar.

A milícia de fato tem uma dinâmica econômica bastante diferente da do tráfico carioca, já que sua principal mercadoria é a segurança. (Digo “tráfico carioca” porque o PCC, em São Paulo, também parece ter uma receita variadíssima e incluir a segurança de comunidades no pacote. Inclusive o primeiro produto vendido pelo PCC é a segurança, dentro dos presídios, para os presidiários). Traficante à carioca é escandaloso, ostenta fuzil e mata à toa. Sua principal mercadoria é droga. Havendo compradores em suas bocas, todo o resto da cidade pode ir para os ares – e é bom que vá para os ares, pois terrorismo é um método eficaz de intimidação.

A milícia é bem diferente disso; é mais parecida com o PCC. A mais famosa, que era a do Rio das Pedras, já teve o nome de Liga da Justiça. Não sei que fim levou, e li em algum lugar que houve uma decisão política, entre eles, de não serem reconhecidos por nenhum nome. Hoje, as organizações usualmente apontadas como ligadas à milícia são as Associações de Moradores. É tudo muito discreto e você não vai ver nenhum estilo musical louvando milícia

As milícias vinham aparecendo no noticiário por causa de prédios que caíram. Em minha opinião, a questão dos prédios é uma das coisas que mais deveriam atrair a atenção de quem quisesse entender o Rio de Janeiro. Simplesmente algumas pessoas derrubam mata, sobem prédios imitando os de classe média e vendem. A prefeitura fica com drones tentando flagrar as construções; volta e meia derruba um. Aí sobem de novo.

De todo modo, acho interessante notar que a ideia dos prédios não saiu da cabeça dos milicianos. Sendo a área do Rio das Pedras plana, os migrantes nordestinos construíram prédios. Eis como é uma favela plana da Zona Oeste:

Rio das Pedras, próximo ao SuperMarket.

A origem desse tipo de construção não é difícil de apontar, já que os paraibanos e cearenses que ocuparam a área parecem ter alterado seu estilo de construção acrescentando pavimentos indefinidamente.

Uma questão que nunca vi aventada, porém, é a semelhança entre as milícias da Zona Oeste e a máfias italianas. Essa é uma questão relevante porque a Zona Oeste de fato foi um local de colônia de italianos do Sul. Em famílias da região de origens calabresas, contam-se histórias de vendetta como solução para segurança. Se uma família de taxistas de origem calabresa perdeu, ali pela década de 50, um dos seus num assalto covarde, a solução não é chamar a polícia: o patriarca calabrês vai chamar os filhos e eles farão emboscadas para matar assaltantes. Como os funcionários públicos não queriam trabalhar mesmo, o resultado deixa todo mundo feliz e ninguém reclama.

Então juntamos italianos brabos de área de máfia, nordestinos do semiárido com cultura de honra e polícia ausente (alô, Brizola!), e eis o resultado da Zona Oeste.

A única coisa que me espantou no caso de Moïse foi a cara de pau de fazer isso em plena área turística.

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