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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Gastos públicos

O suicídio assistido seria uma questão de saúde pública?

(Foto: Bigstock)

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Traduzi para esta Gazeta um texto sobre o avanço do suicídio assistido no Canadá, que em março será graciosamente estendido aos doentes mentais e, quem sabe, mais adiante, para os “menores maduros”, dispensando o consentimento dos pais. O governo do Canadá já criou uma comissão para estudar esta última proposta. Segundo o autor, Jarrett Stepman, os cidadãos dos Estados Unidos deveriam ficar atentos ao Canadá por um motivo específico: seria a decorrência do fato de o Canadá ter um sistema de saúde pública. Nos EUA há um grande sistema de saúde pública desde o Obamacare, então bem poderia ser uma questão de tempo até a moda pegar por lá.

Por um lado, o argumento dele é bastante lógico: se o governo assume os custos da saúde, é natural que queira enxugar gastos; logo, é natural que queira dar um fim nos inválidos. O suicídio assistido seria, na verdade, um mero programa governamental de corte de gastos.

Por outro lado, o Canadá não é o único país do mundo a ter um sistema de saúde pública. Se existisse tal correlação causal, a França, a Inglaterra, o Brasil, a Rússia, a Índia e até a China teriam suicídio assistido. Vejamos este mapa da Wikipédia anglófona sobre a legalidade do suicídio assistido:

Azul escuro: legal. Azul claro: legalizado pela Suprema Corte, mas não regulado pelos legisladores.

Peguei-o na Wikipédia anglófona. O verbete ainda informa: “A assistência médica ao suicídio é legal em alguns países sob certas circunstâncias, incluindo Áustria, Bélgica, Canadá, Alemanha, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Espanha, Suíça, parte dos Estados Unidos e todos os estados da Austrália”. As lacunas no mapa australiano se devem aos territórios: em estado, pode; em território, não pode. “As cortes constitucionais”, isto é, o STF alheio, “da Colômbia, Alemanha e Itália legalizaram o suicídio assistido, mas seus governos não legislaram, nem regularam a prática ainda”. Ou seja, enquanto na Austrália o suicídio assistido vem de baixo para cima, na Colômbia (1997), Itália (2019) e Alemanha (2020) foi canetada; e ainda não funciona porque os legislativos ainda não legislaram a respeito. Se a opinião pública desses países for contrária, os deputados tenderão a fazer corpo mole, deixando, na prática, proibido. Assim, sabe-se lá como, em 2022 mataram dois na Itália e um na Colômbia. Daí pode se seguir a lenga-lenga do Congresso omisso, que costuma embasar o ativismo judicial, e sair mais uma canetada regulatória. Quanto à Alemanha, seus cidadãos eram os fregueses número um das clínicas de suicídio da Suíça.

O artigo segue explicando que nem todo país ou estado liberou geral, e em geral pedem comprovação de que é doença terminal. No entanto, existem alguns países despirocados: “Em outros países, como a Alemanha, Canadá, Suíça, Espanha, Itália, Áustria, Bélgica e Holanda, um diagnóstico terminal não é exigido e a eutanásia voluntária também é permitida.” No mais, cabe apontar que a Espanha é a caçula da lista, com a eutanásia e o suicídio assistido aprovados em 2021.

Ficamos assim, então: dos países anglófonos fora da África, o único no qual o suicídio não é legal é a Inglaterra, que conta com o NHS. Este é a inspiração do nosso SUS.

Obamacare X NHS

A ideia do NHS, que inspirou o SUS, é ter um aparato estatal de saúde pronto para atender a todos. O sistema tem hospitais públicos e profissionais de saúde que são funcionários públicos. Lá e cá há espaço para parcerias público-privadas, mas o essencial é isto: saúde estatal financiada com impostos. Já a ideia do Obamacare consiste em universalizar a saúde por meio de planos de saúde, sejam eles estatais ou subvencionados.

O Canadá, a França e a China têm uma saúde pública mais parecida com o Obamacare do que com o SUS. A Rússia, com Iéltsin, fez um monte de privatizações, migrou para um Obamacare, desagradou a população e retomou o sentido SUS. O NHS é do pós-guerra, então não é de admirar que as ex-colônias britânicas tenham uma saúde pública mais parecida com a França do que com a Inglaterra.

Nossos liberais de modess seriam os primeiros a aplaudir esse tipo de iniciativa, pois “enxuga a máquina pública” enquanto cria alternativas de mercado. Mas o que acontece, na verdade, é a criação de um mercado mirim de mentirinha, com oligopólios subsidiados que acabam funcionando como um cartel que oferece serviços de má qualidade. Eis o que Sowell tem a dizer do Obamacare: trata-se “controle estatal da economia, enquanto deixa a propriedade em mãos privadas. Desse jeito, os políticos conseguem dar as cartas, mas quando suas brilhantes ideias dão em desastre, eles sempre podem culpar os donos do negócio no setor privado. […] Propriedade estatal dos meios de produção significa que os políticos admitem as consequências das suas políticas, e têm que encarar a responsabilidade quando as consequências são desastrosas – coisa de que Barack Obama corre igual ao diabo da cruz. Assim, o governo Obama pode forçar arbitrariamente os planos de saúde a cobrirem os filhos dos clientes até os 26 anos. É óbvio que isso cria publicidade favorável ao Presidente Obama. Mas se esse e outros éditos do governo causarem o aumento das mensalidades, então dá para jogar a culpa na ‘ganância’ dos planos de saúde”.

Uma alternativa é não deixar o preço subir, subsidiando todo o mundo. É meio o que os EUA faz com um monte de coisa. Por exemplo: libera crédito para o jovem fazer bacharelado em gênero e cinema numa universidade particular, o jovem fica desempregado e no fim das contas o governo “anistia” a dívida. Se há um envolvido com motivos para ficar feliz, é a empresa.

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Conflito de interesses

Uma outra coisa que não fecha no artigo que traduzi é a inclusão de jovens. Como o autor mesmo aponta, o governo pena sobretudo em países com muitos velhos e poucos jovens. Ora, é racional, de um ponto de vista econômico, matar gente que receba previdência e dê despesas com saúde: velhos e deficientes. Mas hoje qualquer um que quiser um laudo de doença mental, acha. Muitos adolescentes podem ter vontade de morrer; e, se essa prática deixar de ser tabu e for incentivada, é correto dizermos que o Canadá está jogando fora os poucos jovens que tem. Economicamente, não faz sentido matar o jovem só por causa de uma fase emo, ainda antes de ingressar no mercado de trabalho.

Uma coisa que o Canadá e os EUA têm em comum é a medicina trans. Com ela, o jovem precisa tomar hormônios pelo resto da vida. Torna-se, portanto, um cliente obrigatório. Quem fica feliz com isso são os hospitais e laboratórios privados, já que o governo paga tudo. Então penso que é o arranjo ao estilo Obamacare que fomenta a expansão da eutanásia: porque é mais um serviço pelo qual os agentes privados cobram. Quanto mais gasto médico houver para essa gente, melhor. Daí inventam um monte de doença psiquiátrica para dar um monte de droga e viciam todo o mundo.

O melhor dos mundos para um Estado sovina seria ter uma população que cultiva hábitos saudáveis, desde a alimentação ao não-uso de drogas (legais ou ilegais), e que na hora de se aposentar recebesse um raio na cabeça. Parte dos alvos do MAID (o programa de eutanásia do Canadá) serve para ajudar o governo, pois elimina velhos e doentes sem condições de trabalhar. Mas a partir de março a maior parte dos alvos do MAID servirá só para ajudar os hospitais, pois vai incluir gente fisicamente sadia e ativa no mercado de trabalho, que às vezes está só passando por uma fase emocional ruim. Têm ainda a vantagem de não poderem voltar da tumba para dizer que se arrependeram e que o programa deve ser interrompido – ao contrário dos jovens que mudaram de sexo.

Valores contam

Ainda assim, o modelo não explica, pois não é único. Na China, onde há um modelo parecido, a eutanásia é crime. Não creio que o Partido Comunista Chinês seja exatamente um humanista; creio, portanto, que o mais sábio é pôr todo o mundo para trabalhar, em vez de fomentar o uso de drogas lícitas e ilícitas, a obesidade, a disforia de gênero e o suicídio. Creio ainda que a disparidade entre a situação da China e da América do Norte se deva à clareza quanto ao controle: na Ásia, está claro que o Estado manda e as empresas amigas obedecem; na América, políticos, burocratas e megaempresários vivem numa suruba confusa, na qual empresários decerto têm capacidade de mando. A Pfizer que o diga.

Mas essa suruba existe na Europa e na América do Sul também. Se tudo se resumisse aos estímulos econômicos dessa suruba público-privada, já haveria uma clínica da Planned Parenthood fazendo aborto com dinheiro do SUS em cada capital brasileira. Pode ter canetada no judiciário, pode ter beautiful people dizendo que é lindo; pode até, quem sabe, criminalizar o discurso anti-aborto como discurso de ódio, já que a ONU quer considerar aborto um direito humano e falar contra os direitos humanos é discurso de ódio. Mas nada disso torna o discurso palatável à sociedade brasileira. O fato é que aqui as eleições fazem os políticos esquerdistas irem todos à missa, ao passo que nos EUA, em plena escalada inflacionária, a esquerda resolveu pautar a eleição por direito a aborto, casamento gay e acesso a medicamentos com tarja. Os valores de um povo pesam. No Canadá, uma associação médica teve coragem de usar a economia do governo como um resultado positivo do MAID. É de se perguntar em quantos países uma associação médica teria coragem de publicar tal coisa.

Se passar suicídio assistido no Brasil, será como na Colômbia: por canetada. Já na Nova Zelândia passou por referendo em 2020. Brasil e Colômbia são países religiosos. Isso explica? A França é bem secular, mas não tem suicídio assistido.

Não dá para explicar com um fator só por que culturas tão heterogêneas como a França, a China e o Brasil convergem em deter o suicídio assistido. O que podemos apontar, porém, é que entre as culturas mais parecidas, quem não tem suicídio assistido é a Inglaterra, que tem o NHS, ao passo que o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia, que têm suicídio assistido, têm algo similar ao Obamacare.

Observando isto, podemos concluir que o problema não é o gasto público, mas sim uma saúde guiada pela farra de empresários com dinheiro público. Afinal, a cultura é mais ou menos a mesma, e o que varia é o maior estatismo da parte da Inglaterra.

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