| Foto: Rodolfo Buherer/ Arquivo/ Gazeta do Povo
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Um loser. O anglicismo vem a calhar quando, em meio ao falatório post mortem das redes sociais, vejo uma professora doutora concursada de federal dizer que acha o marido charmoso por ele ter sido processado por Olavo de Carvalho. Quem é Olavo de Carvalho? Um escritor sem diplomas reconhecido como filósofo espontaneamente por uma montanha de gente. Quem era o marido em questão? Um professor doutor em filosofia concursado em federal. Um anônimo entre tantos doutores em filosofia concursados, e que não é conhecido por nenhuma ideia própria.

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Se Olavo de Carvalho detivesse influência suficiente para prender alguém, isso poderia dar um charme. Mas quem tem a prerrogativa de tirar fotos fazendo cara de Jesus Cristo olhando pro alto e dizer “Sou um bravo perseguido político disposto a dar a vida pelos meus ideais!” são os olavetes e os bolsonaristas. É gente como Oswaldo Eustáquio, que entrou na cadeia andando e saiu de cadeira de rodas. Cadeia, diga-se de passagem, à qual chegou sem o devido processo legal. Foi-se o tempo em que ser de esquerda poderia levar à cadeia ou morte. O custo de ser um intelectual de esquerda numa federal é zero. O custo social de ser concursado e ficar tuitando slogans para a sua turma é zero. Ao contrário: quem quiser tocar uma existência folgada e jogar pra torcida, que seja de esquerda e corra para aderir aos slogans.

A face individual da derrota

Nesse cenário de massificação, que faz as pessoas se perceberem anônimas, ser notado por Olavo de Carvalho é uma conquista. No frigir dos ovos, o acadêmico acabou ganhando um novo charme para a mulher não por um ato de bravura (não há bravura em jogar para a torcida), mas sim por ter se destacado um cadinho em meio à multidão de haters de Olavo. É o reconhecimento tácito de assimetria colossal, já que não havia nada que o acadêmico pudesse fazer contra Olavo para deixar Roxane orgulhosa.

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Impressiona que essas pessoas não vejam esse tipo de declaração como uma confissão de derrota na vida. Quem é você? Um pé de página na vida de um cara que você odeia e, ao mesmo tempo, usa para ser alguém na vida. Usa de um jeito que importa até na apreciação pelo cônjuge.

É um espetáculo triste. São pessoas com as quais convivi, das quais gostava, e com as quais passava horas conversando sobre uma infinidade de assuntos não-relacionados à política do momento. Ainda é possível fazer esse tipo de coisa nos arredores de uma universidade federal? Não tão cedo, inclusive porque elas estão todas fechadas, e está todo mundo em casa, tuitando. Sem olhar para a cara de ninguém diferente de sua própria bolha, fica fácil imaginar o outro como um demônio, um sub-humano. Quando os “demônios” mostraram sua força numérica, eles entraram em parafuso.

A impressão que dá é que essas pessoas foram se tornando unidimensionais ao longo dos últimos anos. Elas são o que aparece nas redes sociais, e não conseguem imaginar que alguém seja mais do que o que aparece nas redes sociais. Parece que, antes de saírem desumanizando os outros, desumanizaram a si próprias. Viraram caricaturas ambulantes, incapazes de uma apreciação profunda de seres humanos.

Mas também, se ousassem enxergar Olavo como alguém que às vezes tem razão e às vezes não, que foi bondoso com uns e mau com outros – em suma, se o enxergassem como um ser humano e não como Satanás encarnado –, qual seria o sentido de suas vidas? Eles fizeram suas identidades girarem em torno da ideia de que combatem o Mal. Negar que todo esse empenho era dirigido a um ser humano tem um custo emocional altíssimo. Significa admitir que você é um ativista de sofá rancoroso, irrelevante no debate público. Por esse motivo psicológico prospera a desumanização do “extremista”.

A internet toma o lugar da universidade

Olavo de Carvalho não deixa de representar o triunfo da internet sobre a universidade como o reino por excelência do embate de ideias. Entre a universidade e as ruas cheias de analfabetos há um abismo. Se os analfabetos não são muito dados a discutir ideias políticas mais distantes da vida comum (discutir briga de vereadores lhes é muito mais factível do que discutir orientação ideológica de agentes do plano federal), a classe média, porém, é o âmbito das polêmicas. Nos fins de semana e nos corredores do local de trabalho, adora discutir política e ideologia. Para que tudo não fosse fogo de palha, a classe média se valia de jornais para amplificar as suas palavras, fazendo-as conhecidas para fora do seu círculo imediato. Para isso, o indivíduo precisava escrever seus pensamentos dentro de um número de toques e submetê-lo à apreciação do editor – que poderia até gostar dele, mas ter outras coisas para publicar naquele espaço limitado pela quantidade de papel.

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Se o seu artigo saísse e o povo resolvesse lê-lo, a sua sensação teria sido mais parecida com a de um náufrago que pôs uma carta numa garrafa do que com a de um tuiteiro. Afinal, o papel não reage, e você não faria a menor ideia do que as pessoas que você não conhece acharam, a menos que elas se dessem ao trabalho de mandar uma cartinha para a redação, e a redação lhe entregasse.

Na internet, todos podemos escrever o que nos der na telha; e, se os nossos escritos agradarem, a única barreira será a da língua. O advento da caixa de comentários tirou o escritor da solidão, e ele pôde ter uma ideia do seu leitorado. A falta de leitores deve ser o maior desincentivo à escrita. Com a internet, ficou fácil o leitor deixar os seus comentários e afastar da cabeça do escritor a ideia de que ninguém o lê. A internet, portanto, acaba sendo um incentivo à escrita e ao pensamento.

Uma vez que haja uma caixa de comentários agitada, acaba se constituindo uma comunidade de interessados num determinado assunto. Tudo isso ocorre sem que haja supervisão de alguém exterior à comunidade.

E assim surgiu o fenômeno Olavo de Carvalho. Proscrito de jornais e revistas, alojou-se na internet. Lançou um blogue (aquele encimado pelos dizeres “Sapientiam autem non vincit malitia”), criou perfil no Orkut, inventou curso por telefone (propagandeado pelas redes). Foi à luta e venceu. Com certeza, em termos de alcance, saiu-se melhor enquanto intelectual público do que qualquer acadêmico remunerado pelo erário para fazer propaganda política. Quanto aos departamentos de filosofia, então, nem se fala. Ninguém chama Marilena Chauí de guru de Lula, nem Giannotti de guru de FHC. Reconhece-se tacitamente que ambos não têm relevância na formulação das ideias dos partidos que defendem. O próprio Giannotti foi, contra Merquior (que não pegou a internet e atuava bastante em jornais), um militante contra o exercício da atividade filosofia na política; preferia confiná-la ao exame de textos de autores mortos. Olavo de Carvalho é acusado de ser o mentor intelectual de um movimento político brasileiro que chegou à chefia do Executivo. O último pensador brasileiro a poder receber essa acusação é Oliveira Vianna, ideólogo do varguismo.

Não acho que alcance de público e influência sobre governos sejam os melhores parâmetros para avaliar um intelectual. O governo pode ter afinidades com o totalitarismo; o público pode gostar de ouvir besteira. Sou mais Gilberto Freyre (udenista) do que Oliveira Vianna, embora a UDN não tenha ido para lugar nenhum. Eu me acho uma intelectual melhor do que Márcia Tiburi, embora ela tenha muito mais alcance do que eu.

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Se eu fosse obcecada por falar mal de Márcia Tiburi e um marido me achasse charmosa por levar processo dela, isso quereria dizer que Márcia Tiburi tem algo que eu considero muito importante, e que eu mesma não tenho.

A obsessão da academia por Olavo de Carvalho revela a derrota da universidade enquanto produtora de ideias. A pessoa de Olavo de Carvalho, egresso da internet, tem muito mais relevância no debate público do que a pessoa de qualquer professor da USP.

A face institucional da derrota

À morte de Olavo, saíram notícias e mais notícias de especialistas que pontificavam sobre a periculosidade de sua herança intelectual. O que chama a atenção é a profundidade de um pires, a mesma unidimensionalidade do acadêmico com o qual começamos este texto. Leio o artigo de um professor da FGV no Estadão e não encontro um único motivo legítimo para Olavo ter atraído seguidores. Leio apenas que suas ideias são perigosas e seus adeptos são extrema-direita.

Num artigo da Veja, vemos um cientista político da UERJ e uma sem diplomas alertando para os planos maquiavélicos da extrema-direita malvadona. E mais: o livro da sem diplomas é apontado como “o melhor livro sobre a atual extrema direita brasileira”. Tudo aquilo que diziam contra a falta de estudos formais de Olavo foi esquecido. Para piorar, trata-se de uma discípula de Ayan, um ex-olavete que rompeu com Olavo e entregou todo mundo para o STF.

No frigir dos ovos, a academia aderiu à tese de um outro intelectual sem diplomas da internet. Trata-se da tese desumanizadora segundo a qual os “extremistas” são como robôs que acreditam em qualquer coisa que leiam na internet, que precisa ser censurada logo. Bolsonaro teria sido eleito pelo Golpe do Zap-Zap, que lavou o cérebro das pessoas com a mamadeira de piroca. O nível do debate público é esse. Com diploma ou sem, uma multidão de anônimos nas redes sociais se sente muito importante por combater seres humanos que eles enxergam como demônios.

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