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Na noite de quarta feira, Rui Costa avisou pelas redes sociais que todo adulto precisará ter tomado as duas doses (ou a dose “única” da Janssen) para andar de ônibus interestadual. Até aí, tudo bem dentro da minha bolha interiorana. O decreto atingiria quem mora perto das divisas. Aqui no Recôncavo, onde estou, a divisa mais próxima é com Sergipe, e não há nenhuma grande comunicação entre Recôncavo e Sergipe. Supus que fosse problema para o Sudoeste do estado, que tem muita relação com o norte de Minas, ou com a região norte do São Francisco, que tem relações com Pernambuco. Como as passagens aéreas interestaduais baratearam, nem compensa ir de ônibus do Recôncavo para São Paulo. E mesmo assim, para as regiões de divisa, tem o transporte alternativo. As grandes companhias de ônibus é que veriam seu faturamento cair. Fui dormir achando que o governador tinha dado mais uma canetada inócua para ficar bem na fita.
Durante a mania do lockdown, que culminou, na Bahia, com o surto do Cabo Wesley e uma ameaça de greve de polícia, eu comentei que as medidas que traziam tanta angústia à capital eram nada para mim, na minha vida interiorana. E que a minha perspectiva é mais relevante, do ponto de vista estatístico, porque a maioria esmagadora da população baiana vive fora dos grandes centros urbanos, e até mesmo dois dos três maiores centros urbanos têm uma população com um estilo de vida rural. Você não vai ver num parque urbano do Sudeste aparecer um pastor tangendo bodes. Em Feira de Santana, pode acontecer. Você pode ler minhas continhas neste meu texto sobre Rui Costa às voltas com o “povo da roça”. Na verdade, se quiser entender a situação da Bahia na pandemia, vou recomendar que o leia. Eu mesma reli para refrescar a memória.
A mudança de lá pra cá é que a Pititinga está de site próprio e funcionando na web. Descobri também que o povo baixa aplicativo pra ouvir no celular uma das rádios locais, que são pelo menos três. Mas o sinal da internet e do telefone não são bons na zona rural, então falhas de comunicação são previsíveis. No mais, acrescento que a propriedade rural às vezes é parte de um somatório das receitas diárias: o homem tem uma rocinha de onde tira mandiocas, frutas e ovos, que acaba sendo um seguro não-pecuniário contra a fome, e tem um ofício urbano que é pago em dinheiro. Mas a economia fica pra outro texto.
Como eu disse nesse texto, o toque de recolher no interior pegou boteco. O comércio abre muito cedo e fecha muito cedo. É como se o toque de recolher fosse feito sob medida para não incomodar a maioria do eleitorado. Ainda assim, foi para a TV chorar feito criança para o povo se apiedar dele.
O decreto é pior
Dormi assim na quarta e acordei com o Correio da Bahia jogando confete num decreto que, na verdade, é ainda mais draconiano. Primeiro, não é só ônibus interestadual: é intermunicipal também. Segundo, não é só ônibus intermunicipal: é veículo de transporte alternativo também. Terceiro, que, se eu resolver ter um carro, não vou poder acessar o Detran, porque ele e o SAC (que emite carteiras de identidade) vão exigir comprovante de vacinação “completa” (aspas, porque daqui a pouco obrigam a tomar a terceira dose).
No mais – e isso o Correio da Bahia não contou – o passaporte vacinal vai ser exigido para que crianças frequentem “espaços culturais como cinemas e teatros, museus, parques de exposições e espaços congêneres”, segundo decreto Nº 20.894 de 19 de novembro de 2021, publicado exemplar do Diário Oficial do Estado do dia 20 de novembro. Como já aprendemos ano passado, fechamento de 15 dias a um ano, e obrigatoriedade de máscara vira passaporte vacinal atualizado.
Transporte intermunicipal é de suma importância na Bahia. É muito comum as pessoas morarem numa cidade como a minha e trabalharem num centro urbano próximo. Muritiba é uma cidade muito próxima que cresce. Em menos de dez minutos de carro sobe-se o monte e chega-se ali. Por isso, as pessoas que moram aqui e pegam uma van que sai quando lota. Feira de Santana é a segunda maior cidade da Bahia e recebe trabalhadores cachoeiranos do mesmo jeito: de van. Sair de Cachoeira para Feira de Santana é mais rápido e mais barato do que sair de Jacarepaguá para Ipanema. Custa 13 reais e leva uma hora.
Além disso, como há essa rotatividade natural, as pessoas sabem que devem ir procurar tal coisa numa cidade. Para usar os correios, prefiro caminhar até São Félix, que tem um concursado sério e não dá fila. Os cachoeiranos que querem despachar encomendas fazem a mesma coisa. Lá, avistei uma placa de chaveiro e lembrei que precisava fazer a cópia de uma chave. O chaveiro de não tinha aquele modelo e me recomendou ir a Cachoeira atrás do chaveiro Ramon.
Se já é assim nas miudezas do quotidiano, imaginem médico. Bastou tentar marcar uma consulta de oculista para descobrir que São Félix tem a Santa Casa mais equipada, mas que a cidade próxima especializada em olhos é Muritiba. No fim das contas, o livre mercado me salvou: o dono da ótica recebe um oculista uma vez por mês para marcar consultas em conta.
Enquanto o pobre das metrópoles está acostumado a zanzar por bairros, o baiano do interior está acostumado a zanzar por municípios. Se for endinheirado, faz isso de carro próprio. Se não, de transporte alternativo. Alternativo não é irregular; em geral, são cooperativas de motoristas autônomos, cada qual dono de sua van, com um calhamaço para dar passagens de papel a quem precisar mostrá-las ao empregador.
49% “completamente” vacinados
O que mudaria essa disposição do governador? Em 2020, fazia questão de não incomodar o grosso do eleitorado; em 2021, põe-nos a faca no pescoço. A resposta é simples: o povo daqui não engoliu a propaganda e não quis tomar as duas doses da vacina.
O G1 tem um mapa de vacinas por unidades federativas que vai se atualizando diariamente. Ontem o imprimi em PDF com dados relativos a quarta-feira, isto é, ao último dia em que os baianos não sabiam do decreto draconiano de Rui Costa. O Brasil contava com apenas 8 unidades federativas com menos de 50% de adultos “completamente” vacinados: Acre (45%), Amazonas (47%), Amapá (36%), Bahia (49%), Maranhão (45%), Pará (39%), Roraima (30%), Tocantins (48%). Praticamente a Amazônia (menos Rondônia) e a Bahia.
Há quem olhe para esses números e atribua de imediato à ineficiência do estado. Eu não faço isso. Primeiro, observem que graças ao STF há, nas regiões ricas e urbanas, uma pressão pela vacinação vinda de empregadores. Quanta gente não tomou vacina com medo, obrigada por empresa? Na Bahia, reina a informalidade. Isso acarreta maior liberdade e, por conseguinte, menor vacinação.
Outra possibilidade a ser levada em conta são as reações adversas. A Amazônia foi devastada pela variante mais agressiva da covid. E, como nos conta Eli Vieira nesta Gazeta, há indícios de que a vacina de RNA mensageiro faça mal a quem desenvolveu a imunidade natural. Não será factível que os amazônidas tenham percebido reações adversas pesadas na primeira dose e se recusado a tomar a segunda dose?
No mais, a população rural conta com bem menos sedentários que a população urbana. Se temos visto atletas caírem com mal súbito, e jovens sofrerem mais com as vacinas do que os velhos, não será factível que a população rural seja mais suscetível a males súbitos? Se for o caso, explicaria pouca vacinação da população baiana. Eu não acredito que seja falta de logística do governo do estado. Rui Costa vai entrar em guerra com a população.
Mentiras e irracionalidade
Minha janela dá para a rua. Antes do decreto, eu vinha ouvido gente reclamar que vai ter que tomar a segunda dose “para poder viajar”, e que ia perder dias de trabalho de novo. A primeira dose vacina deixou tão derrubado que não pôde trabalhar.
Antes do decreto já tinha gentes de saúde e de prefeitura dizendo para a peãozada que tinha que tomar vacina “pra poder viajar”. Alguns tomavam no susto por isso. Na noite de quarta-feira, a primeira notícia bombástica do Instagram do governador era que só os duplamente vacinados poderiam entrar no hospital. Só depois de muito ruído – e comunicação é um problema por aqui – ele esclareceu que a medida era para as visitas, não para os doentes. Ele deve ter feito isso para as pessoas acharem que têm que se vacinar para marcar médico.
Ontem saí uma vez. O assunto ainda era incipiente na boca do povo. Ouvi só uma dupla de bicicleta conversando. Um dizia ao outro que tomou as duas doses e incrivelmente não teve naaaaada. Hoje, as palavras relativas ao assunto se faziam ouvir nas ruas, sem que eu conseguisse sempre, em movimento, pescar a conversa. Mas ouvi uma na loja: o dono dizia à funcionária incrédula que ia ter passaporte até na van. Garantia que Rui Costa já tinha providenciado três mil carros para policiar as estradas. E ela objetava: Mas não tem variante nova e as pessoas não estão pegando covid mesmo vacinadas? Mas não ia ter carnaval?
Pois é. Todos sabemos disso. É aquela coisa de o lobo dizer ao cordeiro que ele está turvando a sua a água.