No último texto, vimos que o liberalismo democrático de Popper se funda num chamado à razão. Nas questões que dizem respeito ao conhecimento, a razão, auxiliada pela experiência, faz reconhecer que tal coisa pode ou não pode ser verdadeira. Nas questões que dizem respeito à moral, a razão serve para extrair as consequências factuais da adoção de um dado princípio, e, sendo tenebrosas, é mister chamar o homem à razão, fazendo-o examinar tais consequências por meio de sua consciência. No pensamento político de Popper há o científico e o moral. Há, porém, um grande ausente: o próprio político.
Nada poderia ser prova maior da inépcia do filósofo da ciência na seara política. A política está longe de ser uma discussão teórica sobre a moralidade. Discussões teóricas, tal como a ciência, podem ser universais. Aliás, a ciência é de natureza universalista. Abstraídas as importantíssimas questões políticas, cientistas soviéticos e norte-americanos seriam capazes de trabalhar lado a lado e chegar a um consenso sobre a melhor forma de lançar satélites no espaço sideral. Imaginar o potencial humano que desabrocharia com o fim das divisões políticas decerto anima ao pacifismo. Mas o homem, mesmo quando cientista, é um animal político, então é ocioso imaginar que algum dia poderíamos suprimir a política.
Como vimos, Popper acha que em política devemos dizer ao adversário: “eu posso estar errado e vós podeis estar certos, e, por um esforço, podemos nos aproximar da verdade”. Mas a verdade nua e crua reconhecida desde a origem do liberalismo é que em política se diz: “eu até posso estar errado aqui e ali, mas quero tal coisa; vós estás certo de que quereis tal outra coisa. Como temos de conviver, vamos ver como (ou se) podemos ajustar a nossa convivência”. A resposta liberal clássica é: “Desde que não causemos danos uns aos outros, eu faço da minha vida o que eu quero, vós fazeis da vossa o que quiserdes”. Essa resposta surgiu no contexto das guerras religiosas entre católicos e protestantes, bem como entre protestantes de variadas denominações. O liberalismo clássico era, portanto, oposto à disposição racionalista de Popper. Nós somos livres para tentar mudar a ideia uns dos outros, mas o foco do Estado liberal é precisamente o de libertar os homens uns dos outros, fazendo com que, por exemplo, um calvinista não seja importunado por um anglicano.
Quando os votos democráticos não seguem a direção dos direitos humanos, eles são imediatamente rejeitados como ‘irracionais’ e ilegítimos
No entanto, uma coisa à qual pouco se atenta é que, em sua raiz, o liberalismo era contrário ao catolicismo. Servia para, na Inglaterra gestada pela amante Ana Bolena, os protestantes pudessem conviver em paz entre si. Se houvesse católico, a legitimidade da ordem estabelecida seria contestada, já que o papa não reconheceu a anulação do casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão e, por conseguinte, os católicos não têm como reconhecer a legitimidade da coroa anglicana. A própria Igreja Anglicana foi criada com a finalidade de legitimar os cinco casamentos subsequentes de Henrique VIII e garantir uma descendência masculina para o trono inglês. Ainda nos dias de hoje, não ser católico é uma exigência para ocupar o trono inglês.
Em sua obra sobre a tolerância, Locke instou à proibição do catolicismo. Temos então que, quando as elites liberais saem perseguindo meio mundo em nome da “defesa da democracia”, elas estão voltando às raízes do liberalismo histórico: a liberdade vale para quase tudo, exceto a contestação frontal do status quo. No caso do liberalismo histórico, a legitimidade vinha da Igreja Anglicana – que, a seu turno, integrava uma máquina de propaganda protestante contrária à Igreja Católica. No caso do liberalismo do século XXI, a legitimidade vem do sistema judiciário autoproclamado democrático. Esse sistema se diz democrático porque preserva as eleições; no entanto, o aparato judiciário multiplica as regras a fim de dificultar a formação de partidos e o lançamento de candidaturas. Tal como os liberais protestantes tinham uma máquina de propaganda para difamar os católicos e seu obscurantismo, os liberais laicistas de hoje têm a mídia para fazer a caveira dos populistas iliberais que propagam ódio. A difamação pública antecede a prisão dos alvos.
Mas de onde um aparato institucional impopular tira a sua própria legitimidade? Os anglicanos tiravam-na de Deus, apenas trocaram a instituição sua representante. A democracia liberal, desde o fim da II Guerra Mundial, tira-a dos Direitos Humanos.
Em Para além dos direitos humanos (Ars Regia, 2022), o intelectual da nova direita francesa Alain de Benoist pontua algo que sempre vem à tona em discussões brasileiras sobre plebiscitos e referendos: “Quando os votos democráticos não seguem a direção dos direitos humanos, eles são imediatamente rejeitados como ‘irracionais’ e ilegítimos. A mesma ideologia se opõe a que as pessoas sejam consultadas, por exemplo, por meio de um referendo, sobre assuntos considerados ‘sensíveis’. Assim, Jean-Louis Schlegel adverte contra o uso de referendos populares com o fundamento de que ‘uma democracia verdadeiramente liberal subordina a tomada de decisões políticas a uma lei fundamental, a dos direitos humanos consagrados na Constituição’. Uma certa denúncia do ‘populismo’ entra evidentemente nesse contexto: quando abordamos a questão dos ‘direitos humanos’, as pessoas são frequentemente suspeitas de pensarem errado” (p. 149). No Brasil, a esquerda faz ouvidos moucos no que concerne ao referendo sobre o desarmamento. A direita é quem acode à índole conservadora do nosso povo. É difícil, ainda, a esquerda brasileira falar abertamente contra o povo; no entanto, se não me falha a memória, na época da aprovação do casamento gay pelo STF, Jean Wyllys defendia que esse direito fosse concedido sem referendo nem lei, porque a maioria não podia oprimir a minoria. O célebre argumento de que “o que dois adultos fazem no quarto não é de interesse de ninguém” é um argumento liberal clássico; e o uso do Estado liberal para proteger os indivíduos é legítimo.
Tanto os pós-liberais anglófonos quanto a Nouvelle Droite contestam essa ideia afirmando que o homem é social, que o estado de natureza imaginado pelos contratualistas é falso, e que o liberalismo é portanto antissocial. Vale citar uma passagem de Benoist sobre isso: “Dispor do próprio corpo, do próprio tempo e do próprio dinheiro sem prejudicar a um terceiro pode, de fato, ser nocivo para a coletividade, em razão do impacto econômico, psicológico ou moral que podem ter sobre a vida comum os efeitos compostos dessas condutas individuais (trabalhar aos domingos, usar drogas, alugar o útero a um casal rico que anseia por um filho, etc.)” (p. 159). O juízo de valor fica por conta do leitor, mas fato é que quando indivíduos resolvem aceitar receber dinheiro para gestar, ou quando indivíduos resolvem vender esperma, etc., esse somatório de decisões individuais – que atendem a pressões econômicas – ultrapassa em muito o “meu corpo, minhas regras” e atinge toda a moral social.
O problema fulcral dos Direitos Humanos é que eles abolem a política e pretendem fazer tudo por meio do Direito e da teoria moral
Mas voltemos à política. O xis da questão, para Benoist (pronuncia-se Benuá), é que “a humanidade não é um conceito político”. Há quem diga que o pessoal é político, mas desconheço quem diga que ser homem, em vez de cacatua ou tamanduá, é algo político. É algo inescapável e natural. Portanto “uma ‘política global de direitos humanos’ é […] uma contradição de termos” (p. 132). Se há uma declaração universal dos direitos humanos, essa declaração dispõe sobre mim e sobre você, sem que tenhamos qualquer participação política nisso. Mais ainda: ela impede que eu e você, no nosso Estado soberano, disponhamos de leis que contrariem as disposições de organismos supranacionais remotíssimos. Benoist aponta, então, que os Direitos Humanos afrontam duas instituições antiquíssimas do Direito: a Paz de Westfália e a vedação das punições retroativas. A Paz de Westfália cai com o direito de um país atacar o outro por causa de questões internas; e a ideia de que violações dos Direitos Humanos são imprescritíveis faz com que as punições atuais retroajam para punir.
Há um forte veio totalitário na ideologia dos direitos humanos. “Quem faz guerra em nome da humanidade”, diz Benoist, “só pode situar seus adversários fora da humanidade, logo, fora de todo direito”. Não à toa, a primeira Declaração dos Direitos do Homem, ocorrida na Revolução Francesa, foi seguida pelo Terror.
O problema fulcral dos Direitos Humanos é que eles abolem a política e pretendem fazer tudo por meio do Direito e da teoria moral. Tal como fizera Popper, ainda que inadvertidamente. Na prática, esvazia-se a democracia, porque o povo é populista e não pode fazer valer a sua vontade – sob pena de ter o seu país invadido por “violações dos Direitos Humanos”.
Os pós-liberais dos EUA têm razão ao dizer que o liberalismo é ambidestro. No Brasil, no tempo da Lava Jato, víamos a turma do Foro de São Paulo reclamar da grande mídia e do ativismo judicial, inclusive do Supremo. É curioso que os juízes que foram mais amigos da Lava Jato no seu auge (Fachin e Barroso) sejam hoje os maiores inimigos de qualquer pauta “reacionária”. Hoje, reclamar da mídia e do ativismo judicial é coisa de direita.
Outra coisa que muda conforme a perspectiva é o “princípio da subsidiariedade, que delega à autoridade superior apenas as tarefas que não podem ser realizadas nos níveis mais baixos ou no nível local” (p. 159). Há cem anos, a maior instituição centralizadora era o Estado nacional; logo, defender a subsidiariedade implicava voltar-se contra ele. Hoje são a ONU e as corporações transacionais; logo, defender a subsidiariedade implica defender a soberania nacional. Alain de Benoist diz que defender tal princípio é um dos melhores jeitos de defender as liberdades, e creio que ele esteja certo.