Nos dias de hoje, a liberdade é acolhida de modo unânime como valor importantíssimo. O que varia é o entendimento do que seja verdadeira liberdade. Na Antiguidade, e no Brasil até 1888, livre era quem não era escravo. O homem livre pode escolher trabalhar ou não trabalhar, casar ou não casar, fazer dieta ou ser glutão etc. Nenhuma dessas escolhas o tornava mais ou menos livre; em vez disso, o próprio fato de ele as poder fazer era entendido como liberdade. Se o homem não trabalhasse nem tivesse renda, viveria (ou morreria) como mendigo, mas mendigo livre. Algumas escolhas são piores do que outras; por isso, a sociedade punia umas escolhas e premiava outras.
Nos dias de hoje, a expressão “a sociedade premia” é bastante ambígua. Significa tanto as ações espontâneas da gente comum quanto a da força do Estado. Noutros tempos, a vontade das pessoas comuns e a da burocracia não eram opostas: ladrões eram reprovados pela gente comum e a lei (ou a jurisprudência) mandava puni-los. Sodomia, adultério, feitiçaria e usura eram malvistos; a lei (ou a jurisprudência) mandava puni-las. Se a lei funcionava e se a moralidade era boa, é outra história. Mas não havia uma oposição entre a moralidade da gente comum e a moralidade da burocracia. Essa concordância traz bem estar, já que o homem comum se sente amparado pela sociedade. Certo é certo, errado é errado.
É possível que os totalitarismos europeus ocidentais do século XX tenham ganhado tanto apoio das massas, e tão rápido, por recuperarem essa unidade da consciência. Ela havia sido perdida na modernidade talvez desde o advento da Reforma Protestante e aprofundada com o Iluminismo. Em ambos os casos, uma massa rural católica teve de aceitar a mudança da consciência imposta de cima a baixo, começando pelos príncipes alemães luteranos (que mandavam nos seus servos), passando pela imposição do anglicanismo na Inglaterra pelo Rei (que mandava em todos os seus súditos) e culminando com a religião civil, ateia, na França revolucionária. No entanto, o conflito por muito tempo não foi generalizado no Ocidente. Dele ficaram livres por mais tempo os países ibéricos (da Europa e Américas), a Itália e o Império Austro-Húngaro.
Mas não havia uma oposição entre a moralidade da gente comum e a moralidade da burocracia. Essa concordância traz bem estar, já que o homem comum se sente amparado pela sociedade. Certo é certo, errado é errado
Na década de 70 do século passado, esse conflito já havia se disseminado nos terrenos da cristandade ocidental. Instaurou-se uma visão um tanto paranoide com relação à vida social. Se um homem escolhe trabalhar em vez de se deixar consumir pelas drogas, ele não é realmente livre; se um jovem escolhe constituir família em vez de se deixar consumir pelas drogas, ele não é realmente livre; se uma mulher escolhe conter a gula para cuidar do próprio corpo, ela é escrava dos padrões opressivos de beleza e, portanto, não é realmente livre. Existe um rol de coisas que contam como “verdadeira liberdade”, ao passo que outras não são mais que mera manipulação. E a fórmula para arrolar as ações é bem simples: se a pessoa se governa, não é livre; mas se se entrega à incontinência, é livre.
Para esse nicho de elite, a liberdade é pensada em relação às normas sociais tradicionais prezadas pela gente comum. Aquele que é “livre de verdade” se considera liberto de tais normas, que premiam algum grau de continência e regramento. Pode ser cômodo embebedar-se, mas decerto não é cômodo ter um bêbado junto de si. Do mesmo jeito, tampouco é aprazível lidar com promíscuos e com glutões, ainda que alguns possam achar bom copular com qualquer bípede implume ou deglutir qualquer coisa em grandes quantidades. Assim, pode-se dizer que a moralidade desconstrucionista em voga desde os anos 70 é bastante antissocial: transforma os seus adeptos em fardo imposto aos demais.
Neste mundo ocidental regido pela moral desconstrucionista, a gente comum está acostumada a uma cisão da consciência: sabe que tal coisa é errada do seu próprio ponto de vista, mas certa do ponto de vista das autoridades e, por isso mesmo, é recompensada. Os casos mais evidentes na certa são o das drogas e da “maternidade solo”, já que o Estado, Ocidente afora, garante ao zumbi o direito de ocupar a rua e assegura recompensas financeiras à mulher que engravidar sem um marido (enquanto uma esposa acompanha o marido em altos e baixos financeiros, uma mãe solteira tem renda fixa, venha ela do Estado, ou de uma vítima de golpe da barriga, ou de um ex-marido empobrecido cuja pensão foi estipulada com base nos tempos de vacas gordas). Regrar-se não compensa; constituir família, tampouco. A burocracia não eleita do Estado obedece à moral das ONGs e dá tudo às “vítimas da sociedade”.
Essa cisão moral na sociedade norte-americana foi bem descrita por Gertrude Himmelfarb em Uma nação, duas culturas. Mas creio ter ocorrido no mundo anglófono algo que é mais que uma cisão; que é uma polarização. Afinal, eles saíram da ética vitoriana, adotada uniformemente por todas as classes sociais, para uma ética desconstrucionista, também adotada por todas as classes sociais. No Brasil, nunca houve a tentativa de estabelecer a sobriedade absoluta; o vinho faz parte da liturgia católica e não pode ser excluído da vida social. Nosso calendário comportava festas como o Entrudo e o Carnaval, no qual gente de todas as classes se misturava e se entregava a excessos por um período limitado. Numa cultura com festas públicas, os prazeres têm hora, lugar e prazo, em vez de serem simplesmente reprimidos como na cultura puritana, ou normalizados como na cultura desconstrucionista. Digamos que por lá eles eram uma panela de pressão que explodiu e espalha seus dejetos por todo o Ocidente: foram da repressão total à liberação total.
Pode ser cômodo embebedar-se, mas decerto não é cômodo ter um bêbado junto de si. Do mesmo jeito, tampouco é aprazível lidar com promíscuos e com glutões, ainda que alguns possam achar bom copular com qualquer bípede implume ou deglutir qualquer coisa em grandes quantidades
Entende-se, portanto, que se pense em tais coisas como liberação, já que normas sociais têm força coercitiva mesmo quando não são sancionadas pelo Estado. Não há policial que faça a gente comum olhar com respeito para um zé-droguinha e para uma funkeira que usa pensão alimentícia pra comprar tranqueira – as “comprinhas da Shein” de que os pobres tanto precisam, segundo não poucos liberais.
A má notícia para os angustiados desconstrucionistas é que a libertação desejada por eles é impossível. O máximo que podem fazer é usar a força do Estado (para obrigar) e da propaganda (para persuadir). Dessa primeira estratégia surgiu o delírio do nosso tempo, que é o anarcocapitalismo: “Se o Estado está sendo usado contra mim, o Estado é mau! Vou defender do mundo a minha pequena propriedade com uma metralhadora!” Como se o precedente mais próximo de sociedades sem Estado no mundo ocidental não fosse justamente a Idade Média, quando “as trevas” grassavam e ninguém era “verdadeiramente livre”. Agora, nem mesmo na Idade Média o proprietário de terras conseguia assegurar sozinho a sua liberdade individual. Os nobres tinham seus soldados que enfrentavam os bárbaros e protegiam os camponeses. Associar-se era necessário, e não à toa os medievais acabaram inventando o Estado.
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Mas voltemos à vaca fria, que é o conceito de liberdade. Faz sentido dizer que quem escolhe usar drogas é livre, porque se trata (ou se tratou em algum momento) de escolha. Se se tratasse de um escravo obrigado a usar, a coisa seria diferente.
Lá no começo da Modernidade, numa obra submetida à Faculdade de Teologia de Paris cujo fito era provar a existência de Deus e a imortalidade da alma, René Descartes dizia que a vontade “consiste somente em que podemos fazer uma coisa ou deixar de fazer (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir), ou, antes, somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir às coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal maneira que não sentimos absolutamente que alguma força exterior nos determine a tanto”. Para Descartes a alma tem duas faculdades: vontade, que é livre e ilimitada, e o entendimento, que é limitado. O erro nasce da vontade que não reconhece os limites do entendimento e usa da liberdade para errar. Quem é livre é livre para errar. Mas – e eis o drama moral dos nossos dias – quem acerta não é menos livre porque acerta. O erro nasce da indeterminação; o acerto, da determinação embasada no entendimento.
Diz ele: “Para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou outro dos dois contrários; mas antes, quanto mais eu pender para um (seja porque eu conheça evidentemente que o bom e o verdadeiro aí se encontrem, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento), tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei. E decerto a graça divina e o conhecimento natural, longe de diminuírem a minha liberdade, antes a aumentam e a fortalecem. De maneira que esta indiferença que sinto quando não sou absolutamente impelido para um lado mais do que o outro pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau de liberdade, e faz parecer mais uma carência no meu conhecimento do que uma perfeição na vontade; pois, se eu conhecesse sempre com clareza o que é verdadeiro e bom, nunca estaria em dificuldade para deliberar que juízo ou que escolha deveria fazer; e assim seria inteiramente livre sem nunca ser indiferente” (grifos meus).
Nos dias de hoje, essa indiferença é justo o que se celebra como grau máximo de liberdade. Individualmente, é bom ser destituído de preconceitos; e, coletivamente, acredita-se que o Estado não deve atuar a partir de nenhuma concepção moral. O melhor exemplo disso talvez seja o fato de a neutralidade dos EUA permitir igual tratamento entre igrejas satanistas e religiões tradicionais. Se o satanismo crescesse a olhos vistos, seria natural que suscitasse reação; e aí, portanto, o Estado teria de intervir em defesa da minoria oprimida a fim de restaurar a neutralidade. Do mesmo jeito, se a gente comum nunca vai aceitar a indiferença entre a mentira deslavada e a verdade evidente, o Estado terá de agir contra a verdade evidente a fim de restaurar a indiferença. É nessa mentalidade que se baseia toda a campanha “anti-discriminatória” dos progressistas: precisa alguém (o Estado ou os agentes privados) ir às escolas contar às crianças que elas podem escolher ser homem ou mulher, senão elas vão virar transfóbicas e os transexuais vão se matar. Aí a direita os EUA reage concluindo ou que o Estado é ruim, ou que o Estado deveria ser verdadeiramente neutro. Balela. O Estado tem que refletir os valores do seu povo.
Tanto no plano coletivo quanto no individual, a indiferença (ou indeterminação) não pode ser tida como ideal de liberdade. O ideal de liberdade deve ser a autodeterminação. E isso envolve um povo ter liberdade para legislar com base em opções morais, autodeterminando-se, porque toda moral é social e não existe solipsismo nesse âmbito. Em vez de um Leviatã velando pela indiferença sob o lobby dos megacapitalistas com suas ONGs, o povo tem que ter um Leviatã que preze pelo seu bem.
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