É preciso ter clareza quanto ao tipo de sociedade que queremos. A propaganda empresarial progressista, também chamada de capitalismo woke, embaralha as coisas ao nos fazer crer que, sem uma doutrinação constante e uma repressão da discordância, todos os gays serão assassinados por fundamentalistas evangélicos.
Se todas as grandes corporações não colocarem uma bandeira do arco-íris em suas logomarcas e não celebrarem o “gay pride”, os gays morrerão. Para corroborar isso, valem-se dos números do GGB, já exaustivamente desmentidos por Eli Vieira e colaboradores. Segundo a narrativa que passa no Jornal Nacional e as agências de checagem de fatos não checam, o Brasil é o pior país para ser gay no mundo.
O Brasil está bem na fita
Uma afirmação dessas só é possível com má-fé ou ignorância. Na Rússia, nas teocracias islâmicas, em ditaduras africanas, ser gay dá cadeia ou pena de morte. Mas, para não ficarmos em países sem tradição democrática, vale nos compararmos também ao Império Britânico. Nas leis laicas do Brasil, homossexualidade nunca foi crime. Alan Turing aqui não sofreria nenhuma sanção estatal; na Inglaterra, foi castrado quimicamente. João do Rio é contemporâneo de Oscar Wilde, mas a homossexualidade só foi um drama público para o inglês. O Brasil é muito melhor do que o mundo rico nesse quesito.
A repressão à homossexualidade se deu, entre nós, na época da Inquisição. Mas essa instituição concentrava sua atenção à Europa, sendo suas atividades aqui bastante modestas. Ademais, felizmente somos a terra do jeitinho, cheia de manhas para driblar a autoridade com muita cordialidade. Luiz Mott, fundador do GGB, encontrou na Torre do Tombo o processo de um Governador Geral do Brasil do século XVII, responsável pela construção do Forte São Marcelo (feito para meter bala de canhão nos holandeses). O governador Diogo Botelho tinha como amante e “súcubo” (passivo) um rapazinho. Revoltado com o fim do relacionamento, o rapaz o dedurou à Inquisição, que punia com dureza os sodomitas íncubos (os gays ativos) e tinha mais leniência com os súcubos. O processo não deu em nada e o caso ficaria esquecido na poeira do tempo se o antropólogo não resolvesse publicá-lo e homenagear o governador gay do Brasil.
Agora, não dá para homenagear um governador gay impune na Bahia seiscentista e ao mesmo tempo dizer que o Brasil é o pior lugar do mundo para ser gay.
Qual é a moral tradicional no Brasil?
Há também uma ignorância deliberada acerca dos evangélicos. Odiar o pecado e amar o pecador costuma ser o mote dos cristãos de um modo geral, e isso é uma coisa bastante difícil de entender para um identitário, que considera a homossexualidade o único traço relevante da personalidade de um gay. Se João é gay, o identitário não sabe separar João da homossexualidade de João. Por isso, toda condenação à homossexualidade é interpretada pelo identitário como uma condenação às pessoas de João e de José.
De um ponto de vista jurídico e moral, a homossexualidade é parecida com a prostituição. No Brasil, nunca foi crime, ao passo que nos países de cultura puritana é ou foi crime. Um pai brasileiro dificilmente quererá que o filho seja gay ou que a filha seja prostituta, mas entre isso e querer mandar nos filhos do vizinho há um abismo, e entre isso e querer matar gays ou prostitutas há um abismo maior ainda.
Não tenho dúvidas de que nossa cultura de separar moral de legislação é muito melhor do que a dos puritanos. Não é criminalizando prostituição que se impede ninguém de virar prostituta. Há sanções sociais para isso e, se a pessoa quiser se sujeitar a elas, é livre para tal. E se as prostitutas, embora mal vistas, não são assassinadas por odiadores de prostitutas, isso não quer dizer que as empresas têm um mês do orgulho prostituta nem nada. Quer dizer apenas que o brasileiro tradicional sabe diferenciar a própria vida da vida alheia e não encara cada aspecto da esfera pessoal como político.
Sikêra expressou apenas a moral tradicional
Vamos à celeuma da vez, que é o cancelamento de Sikêra Jr. por causa de sua oposição à propaganda do Burger King. Agora eu não consigo encontrar o vídeo e suponho que tenha sido excluído por pressão dos anunciantes, mas vi o chilique dele com o comercial da Burger King e me chamou a atenção que ele dizia que não tinha nada contra quem fizesse, mandava só que deixassem as crianças fora disso.
É um pedido bastante razoável e uma leniência com a vida privada que os puritanos do politicamente correto não conseguem enxergar. De minha parte, achei a fala dele agressiva demais com gays em geral, quando nós sabemos que aquela propaganda é muito mais uma coisa delimitada por profissão do que de orientação sexual. Trocando em miúdos, é coisa de departamento de marketing, de jornalista e de setores da universidade, não necessariamente coisa de gay.
De todo modo, quem se der ao trabalho de procurar coisas sobre Sikêra e homofobia (e é de esperar que jornalistas responsáveis o façam), vai encontrar logo este vídeo aqui, onde o correspondente do Rio revela para a audiência que é gay e se manifesta contra os identitários que querem cancelar Sikêra. De novo, nada chocante para quem entende o Brasil: um indivíduo pode ser gay e ser benquisto por alguém que muito provavelmente não gostaria de ter um filho gay, mas que provavelmente acabaria aceitando caso tivesse.
Isso é um drama? É um grande problema? Depende. Queremos uma sociedade em que gays não sejam maltratados por serem gays ou queremos uma sociedade em que cada indivíduo ame os gays e o movimento gay? Quero a primeira. Os ativistas parecem querer a segunda. Mas como é possível conquistar amor e adesão por meio da repressão, seja ela capitalista ou estatal?
Também vi a propaganda do Burger King. Estou longe de ser evangélica, de ser puritana ou de ser contra os direitos dos gays. E a mim pareceram bastantes distópicas aquelas crianças que decoraram tintim por tintim a sigla LGBTQIA+. O comercial começa com a pergunta “Não sabe como explicar LGBTQIA+ para crianças?” e o meu ímpeto é responder “Nem para adulto!” Uma menina diz que na casa dela tem o G de gay e o T de trans e que isso faz da família dela a melhor que ela podia ter, pois assim aprende com essas vivências.
Ou seja, em vez de os familiares serem julgados por seu caráter, temos um quatro pernas, bom, duas pernas, mau (no caso, LGBTQIA+ bom, não-LGBTQIA+ mau). E mais: a menina podia ensiná-la para outras crianças, que ao seu turno irão ensinar para os pais. Isso é doutrinação ao estilo maoísta e não tem nada a ver com a mera aceitação de famílias diferentes. O fenômeno da homossexualidade é natural e existe desde a Antiguidade. Essa sigla é construção ideológica e não deve ter nem dez anos.
Aliás, quando foi que a esquerda passou a achar natural que empresas decidissem educar crianças por meio de comerciais?
Duas classes de cidadãos
Temos no Brasil casamento gay legalizado, uma valiosa tradição de respeito à vida privada e uma crescente aceitação dos gays na sociedade. Mas tudo isso é irrelevante para os revolucionários do marketing, porque a sociedade tem que amar os gays e aderir à ideologia de gênero.
Segundo tentam nos vender, precisamos cuidar para que os LGBTQIA+ (sic) não corram o menor risco de se sentir mal em relação à sua sexualidade. A consequência evidente disso é que passam a existir duas classes muito diferentes de cidadãos: uma sensível, que requer cuidados especiais com a sua honra, e outra que pode levar uns tabefes e ir em cana para assegurar o bem-estar da primeira. E só Deus sabe o que pode ser entendido como ofensa à honra desses bebezões mimados. Numa hora é Sikêra, o que é previsível. Na hora seguinte é a falta do número 24 nas camisas da seleção brasileira. Gaiatice de vestiário? Nada, homofobia assassina. Precisamos de camisa 24 no vestiário, ou os gays vão todos morrer!
Se pedirem um Sikêra e a gente der, levam a CBF. Se levarem a CBF, daqui a pouco vai em cana qualquer um que fizer uma piadinha com o número 24. E no fim das contas ficamos como o Canadá, onde o não-uso do pronome escolhido por um LGBTQIABDGSFHLMDDH+² é tratado como crime de ódio. Agora é com Sikêra, mas, se deixar, depois é comigo e com você.