Proponho a construção de uma estátua chamada "A Jornalista". Quando algum veículo muito importante do século XX falir e vender sua sede, esta será transformada no Museu da Imprensa dos Anos 20. "A Jornalista" estará à frente, vendada, erguendo intrépida uma seringa para o céu. Quando tudo nos parece confuso na opinião publicada, basta entrar no Twitter de alguma jornalista célebre e respeitada, lamber o indicador e estendê-lo, para ver para onde o vento sopra.
Por exemplo: se no auge do lockdown você tivesse a ligeira sensação de que talvez a classe jornalística estivesse alienada, achando realmente que a peãozada ia bater laje em home office porque ficar em casa era mera questão de vontade, o Twitter da jornalista Vera Magalhães estava lá para provar que era isso mesmo: compartilhara com aprovação um texto satírico de Demetrio Magnoli. Entre outras coisas caricaturais, o texto dizia: “Vejo imagens de crianças descalças jogando bola na rua de uma favela, não sei se na zona oeste ou na leste. Serão filhos de auxiliares de enfermagem? Pouco importa: um sacrifício não justifica uma negligência. As escolas fecharam para evitar o tráfego do vírus pela ponte dos assintomáticos. Meu filho brinca no playground do prédio, quando desliga o celular. De quantas mortes você precisa para segurar as crianças em casa?” E terminava com: “Basta. ‘Lockdown’ já! Com esse zé povinho não dá. Odeio você. Assino: um cidadão informado. Volto às séries”.
Ou seja, dado que Vera Magalhães é uma profissional muito respeitada, que atua nas maiores redes pública e privada do país, toma-se como exemplo de que a corporação jornalística está fora da casinha mesmo. Sua imagem real condiz com a falsa imagem de Maria Antonieta difundida pelos revolucionários: de um alheamento nutrido por profundo desprezo pelo povo. Mas ao menos uma aristocrata tem um senso de superioridade como uma explicação plausível para se sentir superior ao povo. A corporação jornalística parece se sentir superior em função de suas “opiniões esclarecidas”, que são sempre uniformes e cabem numa hashtag.
Democracia é chique
Esqueçam as explicações pecuniárias. Sabem por que essa corporação, junto com uma ampla parcela dos letrados, odeia Bolsonaro e bolsonaristas? Porque são gen-ta-lha, gen-ta-lha! (ler com a voz do Quico do Chaves). E como a corporação está mais acostumada a se afobar para tuitar do que a pensar, tem uma incapacidade sincera de entender o que é democracia. Democracia é chique; o pessoal a defende em Harvard et à Paris. Barroso é chique e frequenta ambientes chiques, então democracia é o que Barroso diz que é democracia. E Marcia Tiburi. E Steven Levitsky. E Tabata Amaral. E Sílvio Almeida… Se esse povo disser em 2023 que democracia é o regime em que um iluminado interpreta sozinho a vontade do povo e a executa, esses jornalistas num átimo dirão que é isso mesmo e chamarão de negacionista obscurantista quem pegar qualquer livro de política escrito antes de 2023. Uma certa elite fala a Verdade e pronto. E tudo o que é defendido por ela é muito democrático, claro, assim como é democrática a gloriosa República Popular Democrática da Coreia.
Chamar tirania de democracia é uma maquiagenzinha linguística mais velha que andar pra frente; mas, se antes isto era coisa de barbudos suados exalando masculinidade tóxica, hoje é coisa de liberais engomadinhos. Bastou a “massa cheirosa” aderir à corrupção do significado de “democracia” para a corporação jornalística pular no barco.
Assim, vem bem a calhar o caso Daniel Silveira. A reação à sua prisão e ao seu indulto mostram que não há moral alguma norteando a corporação jornalística. Tudo o que esta faz é defender um conceito de democracia que, bem analisado, não é outra coisa que não a defesa dos poderosos.
Direito à vida
Pessoalmente, o ato deste STF que mais me pareceu acintoso à democracia foi a decisão monocrática de Fachin que impediu a polícia de entrar em favelas no Rio de Janeiro. Os eleitores do estado votaram num governador que prometia policiais livres para atirarem na cabecinha dos bandidos que carregassem fuzil. Pode-se discutir a legalidade desta medida particular, mas a mensagem das urnas é clara. E o fato indiscutível é que parte da população fluminense – a população mais pobre – vive sob o jugo de paramilitares armados com fuzis. Esse jugo, naturalmente, não é democrático. Não existe desejo mais basilar a uma democracia do que o desejo de viver sob as regras do Estado. Fachin, numa canetada, negou isso aos pobres do Rio de Janeiro. Decretou, à Brizola, que a polícia não sobe o morro – e você, que está no morro, que se lasque.
É claro que vidas humanas são perdidas com isso. Mas essa elite não está nem aí para o porteiro que vive nessas condições. Ela quer legislação em defesa das “vítimas da sociedade” (i. e., os vendedores de drogas) e dos usuários, que “merecem tratamento e não punição”, embora a sua conduta custe sangue às favelas. A Justiça protege vendedor e comprador; quem estiver no caminho, que morra. Você, pobretão baleado por azar em disputa de boca: seu nome é Marielle? Não? Então se lasque, pois você não é do PSOL, nem tem eleitores no Leblon. Você, que paga sua parcela do Minha Casa, Minha Vida e foi expulso de casa: vamos discutir o problema que realmente assola o país, que é a falta de representatividade de negros nos quadros de empresas multinacionais? Gente, deixemos as vítimas da sociedade andarem com seus fuzis no morro! Precisamos defender os direitos humanos!
O Supremo soltou André do Rap, mas Daniel Silveira, esse sim, é uma ameaça à sociedade e tem que ficar em prisão preventiva ou de tornozeleira eletrônica. Ele diz coisas más contra as autoridades! O que pode ser pior do que isso? Oh, meu Deus! A democracia vai acabar se ele continuar falando! Vai todo mundo morrer!
Dilma democrata
Mas não nos percamos; vamos ao Twitter de Vera Magalhães. Na questão Daniel Silveira, eis o posicionamento dessa nossa bússola: “Você, antipetista, o que faria se no dia seguinte ao julgamento do mensalão Dilma editasse uma medida suspendendo a prisão de Dirceu, Genoino etc? Berraria na janela, não? Ela não fez. Seu ídolo está fazendo. Essa é a linha que separa os democratas (mesmo aqueles com [sic] quem você diverge) dos candidatos a autocratas. E candidatos a autocratas quando não são CONTIDOS PELAS INSTITUIÇÕES viram sabem o que? Autocratas, ditadores.”
Então ficamos assim: democrata é quem deixa o STF fazer o que bem entender, e inclusive abre mão de uma prerrogativa constitucional que poderia ser usada legitimamente contra uma decisão dele. Dilma era democrata. Bolsonaro, autocrata. O problema do PT é só que ele roubou dinheiro do Estado – mera questão pecuniária – e não que ele encheu o Judiciário de ativistas e fez o possível para corroer as instituições por dentro. É como se o saque petista tivesse ido todo para o bolso dos dirigentes; como se eles fossem uns Geddéis, uns políticos ladrões à moda antiga. Mas não eram: eles roubavam e mandavam parte do espólio para ditaduras. E mesmo quando não roubavam, cometiam imoralidades das mais graves, como no Mais Médicos. Antes do PT, o Brasil podia julgar a escravidão legal um problema encerrado em 1888. Com o Mais Médicos, nosso país reviveu essa chaga em pleno século XXI. Com as bênçãos da OPAS, uma seção da OMS, que a seu turno é da ONU.
À época da Lava Jato, tinha essa história de que Dilma era uma mulher honesta. A refinaria de Pasadena diz o contrário. Se a Lava Jato investigou, investigou e não a pegou, então a Lava Jato é que está sob suspeita. Segundo os dilmistas, os homens brancos cis hétero eram uns corruptos, e eles é que não aceitavam ver uma mulher no poder. Presos, Dirceu e Genoíno são homens brancos corruptos. Seu papel cabe na narrativa dilmista. Só resta concluir que àquela hora ela não fez uso de sua prerrogativa de conceder-lhes indulto porque não quis, pois ética e democrática ela não é. Dilma encontrou no Supremo a mesma leniência que encontrara na Lava Jato. Ele a deixou elegível após o impeachment, ao contrário do que previa a Constituição.
Por fim, Moro, a estrela da Lava Jato revelou-se um propagandista ESG – a sigla do mundo corporativo que visa à imposição do identitarismo e do ambientalismo neomaltusiano sobre a sociedade via megaempresas. As ideias do ESG são indiscerníveis da Agenda 2030, com a qual o STF está firmemente compromissado.
Dilma, Moro e o STF obedecem à mesma agenda. Há uma ala do PT que é indiscernível do PSDB. É a ala que ficou fora da cadeia e que não tem voto. É a ala que se vale de um Judiciário aparelhado para impor as suas vontades sem perder o verniz de democracia. Não é à toa que Lula, Alckmin, Haddad, Leite, Tebet e Moro apareçam na imprensa fundidos numa imagem só, como oposição legítima a um governo ilegítimo.
Refrescar a memória
Em resumo, a corporação jornalística tenta vender a ideia de que é Bolsonaro ou barbárie. Isso é mentira, mentira e mentira. Todos os “crimes” de Daniel Silveira consistiram em palavras dirigidas contra os ministros Supremo. Isso se resolveria na Câmara. Daniel Silveira foi eleito pelos cariocas quebrando uma placa com o nome de Marielle Franco. Eu acho isso de extremo mau gosto, mas numa democracia as pessoas são livres para votar no candidato que quiserem. Bolsonaro deu um indulto previsto na Constituição a um condenado cujo processo não está previsto em lugar nenhum.
Por outro lado, em 2011, com a anuência de um STF menos petista, Lula na prática deu um indulto a Cesare Battisti, um terrorista assassino que explodia gente em plena redemocratização da Itália porque queria implementar uma democracia igual à da Coreia do Norte. Pois bem: a Itália pediu ao Brasil o bandido que viera para cá e Lula negou a extradição, alegando que o assassino era um perseguido político. A coisa foi parar no STF – porque tem tratado internacional em questão –, que liberou Lula. À época, Fux entendeu que “o Supremo não pode avaliar atos do Presidente”. O advogado de Battisti era Barroso, que chegaria ao Supremo em 2013 por indicação da ex-terrorista Dilma Rousseff. E quem não tiver memória curta há de lembrar que esse juiz era muito festejado pelos lavajatistas, já que o indicado pela “mulher honesta” se mostrava um feroz combatente da corrupção. Houve uma época em que Barroso era o mocinho da Lava Jato no Supremo, em oposição a Gilmar Mendes, o vilão.
Não basta defender traficante contra o Estado para ser antidemocrátco (Fachin é outro indicado de Dilma). Não basta advogar para terrorista para ser antidemocrático. Não basta contratar médicos em regime escravo, pagando a uma ditadura, para ser antidemocrático. Para ser antidemocrático, basta falar mal dos poderosos. Aí pode jogar na cadeia sem o devido processo legal, que é pra defender a democracia!
Ora, não está claro que esses supostos defensores da democracia não são mais que lacaios de tiranos?