Vou começar com uma citação longa do “Rediscutindo a mestiçagem no Brasil”, de Kabengele Munanga: “Como explicar que, numa nação complexa, construída num imenso território, com uma população estimada em 160 milhões de habitantes [sic – devem ser dados da primeira edição, de 1999], numa nação marcada por diversidades étnicas e raciais, não se observem fenômenos de afirmação de identidades étnicas acompanhados de busca de autonomia e separatismo, com tanta força como acontece atualmente em alguns países ocidentais? A explicação estaria na ideologia brasileira, profundamente assimilativa e assimilacionista, capaz de criar constrangimento para os grupos que procuram se manter afastados da sociedade nacional”.
Portugal é um país pequeno, mas é composto por tribos anteriores à chegada dos latinos, por romanos, por mouros, por visigodos, por judeus. A vizinha Espanha tem enclaves separatistas, tais como o País Basco (os bascos são os “índios” deles, que estão lá desde a Idade da Pedra e falam uma língua sem parentesco com nenhuma outra língua europeia). Ainda assim, qualquer território nanico do Leste europeu é cheio de tribalismos que só causaram guerras desde o fim do Império Austro-Húngaro: tchecos contra eslovacos, romenos contra húngaros, croatas contra albaneses, etc. Franceses e italianos não têm tais tribalismos, embora sejam países de territórios consideráveis. (Existe preconceito regional entre italianos do norte e italianos do sul, num esquema parecido com os preconceitos regionais do Brasil. Mas basta olhar para os bascos e para os Bálcãs para perceber que regionalismo e etnocentrismo são coisas bem diferentes).
Assim, é razoável concluir que o etnocentrismo, causador de separatismo, é pouco comum na Europa ocidental. E que é, ao contrário, muito frequente em países não ocidentais, tais como os do Leste europeu, da África e de confins asiáticos. No Oriente Médio, o Islã desempenhou um papel análogo ao do Império Romano, dissolvendo as tribos ou etnias num corpo social amplo e misturado.
Fica, então, a pergunta para o prof. Kabengele: por que a unidade nacional do Brasil, e apenas a do Brasil, tem que ser atribuída a um plano ideológico deliberado, mas não a unidade de Portugal, da França ou da Itália? E outra: por que o Brasil deveria mirar nos bascos do ETA, nos negros do Black Panther Party ou nas sangrentas republiquetas leste-europeias e africanas, em vez de ficar como está, já que tanto a paz como a guerra seriam ideológicas? Entre uma ideologia que só traz a miséria da guerra e outra que traz a concórdia, fiquemos com a da concórdia.
Aliás, uma coisa verdadeiramente ideológica que passa despercebida é o pressuposto de que corpos políticos são sinônimos de corpos étnicos. A Suíça e a Holanda são corpos políticos que existem há uma porção de séculos com línguas e culturas diferentes coexistindo. Germânicos povoavam a Prússia (atual Alemanha) e o Império Austro-Húngaro (multicultural, com germânicos concentrados na Áustria). Quem achou que o país dos germânicos tinha que anexar a Áustria para criar um Estado étnico foi aquele austríaco de bigodinho risível. Seria desejável que, desse sujeito, somente o formato do bigode e o fusquinha fossem incorporados à imaginação brasileira.
Jardineiro que cuida de cercas
A evidente beligerância do etnocentrismo e do separatismo é disfarçada com a bucólica imagem de um jardim. Queixa-se Kabengele: “Na sua retórica contra as desigualdades raciais, os movimentos negros organizados enfatizam, entre outros, a reconstrução [sic] de sua identidade racial [sic] e cultural como plataforma mobilizadora no caminho da conquista pela cidadania. Eles preconizam que cada grupo respeite a sua imagem coletiva, que a cultive e dela se alimente, respeitando ao mesmo tempo a imagem dos outros… Ora, uma tal proposta esbarra na mestiçagem cultural, pois o espaço do jogo das identidades não é nitidamente delimitado. Como cultivar independentemente o seu jardim se não é separado do jardim dos outros? No Brasil atual, as cercas e as fronteiras entre as identidades vacilam, as imagens e os deuses se tocam, se assimilam.”
Há aqui uma grande confusão, e uma confusão grave: entre indivíduo e coletividade; entre a liberdade do brasileiro e a liberdade do “jardineiro”. Se eu, Bruna, não quero ser planta no jardim racial de ninguém, com que direito vêm os ideólogos da USP dar uma de jardineiros para cima de mim? Friso que eles fazem isso incrustados no seio do Estado, infiltrando-se na burocracia e se autoproclamando pedagogos do povo, muito embora não tenham sido eleitos.
O PT ganhava eleição federal por causa do Bolsa Família. Antes disso, FHC ganhava eleição por causa do Plano Real. Com que direito o Prof. Kabengele resolve que o brasileiro tem de levar no pacote do Plano Real e do Bolsa Família essa jardinagem racial que não foi vendida na propaganda política exitosa?
Uma professora de Educação (!) da UFMG, chamada Nilma Lino, fica falando de golpe de 2016 no prefácio desse livro de Kabengele, reeditado em 2020. O prof. Kabengele acha que, mesmo tendo o povo brasileiro elegido um presidente que apostou na guerra cultural contra o identitarismo, os “jardineiros” devem usar a máquina estatal contra a maioria da vontade popular? Ora, mesmo que um presidente chegasse democraticamente ao poder com uma campanha abertamente etnocêntrica e racista – como Hitler chegou –, seria incorreto apoiar o uso do aparato de Estado para moldar indivíduos segundo os desígnios de um punhado de ideólogos.
De resto, o próprio Kabengele cita a vivacidade, no Brasil, dos deuses africanos. E, ao mesmo tempo, o modelo ideal dele é a divisão birracial dos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, não há batucada nem deuses africanos. Diz Thomas Sowell que a cultura negra dos EUA é, na verdade, a cultura dos rednecks de lá. O sul agrário escravocrata teria somente uma cultura, à qual aderiram os negros. Antonio Risério costuma escrever que um branco brasileiro é, culturalmente, mais africano do que um negro norte-americano, e usa como exemplo disso a expressão black religious music, que, traduzida para o português (música religiosa negra), remete a uma coisa completamente diferente. Os deuses iorubás (Yemanjá, Oxóssi, Ogum etc) se acabaram nos Estados Unidos e estão firmes e fortes cá. Nos Estados Unidos, negro costuma ser protestante, como os ingleses. Quando o negro de lá é separatista e resolve que cristianismo é coisa do colonizador branco (sendo que o antiquíssimo reino da Etiópia já era cristão quando a Inglaterra nem sonhava nascer), converte-se ao islamismo (justo a religião dos escravagistas africanos).
O Brasil preservou muito melhor a cultura africana trazida pelos escravos do que os Estados Unidos. Para ficarmos na jardinagem, digamos que as mudas da África floresceram aqui. Kabengele, portanto, está mais interessado nas cercas do que nas plantas. No poder do “jardineiro” autoritário do que na cultura africana. Mas nós não somos jardim: somos selva luxuriante, onde cada plantinha cresce como quer e tem gosto ao ver as abelhas carregando todo tipo de pólen para lá e para cá.
Por que o prof. Kabengele diz que nós somos maus cultores da identidade africana, se aqui temos sua religião e arte? Porque tudo o que lhe interessa é a cerca que separa cidadãos negros e cidadãos brancos. O legado cultural africano é pretexto. Se todos os negros forem jogadores de basquete que comem de frango frito, está tudo certo para Kabengele. Basta que a condição de jogador-de-basquete-comedor-de-frango-frito seja ícone de negritude e sirva de cerca.
O arame farpado conceitual
Como alguém assim se pretende antirracista? Como de costume, é por causa de uma manipulação de palavras. Ele resolve que existe uma coisa chamada “racismo universalista”, que consiste em uma cultura ocidental receber e assimilar as influências de outras culturas, sem deixar de ser ocidental. Isso é mau porque não deixa o burocrata ter seu cercadinho de gente para jardinar.
(E uma consequência lógica disso é que os militantes germânicos fomentados pelo III Reich no Sul do Brasil tinham razão em exigir a liberdade do jugo português e querer fundar um enclave etnocêntrico racista. Os alemães são bons nisso de querer jardinar identidade racial e Kabengele os imita. Na verdade, ele deve estar cônscio disso, pois diz: “o surgimento de uma etnia brasileira […] passa […] pela anulação das identificações étnicas de índios, africanos e europeus”).
Mas, bom, que tipo de negro seria adubado no jardinzinho de Kabengele? Certamente não um Machado de Assis. Cito Kabengele: “Machado de Assis (1857 – 1913) é outro notável fenômeno de assimilação cultural. […] descendente de africano e fundador da Academia Brasileira de Letras, se obrigava a exprimir num português acadêmico do melhor estilo”. Negro é para ser um burraldo ignorantão. (A sério, há duas propostas relativas ao idioma pátrio: Abdias do Nascimento achava que negro tinha que aprender suaíli para parar de depender de língua ocidental e Djamila Ribeiro e Lélia González acham que tem que falar o idioma “pretuguês”, cujos vocábulos incluem “Framengo”).
Entre os “notáveis exemplos” de assimilação, havia Cruz e Souza e Gregório de Mattos. O primeiro era um negro retinto que fez poema para uma loura. Mas Kabengele tirou da cabeça de Abdias do Nascimento que Gregório de Mattos era mulato – devem achar que todo baiano é mulato – e fazia poemas idealizando brancura. Gregório era cristão velho de quatro costados, sem sangue judeu nem mouro, e graças a isso ocupava posto na burocracia da Igreja. Fazia poema desancando a “nobreza da terra” baiana, neta de canibais, e se orgulhava de não ter avô canibal. E fazia poema louvando a beleza de negras e mulatas.
Então ficamos assim: para começo de conversa, os “negros” (aí incluídos os mulatos e morenos de modo geral) devem ser uns burraldos incapazes de escrever bom português. Precisam de cota para entrar na universidade e, como este país é lastimavelmente mestiço, deve haver tribunal para julgar fenótipos.
Agora, fica aquela pergunta: universidade e democracia surgiram onde mesmo? No Oriente? Na África? Prof. Kabengele, por que não seria “racismo universalista” receber negros em universidades e dar-lhes títulos de eleitor? E o Abolicionismo, surgiu onde? Na chave do “multiculturalismo”, deveríamos dizer que a cultura negra é escravocrata, além de arcaica demais para ter democracia e universidade. Pegue um chefe de tribo, um curandeiro, jogue todo mundo num canavial trabalhando para os brancos e chame isso de multiculturalismo. Tratar como igual numa sociedade de instituições ocidentais? Jamais! O prof. Kabengele ensina que isso é “racismo universalista”. Escola com português bom é para mim, que sou clara, e para Kabengele, que não é besta. O Framengo fica pra você, depois de desconstruir seus preconceitos burgueses e ir lá cortar uma cana na comunidade orgânica mística e originária.
Universidade, sim, e com cota
Mas ele quer que o país de Machado de Assis e Theodoro Sampaio crie cotas para os negros e mulatos – entendidos como burraldos – entrarem na universidade. Cito-o: “o critério de controle defendido é aquele que combina a autodeclaração com a heterodeclaração. Quando a autodeclaração confere com a iconografia da pessoa, graças a uma fotografia colorida incontestável onde aparece a cor da pele e outros traços morfológicos que remetem à negritude [tchau, amazonense médio!], o candidato ou candidata não é barrado(a) pela Comissão. Mas quando há um desencontro entre a autodeclaração e o fenótipo de um candidato […], esse candidato não pode ser simplesmente barrado sem averiguação, porque as leis da genética comprovam que algumas pessoas mestiças podem apresentar um fenótipo dominante branco. Mas, aqui, coloca-se uma questão moral e não legítima ou legal, na medida em que esse indivíduo mestiço de pele mais clara e traços morfológicos caucasianos nunca se assumiu como pardo em sua vida inteira, e agora, por puro oportunismo, ele assume uma identidade que nunca carregou em sua vida. Temos um problema! Portanto, as comissões (necessárias) de posse de critérios amplamente discutidos [lá entre eles], aprovados e divulgados, têm o papel de analisar as situações específicas na tentativa de evitar fraudes.” É moral, mas não é legal, mas a comissão tem os critérios que lhe dão na telha. Está claro? Não, a coisa tá é preta.
Dito de maneira simples: esses tribunais não implicam o aumento de negros nas universidades públicas. Implica que ideólogos burocratas privatizaram 50% das vagas das nossas universidades e as preenchem como lhes aprouver. Diz Kabengele que não pode ser só autodeclaração porque o Brasil é um país apenas “em construção democrática”, no qual há fraudes e corrupção. Até parece que uma Comissão dessas não é um prato cheio para corrupção, ou que nunca deixaria um esquerdista claro tomar a vaga de um negro anônimo. É patrimonialismo puro. O abandono do vestibular, processo anônimo e cego, é uma profunda desmoralização da universidade pública.
E os críticos?
Tinha prometido falar das respostas aos críticos, mas o texto está longo, então vou citar en passant. Ele reclama que Risério o trata como racialista, quando ele não se diz racialista porque não acredita em raças. É um identitário e um multiculturalista. Reclama que Magnoli transcreveu de maneira errônea um texto dele no seu “Uma gota de sangue”, colocando um “racial” onde não havia, porque ele não acredita em raças. E, logo em seguida passa, a elogiar a criação da Secretaria de Promoção de Igualdade Racial. Racial.
Reclama também que Magnoli o acusa de querer transformar o Brasil num país birracial, o que não seria verdade porque raças não existem e ele não tem como impedir os brasileiros de se miscigenarem. Magnoli vive dizendo que não existem raças, de modo que ele nunca sequer pôde acusar Kabengele de querer fazer outra coisa que não dar uma canetada para institucionalizar a one drop rule ou coisa parecida. E é o que ele defende o livro inteiro.
Quanto a Peter Fry, ele é acusado de ser um dissimulado que não tem coragem de se assumir contrário às cotas. Mas Peter Fry fez um livro (junto com Yvonne Maggie e outros) justamente coligindo artigos contra as cotas. A dupla Peter Fry & Yvonne Maggie, antropólogos da UFRJ, agiu intensamente para coligir abaixo-assinados e mobilizar a sociedade contra as cotas raciais.
E Yvonne Maggie é citada como autoridade na querela, omitindo-se a sua posição contrária às cotas. Tal como Abdias faz com Thales de Azevedo, Kabengele pega trechos em que ela comenta alguma discriminação sofrida por negros como a comprovação das teses do movimento negro.