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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Anarcocapitalismo cultural

Por que a civilização ocidental passou a cultuar a riqueza?

(Foto: Midjourney)

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Desde o advento de Elon Musk, o público brasileiro tem se acostumado à exaltação de self made men bilionários. Essa prática talvez tenha tido seu primeiro apogeu no mundo anglófono do século XIX, com figuras como Cecil Rhodes e John D. Rockefeller, mas nunca deixou de existir nos Estados Unidos. Veja-se Bill Gates, que é de uma família muito importante, mas prefere se apresentar como um college dropout que deu certo. (Um college dropout é um aluno que largou a faculdade, o que, nos Estados Unidos, implica abandonar as pretensões de ter uma remuneração de classe média.) É como se Flávio Dino, cuja família manda no Maranhão desde os tempos do Império, preferisse se apresentar em Brasília como um migrante nordestino que deu certo na vida. Seria verdade, mas seria um recorte enganoso da realidade, que não obstante revela os seus valores de quem o escolhe: é ruim ter uma família boa, é bom ter sucesso sem devê-lo a laços sociais.

Mas a própria exaltação do rico já é uma novidade entre nós, brasileiros. Ela marca uma guinada decisiva do Ocidente para longe do cristianismo ao qual esteve atrelado por mais de um milênio. “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus”, diz a autoridade moral máxima do cristianismo, cujos seguidores seriam facilmente acusados de extremismo pelas novas elites (com a parcela direita desta elite chamando isso de marxismo cultural).

O condutor dessa mudança é a maior potência ocidental: os Estados Unidos. Lá, o comunismo foi exorcizado da esquerda na época do macarthismo, e desde então o esquerdismo tem sido mais liberal (milliano) que marxista. Desde Obama, essa guinada se aprofundou e a esquerda mainstream é francamente adepta de grandes empresas: ela existe só para pedir uma boquinha ao empregador para um punhado de “oprimidos” oficiais, e não para melhorar a qualidade de vida da população geral. Ela só fala do Estado quando quer institucionalizar alguma boquinha, obrigando o empregador a dá-la por força. Mas se o empregador fizer o que ela quer (o que está longe de ser raro), ela não precisa de Estado para nada. A esquerda woke é patrocinada e propagandeada pelas grandes empresas ocidentais.

A direita dos EUA, a seu turno, vem desde a década de 70 abandonando quaisquer reminiscências dos valores cristãos para esposar o combate às ingerências estatais sobre o capital e a moral. Vemos isso hoje muito bem com a guerra em Israel: a direita evangélica se orgulha de apoiar o país que exibe uma certa bandeira multicolorida, tomando-a por símbolo da “civilização judaico-cristã ocidental”. Dito de modo simples, a nova direita existe para legitimar a ideia de que liberdade é quando os ricos fazem o que querem e, com sorte, nos comandam. Não há contradição real entre nova esquerda e nova direita; ambas querem privatizar a política, só querem CEOs diferentes. Se você quer obedecer a Bezos, você é de esquerda; se quer obedecer a Musk, é de direita.

A direita dos EUA, a seu turno, vem desde a década de 70 abandonando quaisquer reminiscências dos valores cristãos para esposar o combate às ingerências estatais sobre o capital e a moral

Ainda assim, a nova direita tem criado a narrativa de que o Ocidente é a mesma coisa que liberdade econômica e de expressão, e que qualquer coisa diferente disso é um “marxismo cultural” que adviria de algum foco externo à civilização “judaico-cristã ocidental”. No entanto, o marxismo e o wokismo não foram inventados na China nem na Rússia; e, se o marxismo vingou em ambas, o wokismo é banido delas e fomentado em todos os países que estão sob o raio da influência estadunidense (desde o Brasil e a Europa até o Afeganistão do governo Trump, que incluía o ensino de ideologia de gênero para afegãos). O wokismo não é um vírus alheio ao Ocidente. Até concordo que é um vírus que destrói todo tipo de avanço civilizacional constituído até então. No entanto, o culto dos super-ricos também é estranho à tradição ocidental e também, ao meu ver, destrói todo tipo de avanço civilizacional constituído até então. Nem no período pagão existiu tal culto, e os gregos nos deixaram histórias como a do Rei Midas para nos precaver contra a cobiça.

Algo sintomático de uma grande mudança civilizacional é a tranquilidade com a qual a esquerda e a direita descrevem a sociedade como uma grande competição. Justiça social seria dar às pessoas a igualdade de condições para competir pelas vagas que pagam mais. Assim, quando se constata alguma desigualdade demográfica nos postos de trabalho visados, diz-se que há algum problema estrutural que não foi corrigido, e aí entram em cena os pedidos por boquinha. Tanto faz quem a dê: o Estado ou o tio Soros. Sendo o Estado, é preciso dar muitos dribles para escapar da vontade popular, e uma democracia saudável (que tenha algo a ver com a vontade popular) está longe de ser a ideal para essa esquerda. Já vimos em 2018, no Brasil, que essa esquerda não hesita em chamar o povo de fascista – só não pode dizer que é democrática. Essa esquerda não é democrática, nem comunista. É veladamente anarcocapitalista, pois crê num mercado regulado por cartéis alheios às soberanias nacionais e à vontade popular.

De todo modo, o que é palpável na nova esquerda é que ela é incapaz de pensar naqueles trabalhadores que não têm um perfil profissional a ser contemplado na sua mendicância por carguinhos. Pede-se quota para mulheres e negros em cargos de chefia e em concursos públicos, mas ninguém se interessa pelo destino do operário da construção civil, do porteiro, da funcionária da limpeza. Esses não são vistos como partes da sociedade que merecem respeito e dignidade, mas sim como perdedores da competição social. O que importa é que existam CEOs negras, não que a negra funcionária da limpeza tenha qualidade de vida.

Trata-se de uma visão antissocial da sociedade, na qual há somente perdedores e ganhadores. Ora, toda sociedade tem profissões humildes; é preciso voltarmos a pensar um modelo de harmonia social na qual os mais pobres não tenham de se sentir indignos pela sua profissão, e na qual consigam tirar o seu sustento com seu trabalho. Aliás, é simplesmente falsa a ideia de que todos temos como meta de vida o maior enriquecimento possível; o que a imensa maioria procura numa profissão é um meio de assegurar o sustento próprio e algum lazer (antes da atomização da sociedade, falava-se em sustento da família, mas agora isto é datado e, se algum conservador pré-olavismo propuser isso, será chamado de comunista, ou acusado de ignorar a ciência econômica). Se temos objetivos diferentes numa sociedade, então é falsa a visão da sociedade como uma competição pelas maiores riquezas.

Essa visão da sociedade como competição resulta de uma série de mudanças no pensamento já abordadas de maneira mais detida aqui, a saber: a adoção, primeiro, de um naturalismo de inspiração newtoniana, que depois trocou Newton por Darwin quando o evolucionismo foi aceito. Se Newton enxergava o mundo como um grande relógio de funcionamento perfeito engendrado por seu Artífice e assim inspirou os fisiocratas (os primeiros liberais econômicos), Darwin via o mundo como uma grande arena de competição por recursos, nos quais os perdedores pereciam. O mundo passou a ser, de certa forma, dos vencedores. Se a cosmovisão newtoniana deu origem ao liberalismo econômico, Darwin, contra a própria vontade, deu origem ao darwinismo social.

O liberalismo econômico, então, surgiu com o naturalismo newtoniano. Embora o newtonianismo e o liberalismo clássico tenham caído, manteve-se o naturalismo, agora de cunho darwinista. Uma marca presente até os dias de hoje desse naturalismo liberal é a condenação do “artificial” e da “intervenção”. O Estado é um artifício humano, ao passo que o mercado é natural e, enquanto tal, divino, já que Deus é o autor da natureza. Sendo criação humana, o Estado mexeria de modo indevido com uma criação divina.

Com Darwin, não há mais Deus no cenário. Há somente o triunfo do mais forte – e foi aí que se abriu o espaço para a idolatria do bilionário, que seria o “mais forte” nesta sociedade que se confunde com o mercado.

No próximo texto veremos em Hoppe como o anarcocapitalismo é uma ideologia abertamente supremacista, sendo inclusive favorável ao apartheid.

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