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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Por que Doria se sente tão à vontade para mentir no Roda Viva?

Doria está substituindo a ciência paulista pela chinesa, e isso se ilustra com o Butantan, que ele transformou em Bum Bum Tan Tan (Foto: Governo do Estado de São Paulo)

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Assisti à entrevista de Doria no Roda Viva. Existem algumas coisas impressionantes para os leitores deste jornal; existem outras que não surpreendem ninguém. Vou começar pelas mais fáceis: tratou-se, no conjunto, de uma peça de propaganda em que o pré-candidato a presidente ficou falando de Bolsonaro.

No geral Doria foi confrontado por jornalistas genéricos, desses que tem de baciada em redações, que o recriminavam por: (1) não acabar com a polícia militar, (2) ter apoiado Bolsonaro um dia e (3) ter semelhanças com Bolsonaro no que concerne ao combate da criminalidade.

Doria falou tim-tim por tim-tim os clichês antibolsonaristas dos jornalistas genéricos, o que leva a pensar que os clichês tenham saído da prancheta de algum marqueteiro, e que quem banca tais veículos não são a audiência. Falou que Bolsonaro é uma pessoa doente, um psicopata, e que tem quase certeza de que testes científicos poderiam atestar isso bem. Disse que os bolsonaristas (isto é, todo mundo que não é opositor de Bolsonaro) são anticiência, ignorantes e obscurantistas.

Já o que Doria entende por ciência, eu não sei. Porque ele chegou a dizer que Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP, é um homem aclamado pela ciência e eu não consigo imaginar a ciência batendo palma pra gente. Nem para Galileu, quanto mais para um burocrata.

Pois bem: a questão da FAPESP e a da propaganda enganosa do Butantan foram as únicas em que houve enfrentamento a Doria. Em plena  pandemia, Doria tinha cortado a verba da FAPESP. O Prof. Hamilton Varela, de Química da USP, chegou a publicar artigos neste jornal denunciando as ações de Doria. O desenrolar do assunto não foi favorável aos pesquisadores. Mas ainda assim Doria disse e repetiu que não só não houve cortes, como houve aumento. Podem perguntar a Zago, o homem aclamado pela ciência.

Ao meu ver, o que Doria está fazendo é substituir a ciência paulista pela chinesa, e isso se ilustra com o Butantan, que ele transformou em Bum Bum Tan Tan. Em vez de dar recursos para desenvolvermos no Brasil, em São Paulo, uma vacina contra a covid, ele preferiu alocar os recursos na compra da vacina chinesa de eficácia para lá de duvidosa e usar o Butantan como mero fabricante dessa vacina sobre a qual não temos propriedade intelectual.

Além de fabricante, o Butantan se tornou um propagandista que lacra muito no Twitter, garantindo eficácia de inacreditáveis 100% contra a morte de covid. O próprio Doria veio a público alardear dados do Butantan que se mostraram falsos, os de eficácia entre 78 e 100%, como vocês podem conferir no próprio site da instituição. Doria disse na cara dura que esses dados são da Anvisa, e a insistência de Joel Pinheiro da Fonseca não adiantou de nada.

E isto, creio, é o que há a surpreender o leitor deste jornal: Doria se sente à vontade para dizer o que quiser. Se ele disser que o céu é verde, fica tudo por isso mesmo e quem negar é obscurantista bolsomínion anticiência.

Informação via internet X meios tradicionais

João Doria pode até ser maluco, mas não é burro. Se ele se sente tão à vontade assim para falar falsidades, é porque espera que haja gente disposta a engolir tudo o que passa na TV. Além de imoral, acho isso um baita erro estratégico e acho que ele não ganha em eleição nem de síndico. Mas eu acho que sei o que vai na cabeça dele.

Com a pandemia, vimos que de fato há um perfil bastante discernível de antigos antipetistas que votaram em Bolsonaro e estão dispostos a votar em qualquer coisa menos Bolsonaro. O bumbo da imprensa tradicional diz, e eles acreditaram, que cada morte de covid no Brasil é responsabilidade pessoal de Bolsonaro. Gente que era fã de Moro agora tem Renan Calheiros como herói.

São todos desonestos? Creio que não. Creio que parte de fato é composta por tucanos oportunistas, mas, como nem existe tanto tucano assim, creio que a maior parte é composta por gente com duas características: (1) é impressionável e, a mais importante, (2) confia nos veículos tradicionais para decidir o que é verdadeiro e o que é falso. A imensa maioria do Brasil tem internet.  Mas isto é bem diferente de usar a internet para se informar; há quem use o zap-zap mais para as atividades quotidianas, receba um monte de coisas esdrúxulas e espere o Jornal Nacional para se informar.

As TVs perderam patrocínio estatal. Os jornais tradicionais vêm perdendo assinaturas impressas e tentam migrar para o digital com assinaturas a preços baixíssimos. Assim, não seria de estranhar que potências econômicas tapassem os buracos dos veículos tradicionais cobrando-lhes que propaganda fosse apresentada como notícia. E essa imprensa é a (digamos) última instância de muita gente para decidir o que é a verdade.

Nós, que confiamos em meios digitais, vimos esse processo boquiabertos. Eles não enxergam, porque estão no olho do furacão. Dentro do olho do furacão, as coisas parecem mais calmas  do que são na realidade. Eles são o centro, a calmaria, enquanto o mundo ao redor tem uma ventania que julgam terrível mas é só de escala nacional (Bolsonaro). Quem vê o furacão está fora dele, pode ser alvo dele e enxerga que o problema é maior do que qualquer ventania nacional.

Longe de mim dizer que todo mundo cuja última instância é digital está maravilhosamente informado. Digo somente que o perfil do leitor digital é mais diverso do que o do leitor antigo:  inclui desde terraplanistas até bons cientistas. Quem está no olho do furacão os vê e acha que são tudo a mesma coisa (bolsomínion). Quem está fora do furacão, mesmo que não o enxergue com distinção, percebe que há algo de muito errado e sai correndo. No que sai correndo, a imprensa tradicional perde ainda mais a sua confiabilidade, e fica mais sectária ainda. Resta saber como e quando esse furacão acaba.

O abismo informacional

Assim, Doria confia que a maioria da população brasileira tem a TV como última instância, em vez da internet. Que quando um cidadão zapear por vários canais e vir todos repetindo a mesma propaganda, vai concluir que se trata de uma verdade reconhecida. Se ele tem razão, eu não sei. Estou num posto de observação ruim para enxergar mudança; moro na retaguarda. Da Bahia eu não adivinharia nunca que Bolsonaro ia ser presidente.

Termino com dois causos para dar conta desse abismo informacional. Neste mês encontrei em Salvador um professor universitário que assiste à TV sempre e apenas ocasionalmente vê vídeos de Alexandre Garcia, Rodrigo Constantino e Pingos nos Is. Na mesma ocasião estava uma estudante de direito bem nova, de universidade de elite. Ele não era professor dela. Ela estava curiosa para nos ver conversando por não ter ideia de como alguém poderia achar que o Brasil corria o risco de cair numa ditadura.

Perguntei a ambos se tinham visto algo sobre a invasão hacker do TSE. Nós, que confiamos e meios digitais, sabemos que Bolsonaro deu uma entrevista aos Pingos nos Is acompanhado por um professor da UFABC e um deputado para tratar da segurança das urnas, contar que um hacker se gabou de ter passado meses dentro do TSE em 2018 após invadir o TRE da Paraíba, que PF investigou e que há (ele tinha em mãos) um relatório do TSE confirmando a invasão hacker. Que o mesmo TSE informou que os logs (que poderiam informar o trajeto do hacker) tinham sido apagados, e que o sujeito que apagou saiu do cargo para ser assessor de Barroso.

Nenhum dos dois sabia de nada disso.

De volta ao interior, pude ver que um veemente apoiador de Bolsonaro (um eletricista) também não sabia de nada disso. Para contar, tive primeiro que explicar que existe uma rádio em São Paulo que começou a ser como uma TV da internet e por isso gente de todo o Brasil assiste.

Se Bolsonaro tem apoiadores entre os que não usam a internet para se informar, quer dizer que, no fim das contas, nem mesmo com a exclusividade a TV está conseguindo manter sua credibilidade.

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