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Bruna Frascolla

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Por que João Cezar de Castro Rocha faz teoria da conspiração, parte 2

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Autores acreditam que por trás do golpe de 1964 estaria a mão do Tio Sam (Foto: BigStock)

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João Cezar de Castro Rocha defende a tese do Golpe do Zap Zap traçando um paralelismo com o Golpe de 64.

Qual é o vernáculo esquerdista sobre 64? Que os militares são maus como pica-paus, por isso deram um golpe e perseguiram os esquerdistas, que são mártires da luta pela democracia. Deve ser um entendimento forjado ainda na década de 70. Bem ou mal, a agência do golpe era atribuída a brasileiros. Em 1981, porém, surge o livro “1964: A conquista do Estado”, do historiador uruguaio René Dreifuss, professor no Brasil. Com essa versão, a agência do golpe sai das mãos dos brasileiros e vai direto para os Estados Unidos. A própria capa do livro traz os brasileiros representados como peões no tabuleiro, com João Goulart derrubado e um militar em pé. Por trás de tudo estaria a mão do Tio Sam.

O livro é um catatau de mais de 800 páginas, com letras miúdas. Algumas centenas de páginas consistem em documentação levantada pelo pesquisador. Seu foco são as relações das forças anticomunistas dos Estados Unidos com o empresariado brasileiro.

É possível fazer uma pesquisa histórica pertinente e, ao mesmo tempo, cair em cascas de bananas atiradas pela ideologia. É o caso de Dreifuss, um gramsciano.

O vício gramsciano

Coloque-se no lugar de um comunista. O Profeta jurou que a Revolução do proletariado viria, porque este não iria se conformar com a espoliação do sistema capitalista. No entanto, a Revolução só faz sucesso entre os intelectuais; os pobres não estão nem aí. Como isso é possível? Gramsci escreveu: “os fatores econômicos condicionam, mas não determinam mecanicamente a política;” – eis uma descoberta na contramão de Marx – “é necessário que o povo os entenda e os controle, até que a vontade coletiva se torne a força diretora da economia, a força que configura a própria realidade.” (apud Paim, Marxismo e descendência, p. 535). Tudo é economia, mas é preciso fazer uma gambiarra e passar pelo convencimento do povo primeiro. Por isso é preciso que não mais o proletariado seja o primeiro agente da Revolução, mas sim os intelectuais, que vão espalhar a consciência.

Diz Paim que Gramsci era um leninista típico. Merquior discorda, por causa do foco de Gramsci em ampliar o eleitorado do Partido Comunista Italiano (PCI). Eu acho que Paim tem razão, já que esse foco de Gramsci pode ser meramente conjuntural, uma gambiarra leninista para um país democrático – sobretudo porque o PCI de Gramsci estava sob a direção de Moscou. Seja como for, Gramsci escrevia num país em que o Partido Fascista chegara a 64% dos votos. O povo era uma esfinge para os comunistas italianos. Vem desse estado de coisas o hábito de xingar de populista o opositor da esquerda amado pelo povo.

Para dar uma ideia do fanatismo marxista de Gramsci e do desprezo que sentia pelos trabalhadores, cito Paim, que cata textos de Gramsci no órgão do PCI: “a sociedade está dividida em duas classes. A classe que possui os instrumentos de produção conhece a si mesma. O estabelecimento das verdadeiras leis da causalidade histórica [i. e., a obra de Marx] somente para a outra classe assume o caráter de uma revelação. Escreve: ‘O rebanho [sic] adquire consciência de si mesmo, da tarefa que pode realizar e que mesmo a outra classe pode afirmá-lo. Torna-se patente que seus fins individuais permanecem puramente arbitrários, simples declarações bombásticas, até que proporcione os meios de ação, até que se hajam convertido numa vontade.’ Tudo isso nos terá sido mostrado por Marx, ‘mestre de vida espiritual e moral’. ‘Ele é um bloco monolítico de consciência, pensando a humanidade’. ‘É um vasto e sereno cérebro’. E por aí vai: ‘Ele é uma parte integrante necessária do espírito humano que não seria o que é agora se Marx não tivesse vivido’. Conclui deste modo: ‘Quando glorifica a Karl Marx […], o proletariado internacional glorifica a si mesmo: seu poder autoconsciente e a dinâmica do seu espírito de conquista, que já abala e destrói o domínio do privilégio, e o prepara para a luta final que irá coroar seus esforços e sacrifícios.’ [Isto é, a Revolução.]”

Com razão, Paim diz que Gramsci entende o marxismo como “uma espécie de infusão de sabedoria”. Essa infusão de sabedoria é ministrada pelo intelectual, que tem essa função mística de fazer as massas se tornarem autoconscientes (graças à Revelação) e guiá-las para a Revolução.

O vício gramsciano é considerar o povo destituído de agência e consciência, gado tangido. Isso é um prato cheio para teoria conspiratória, já que as ações do povo sempre têm que ser remontadas a alguém “consciente”, ou seja, a alguém da classe possuidora dos meios de produção.

A fé na propaganda

Pois muito bem: por que então o povo ama um outro que não eu? Ora, por causa dos intelectuais orgânicos da burguesia. Vamos ao resumo de Merquior da famosa tese da hegemonia cultural: “Gramsci achava a crítica leninista do ‘economismo’ sindical um convite soreliano para edificar o socialismo como uma nova moralidade nutrida por uma nova visão do mundo. Mas isso só se podia fazer por meio de ‘um aparato de hegemonia’, no qual o papel dos intelectuais teria importância estratégica. Mais exatamente, os intelectuais são sempre presos à classe, mas presos à classe de duas maneiras distintas: ou são ‘orgânicos’, i. e., uma força ativa, organizadora, numa classe determinada; ou são ‘tradicionais’, profissionais da mente, gozando de uma posição acima das classes mas que de fato deriva, a rigor, do passado da estrutura social: pois houve um tempo em que eles também agiram como porta-vozes e ideólogos para a burguesia em ascensão. De modo que intelectuais orgânicos são, antes de mais nada, organizadores da hegemonia in fieri.” (O marxismo ocidental, p. 131)

Merquior acha que isso é um “whishful thinking voltado para a construção da hegemonia proletária”. E é mesmo, dado que intelectuais ferrados, derrotados em urnas e armas, podem entreter do cárcere o sonho de chegar ao poder usando apenas suas cabeçonas hiperconscientes. Mas é também uma explicação causal para o porquê de o povo não me amar. É tudo culpa da hegemonia cultural da burguesia e dos seus intelectuais orgânicos.

A causa do golpe de 64, à Gramsci

Voltemos enfim ao golpe de 64. René Dreifuss, com esmero, apurou que os think tanks IPES e IBAD, fundados respectivamente em 1961 e 1959, eram financiados pelos Estados Unidos e por empresas privadas. Suas atividades incluíam o preparo de material conservador e anticomunista para ser divulgado no rádio e na incipiente TV. Que concluir disso?

Ora, um bom estudioso de humanas não se deixaria impressionar por esse fato, já que na época da Guerra Fria havia pelo mundo uma guerra de propaganda entre soviéticos e norte-americanos. O financiamento norte-americano do IPES e do IBAD é um dado relevante para a compreensão do período – assim como a renúncia de Jânio, o sistema eleitoral que permitia a eleição de um vice oposicionista do presidente, o governo Jango, a espionagem soviética, o Exército brasileiro, a Igreja… O IPES e o IBAD são peças num quebra-cabeças complexo.

Para um historiador gramsciano, porém, trata-se da prova cabal demandada por sua cosmovisão conspiratória. Aí estava a hegemonia burguesa urdida por seus intelectuais orgânicos. Como resumiu a historiadora Argelina Figueiredo, Dreifuss “analisa as atividades de uma organização política — o ‘complexo’ IPES/IBAD (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação Democrática) — liderada pelo ‘bloco de poder multinacional e associado’ que, ‘através do exercício de sua influência em todos os níveis políticos’, foi capaz de provocar a ruptura da forma populista de dominação e conter o ‘desenvolvimento da organização nacional de classes trabalhadoras’.” (Democracia ou reformas, p. 27). Ela colhe uma citação dele que serve para dar a tônica da interpretação: “Uma vez unificadas as várias oposições sob uma liderança sincronizada comum, formulando um ‘plano geral’, a elite orgânica lançava a campanha político-militar que mobilizaria o conjunto da burguesia, convenceria os segmentos relevantes das Forças Armadas da justiça de sua causa, neutralizaria a dissensão e obteria o apoio dos tradicionais setores empresariais, bem como a adesão ou a passividade das classes subalternas.” E a conclusão da historiadora é corretíssima: “Este tipo de análise […] falha em fornecer uma explicação real, pois toma a mera existência de uma conspiração como condição suficiente para o sucesso do golpe político. Os conspiradores são vistos como onipotentes. Consequentemente a ação empreendida por eles não é analisada em relação a outros grupos, nem vista como sendo limitada por quaisquer constrangimentos externos.” Friso que a teoria conspiratória explica até o não-comunismo das “classes subalternas”. É o pensamento de quem que acha que o povo é tangido por propagandistas.

O Brasil Paralelo integra o novo complexo IPES/IBAD

E voltamos enfim ao Prof. João Cezar. Ele acredita piamente em René Dreifuss. Em suas próprias palavras, “o ‘complexo IPES/IBAD’, termo empregado por Dreifuss, foi fundamental na articulação civil-militar da montagem do golpe de 1964, representando uma das mais decisivas ações da direita brasileira para obter hegemonia nos campos político, econômico e cultural.” (p. 275) Ou seja, o golpe de 64 logrou êxito por ter sido precedido por uma hegemonia cultural de direita gestada pelos IPES/IBAD.

Agora é só pegar a receita de 64 e jogar em 18 e ploft: fica explicada a eleição de Bolsonaro. Na receita de 64, o IPES “responsabilizou-se pela promoção de ideias anticomunistas através da produção de peças de propaganda – filmes, documentários, revistas e livros.” E em 18? “Sem deixar de reconhecer as diferenças históricas, a produtora Brasil Paralelo, representou para a chegada do poder ao bolsonarismo o mesmo papel que o IPES desempenhou na preparação do golpe civil-militar de 1964. Especialmente, seus imaginativos documentários aprimoram uma versão revisionista da história brasileira que se encontra na origem do ‘conhecimento’ de boa parte da militância bolsonarista […] Como a plataforma da produtora afirma (em tom que não deixa de ser ameaçador): ‘Documentários e filmes gratuitos que já ensinaram milhões de brasileiros’.”

Quais são os grandes erros do Brasil Paralelo relativos a 64? “O filme [1964: O Brasil entre armas e livros] é organizado por uma premissa sombria: a história brasileira só se torna inteligível quando inserida no contexto internacional. Tal moldura favorece a explicação de processos complexos por meio de teorias conspiratórias, tão ao gosto do sistema de crenças de Olavo de Carvalho, já que sempre se encontra uma causa primeira e, sobretudo, externa. Desse modo, a compreensão do golpe de março de 1964 exige a reconstrução das circunstâncias da Guerra Fria.”

Essa crítica é uma grande piada. A interpretação de Dreifuss só faz sentido à luz do contexto internacional – se João Cezar acha que isso favorece teorias conspiratórias, é sincericídio. Mas o fato é que qualquer evento relacionado Guerra Fria precisa ser apresentado na moldura do contexto internacional.

João Cezar é mais primário que Dreifuss. Um gramsciano deveria saber que cultura não explica tudo; há a luta de classes. Dreifuss culpava a burguesia pelo golpe. João Cezar, nem isso. Ele não explica que classe ou agente econômico está por detrás do sucesso de Bolsonaro. Ele poderia tentar culpar o agronegócio ou Luciano Hang, mas nem fez isso. É um sub-gramsciano que crê na onipotência da propaganda, mesmo desvinculada da economia.

Na próxima, vemos o Orvil, tido por ele como "Santo Graal" do bolsonarismo.

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