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Como vimos, o Brasil Paralelo seria uma peça na conspiração da hegemonia cultural direitista. “Muito provavelmente”, diz o Prof. João Cezar, “o êxito eleitoral de Jair Messias Bolsonaro não teria sido o mesmo sem a matriz narrativa imaginada no Orvil. Santo Graal da extrema-direita nos trópicos, que, além de tristes tornaram-se ressentidos e revisionistas. De igual modo, a presença de Olavo de Carvalho permite montar o quebra-cabeças da mentalidade bolsonarista.”
Pouca gente ouviu falar do Orvil e há pouca coisa sobre ele. Orvil é Livro ao contrário; isso se deve ao fato de o livro ter sido um projeto secreto. Orvil era código para o projeto de redigir uma história das tentativas de tomada do poder pelos comunistas no Brasil. A redação se deu até as vésperas da redemocratização, mas sua publicação foi vetada por Sarney. A ideia era responder ao projeto “Brasil: Nunca Mais”, em que esquerdistas revisam processos da ditadura para denunciar crimes cometidos pelos militares, especialmente a tortura. Já na democracia e na era da internet, militares reformados criaram um site (agora fora do ar) chamado Ternuma, abreviação de “Terrorismo Nunca Mais”. Lá, começaram a soltar trechos do lendário Orvil.
Em 2007, o historiador lulista Lucas Figueiredo conseguiu que um general lhe deixasse consultar uma das 15 cópias, escreveu um livro-reportagem sobre o assunto, ganhou um prêmio Esso e o livro deixou de ser tabu. Assim, o Ternuma soltou na internet o Orvil inteiro digitalizado. Depois, em 2012, uma figura bastante atuante em defesa dos militares da Repressão, Lício Maciel, fez uma edição física bem bonita e cuidada. Lício Maciel, codinome Dr. Asdrúbal, era veterano da guerrilha do Araguaia. Ele tomou um tiro na cara dado por uma guerrilheira rendida, achando que ela nunca fosse capaz de fazer algo tão irracional. Perdeu dentes, teve o palato furado, mas sobreviveu. Morreu bem velho e se tornou blogueiro em 2010, aos 80 anos. Sua morte não saiu na imprensa. Vi somente nas redes sociais do historiador Hugo Studart. (A quem, aliás, alude na derradeira postagem do seu blogue). O leitor pode baixar o catatau do Orvil gratuitamente na internet. Quanto ao Orvil impresso e bem cuidado, vemos que Lício Maciel morreu brigando com a editora.
O Orvil apontou a substituição da luta armada
A despeito da aura de mistério, o Orvil é uma coisa simples: um relato burocrático e minucioso, feito pelos militares, das atividades dos comunistas desde a fundação do PCB, lá na década de 1920, até a data em que o livro era escrito. E toda a celeuma levantada por João Cezar (em conjunto com Lucas Figueiredo) se dá em torno de um fato histórico pouco ou nada controvertido: o Orvil coloca em 1973, ou seja, no fim da Guerrilha do Araguaia, o fim da tentativa de tomada do poder por meio das armas. A partir de 1974 os comunistas tentariam chegar ao poder por meios políticos, e assim estariam até o momento da redação do livro.
Cito o Orvil, na página 873 do PDF: “Vencidas na forma de luta que escolheram, as organizações da esquerda revolucionária têm buscado a transformar a derrota militar que lhes foi imposta, em todos os quadrantes do território nacional, em vitória política. Após a autocrítica, uma a uma das diferentes organizações envolvidas na luta armada concluíram que foi um erro lançarem-se na aventura militarista, sem antes terem conseguido o apoio de boa parte da população. A partir desse momento, reiniciaram as lutas de tomada do poder, mudando de estratégia – a prioridade agora seria dada ao trabalho de massa.” A isso seguiam-se os relatos de quem fez o quê em qual organização esquerdista. João Cezar rotula como "narrativa imaginada", mas não aponta nenhuma inverade. Em vez disso, vai para um ad Olavum, digamos assim.
Como rotular essa nova estratégia comunista? Tratava-se ora do trabalho leninista, ora do gramscista, do teólogo da libertação, do frankfurtiano... Minucioso, o Orvil listava rachas e decisões particulares de grupos esquerdistas, inclusive de teólogos da libertação, que são uma linha hegeliana própria sem relações diretas com o gramscismo. Mas não se preocupava em dar um rótulo.
A ideia de que o comunismo largou a luta armada e se reinventou para caber no jogo político das democracias é banal. No mundo anglófono, a denúncia dos estratégias não-guerrilheiras de disseminar o comunismo passaram a ser chamadas de cultural marxism, marxismo cultural, na década de 1990. O termo foi disseminado no Brasil por Olavo de Carvalho, que, no entanto, prefere usar a denominação mais precisa de “gramscismo”. O termo “marxismo cultural”, que é vago, foi cunhado por Michael Minnicino tendo em mente a Escola de Frankfurt. A vagueza tem lá suas virtudes, pois nos poupa de distinguir entre facções ideológicas cujas ações são as mesmas. Se usarmos o termo “marxismo cultural” em oposição a “marxismo armado”, cabe aí Paulo Freire, cuja obra é anterior a 1974 e não tem vínculos com o gramscismo, dado que ele era da linha maoísta. Para aumentar a confusão, fato é que o marxismo armado não exclui o marxismo cultural, já que não basta chegar ao poder se as massas se revelarem insubmissas. Até por isso faz sentido alguém tão culturalista como Gramsci ser chamado de "leninista típico" por Paim: propaganda e doutrinação não são descartáveis quando se tem poder armado. Muito pelo contrário.
Seja como for, fato é que o Orvil não se engalfinha em discussões terminológicas e se limita a uma descrição dos rachas e decisões de uma esquerda esfacelada em trocentas facções. Quanto ao porquê da insistência brasileira no gramscismo em particular, perguntei a Hugo Studart. A resposta é que o PCB, de Prestes adotou o gramscismo em particular (leia sobre aqui). A guerrilha ficou por conta de outras organizações comunistas.
A falácia do ad Olavum
Os comunistas então iriam só trabalhar as massas em vez de pegar em armas. E daí? Daí que, segundo João Cezar, “embora o nome Antonio Gramsci não apareça no texto do Orvil, a descrição do processo antecipa o ‘gramscismo’ delirante postulado por Olavo de Carvalho e seus seguidores, cujos reflexos nas Forças Armadas não devem ser menosprezados. Em 5 de dezembro de 2012, na gravação do último episódio do programa de rádio True Outspeak, Olavo de Carvalho, segurando um exemplar da versão impressa do Orvil, mandou um recado significativo: ‘E, por fim, queria aqui agradecer à família Bolsonaro, Jair, Flávio e Carlos, pela remessa deste livro Orvil (que é livro ao contrário) – Tentativas de tomada do poder, que é resultado de um relatório do serviço secreto de inteligência já mais antigo sobre as tentativas dos comunistas de tomar o poder no Brasil; das várias tentativas de revolução comunista. (…) Então, aí, Bolsonaros, muito obrigado pela remessa desde material precioso! Sucesso aí.’ ”
E dessa citação de Olavo de Carvalho ele pula para o parágrafo com o qual comecei este texto. Olavo ganhou o Orvil dos Bolsonaro, então pronto, está tudo conectado. Anos depois o Brasil Paralelo fez um documentário sobre 1964 enfatizando a ingerência soviética no Brasil. E se Olavo é um conspiracionista, então algo parecido com as crenças de Olavo só pode ser conspiracionista também. É a falácia ad Olavum, segundo a qual, se Olavo disser que 1 + 1 = 2, a conta se torna teoria da conspiração.
No documentário que tanto irritou João Cezar, aparece a história de Mauro Kraenski, um brasileiro que mora na República Tcheca. O país abriu os documentos da sua seção do serviço secreto soviético (o StB) e Mauro Kraenski descobriu relatórios sobre operações do StB no Brasil. O resultado da investigação apareceu em livro. Mauro Kraenski louva Olavo por ser, segundo ele, o único a comentar o fato de que deveriam existir arquivos soviéticos sobre espionagem no Brasil.
(Sobre o documentário em si, que vi enquanto escrevia esta resenha, a única coisa que me deixou de cabelo em pé não foi criticada por João Cezar. Alexandre Borges aparece dizendo que a ideia de construir uma nova capital longe do povo é dos comunistas. Isso é um despautério. A ideia de construir uma nova capital no centro do Brasil é do Marquês de Pombal. O nome dessa capital remonta a Bonifácio, e a previsão da sua construção está prevista na primeira Constituição da República).
Tal como René Dreifuss, Mauro Kraenski fez uma descoberta muito importante para entendermos o quebra-cabeças de 1964. Olavo tinha razão ao encorajá-lo e, por seu intermédio, fez um bem ao conhecimento da história do Brasil.
O Orvil não tem relação com Olavo
Quanto ao Orvil em particular, uma coisa que João Cezar ignora solenemente é que a militância anticomunista de Olavo de Carvalho se iniciou quando o livro ainda era secreto. E ele só ficou plenamente legível em 2012, pois aquela versão em PDF é de um xerox pálido. Teria Olavo tido contato com os poucos militares possuidores do livro? Estariam todos de posse do "Santo Graal", conspirando para hipnotizar as massas e eleger Bolsonaro?
Bom, o mais proativo militante da Repressão era o já citado Lício Maciel. Ele começou o blogue em 2010 e fez sua última postagem em 2020. Pesquisando “Olavo”, encontramos só dez menções. A primeira é de 2012, em que ele fica feliz com a divulgação do Orvil. As demais são relativas ou ao Orvil, ou aos elogios de Olavo ao governo Bolsonaro.
Olavo e a turma da Repressão veem em Bolsonaro um representante de suas convicções anticomunistas. Isso não quer dizer que haja entrosamento entre ambas as partes. Por um lado, Olavo adora falar mal dos militares. Por outro, a turma da Repressão é velha demais para enxergar em Olavo um guru. Olavo é pop entre jovem; jovem não sabe quem é Lício Maciel. Se soubesse, seria incompreensível deixá-lo fora de um documentário anticomunista como o “Entre Armas e Livros”, feito quando ele ainda estava vivo.
De resto, Olavo dá a João Cezar motivos legítimos para que este o chame de delirante. O exemplo colhido por João Cezar é a sua crença de que Adorno escrevia as músicas dos Beatles porque um holandês aleatório, autor de um livro que alega que testemunhas de Jeová são satanistas, disse que sim. O pensamento de Olavo é de qualidade variada: tem insights importantes e lixo conspiratório; é uma mistura de pérolas com lavagem de porco. Um efeito disso é as pérolas ficarem sujas pelo lamaçal. Daí sai o ad Olavum.
O que João Cezar faz, então, é usar da má reputação de Olavo para lançá-la sobre o Orvil. Olavo, ex-comunista do PCB, que passou pelo gramscismo, é propenso a crer em teorias conspiratórias. O Orvil não faz teoria da conspiração. Dizer que o convencimento das massas é “teoria conspiratória”, como João Cezar faz, é má historiografia. Historiografia tão ruim quanto a de Alexandre Borges no documentário, cujo erro crasso ele deixou passar.
No mais, há dois assuntos que ainda quero abordar: a apreciação que João Cezar faz da esquerda armada e a que faz de Olavo de Carvalho.