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Para quem se interessa por história e não usa a propaganda petista como fonte de informação, o período militar tem mais controvérsias morais do que factuais. Houve tortura? Houve. Como o próprio João Cezar de Castro Rocha disse à página 249, o “Brasil: Nunca Mais” foi feito com base nos registros do próprio Exército, que deixou os advogados consultarem os processos. Que eu saiba, não existe um agente da Repressão que tente convencer o público de que a tortura não existiu. A controvérsia moral suscitada pelos militares anticomunistas é de se a tortura é justificável ou não.
Os defensores da Repressão deixarão subentendido que era o único meio de conter o terrorismo, mas dirão em alto e bom som apenas que uma ditadura naquele período era necessária. Uma boa réplica a esse argumento é que as democracias foram capazes de enfrentar o terrorismo, vide os EUA com os Panteras Negras e o Weather Underground – ou a Itália com os colegas de Cesare Battisti, tratado pelo Brasil Petista como um herói democrático.
No entanto, as técnicas de tortura aprendidas pelos militares brasileiros não foram ensinadas pela KGB, mas sim por serviços secretos do mundo livre. As democracias que combatem o terrorismo não acabaram com a tortura (vide os EUA com Guantánamo); em vez disso, tornaram-na tabu e segredo de Estado.
A peculiaridade brasileira é a tortura ter sido lançada no ventilador, ter encontrado apoiadores explícitos e um deles ter sido eleito para a Presidência da República. A esquerda fez um erro de cálculo ao insistir na denúncia da tortura: num país de Justiça “humanista” inócua, a população está acostumada a apoiar o barbarismo que se mostra eficaz.
É claro que isso não resolve a questão ética; quando a Abolição foi proposta não existia em parte alguma do mundo uma sociedade sem escravos. Só digo que nenhum contrafactual feliz pode ser apontado com facilidade para resolver o caso do Brasil nas décadas de 60 e 70.
Mas, a lermos João Cezar de Castro Rocha, não temos nenhuma reflexão ética interessante. Na verdade, nada faz sentido: parece que os militares documentaram tudo o que fizeram, mas ainda assim resolvem negar a tortura. Que tinham total controle sobre o país, mas ainda assim se deram ao trabalho de fazer uma Lei da Anistia para si próprios – e só para si próprios.
A versão petista abrandada
Se a defesa da Repressão suscita questões morais, a defesa da Esquerda Armada feita pelos petistas suscita, antes de tudo, questões factuais. Porque pede-se que acreditemos que eram jovens idealistas que pegavam em armas para deter torturadores sádicos e restaurar a democracia.
Na verdade, a Esquerda Armada já existia antes do Golpe de 64; o PCdoB foi fundado em 1962 com o ambicioso propósito de derrubar Jango e instaurar uma ditadura comunista no Brasil. Como gosta de lembrar Hugo Studart, meses antes do Golpe, o PCdoB enviava brasileiros para a Academia Militar de Pequim com o fito de formar guerrilheiros. Inverte a causalidade, portanto, quem diz que a ditadura militar causou a reação violenta da esquerda.
A versão petista, tantas vezes repetida por Dilma Rousseff, alega que os guerrilheiros lutavam pela democracia. Isso é um delírio. Uma versão mais branda dessa mentira alega que os guerrilheiros lutavam contra “a” ditadura, quando na verdade eles lutavam contra “uma” ditadura em particular, para instaurar uma outra, totalitária.
João Cezar adere a essa versão mais branda da falsificação da história e é um negacionista dos crimes do comunismo praticados aqui e alhures. À página 258, ele cita um trecho do Orvil em que se mencionam “atos cruéis de assassinatos premeditados, assaltos à mão armada, atentados e sequestros com fins políticos”. Refere se a isto como “crimes atribuídos à esquerda” e diz que, no trecho citado, o que o Orvil faz é “reescrever o passado recente com a esperança de moldar o imaginário das gerações futuras.” Ora bolas, caçarolas. Reescrever o passado recente é negar que esse tipo de crime tenha sido praticado pela esquerda armada.
Listo um exemplar famoso de cada: o assassinato de Edward von Westernhaugen (confundido com Gary Prado), o assalto ao cofre de Adhemar de Barros (feito com armamento pesado), o atentado no Aeroporto dos Guararapes (que matou o jornalista Edson Régis de Carvalho e o vice-almirante reformado Nelson Gomes Fernandes; poderia ter matado mais, se o presidente não tivesse cancelado a viagem) e o famosíssimo sequestro do embaixador Charles Elbrick.
À página 265, outra vez comentando o Orvil, alude ao “estigma da associação [do PCB] com o Partido Comunista da União Soviética (PCUS)”. Ora bolas, caçarolas. O Orvil está correto ao ressaltar que o PCB surgiu sujeito ao PCUS, isto é, à Moscou de Lênin. O PCB nascia submisso a uma organização genocida e assim continuaria durante todo o stalinismo.
Mas João Cezar reclama: “Na economia narrativa do Orvil, o dado é fundador, mas é preciso atar as pontas para colocar de pé o edifício narrativo. O título do primeiro capítulo é antes um juízo severo, ‘A fonte da violência’, ou seja, os próprios ‘objetivos da Revolução Comunista’ implicam necessariamente o recurso à guerra revolucionária.”
Ele chama de narrativa o que é fato, sem sequer se importar em apontar a falsidade. Marx prevê a Revolução por achar que é inexorável segundo as leis do materialismo dialético. E em 1922, todo partido comunista estava sujeito a Lênin, que achava que o protagonismo da Revolução cabia ao Partido, em vez do Proletariado.
O marxismo apontava para a violência inexorável; o leninismo, para a violência iminente. Antes de o relatório Kruschov chegar ao Brasil (e a data de sua chegada é controvertida, havendo quem diga que Paim o contrabandeou, traduziu e Prestes não quis saber), a violência era inexorável. Mas tudo isso é anterior ao período da guerrilha.
Nas décadas de 60 e 70, fervilharam pelo país os foquistas, inspirados em Che Guevara, e os maoístas, que acreditavam na guerrilha rural. Che contou com um francês, Régis Debray, para dar um arcabouço intelectual às suas ideias sanguinárias. Tudo isso é fato. Havia, por certo, grupos comunistas que não pegavam em armas e se dedicavam ao estudo do comunismo. Mas daí a dizer que eles acreditavam em pacifismo são outros quinhentos.
Cito Antonio Risério, que era dos que estudavam: “A ex-presidente não hesita em mentir sobre o tema, falsificando fatos. Tudo para se apresentar como paladina e guardiã da democracia em nosso país, coisas que ela nunca foi. Dilma sequer se aproximou da chamada esquerda ‘reformista’, do ‘Partidão’, como era então chamado o Partido Comunista Brasileiro (PCB), bem mais moderado e menos ansioso em seu esquerdismo. Não: ela passou rapidamente pela Polop e logo caiu no colo da esquerda terrorista. Já a Polop, organização clandestina da qual fiz parte, não lutava pela volta da democracia. Sempre lembro que o livro de cabeceira dos militantes polopianos era Estado e Revolução, de Lênin, um ataque vigoroso à democracia representativa caracterizada como ferramenta fundamental da dominação do proletariado pela burguesia.” (Em busca da nação, p. 312-313)
A Comissão Nacional da Verdade
E justo a presidente Dilma Rousseff, uma revisionista em causa própria, esteve à frente da presidência quando da instauração da Comissão da Verdade. Segundo o Prof. João Cezar, os militares erraram ao buscarem proximidade com o deputado Jair Bolsonaro, porque a Comissão da Verdade era repleta de boas intenções, sem mágoas dos militares.
À página 318, ele cita e grifa um trecho da lei que cria a Comissão: “É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.”
Segundo João Cezar, os militares acharam que o princípio da Comissão “seria motivado pelo desejo de vingança da esquerda, muito embora fecho do artigo sugerisse o oposto […]. A diplomacia da cuidadosa redação não resistiu à leitura por parte do alto oficialato de disposições muito claras e, aliás, justas.” Ou seja: as pessoas devem crer em qualquer voto de boas intenções professado pelas autoridades. Se revisionistas disseram que a Comissão da Verdade é para promover a reconciliação, então os militares têm que acreditar.
É compreensível que, sem uma lei de anistia, apenas a parte perseguida por agentes do Estado busque processá-lo. No entanto, o propósito alegado é o do conhecimento da verdade. Se é assim, há duas questões gritantes: 1) Os pedidos de indenização, que não tem nada a ver com o mero conhecimento; 2) A ausência de investigação dos crimes dos comunistas; que está contra o conhecimento da verdade.
O maior pé de guerra entre os militares e comunistas costuma ser relativo a desaparecidos. Tipicamente os comunistas dizem que os militares mataram e os militares tipicamente dizem que os comunistas justiçaram. No caso particular do Araguaia, Hugo Studart descobriu os mortos-vivos: desaparecidos que ganharam dos militares uma identidade nova para não serem justiçados pelos ex-colegas comunistas. O PCdoB responde a esse tipo de pesquisa clamando pela apreensão dos documentos.
Ao que parece, as vítimas do comunismo não têm direito à verdade histórica. E João Cezar ou acha isso normal, ou não sabe História e acha que elas não existiram.