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Durante as eleições, apontei similaridades entre a ascensão do varguismo e a ascensão do bolsonarismo. Ao meu ver, ambos os movimentos foram uma ruptura na ordem nacional ditada por São Paulo e surgiram durante um racha entre o interior e a capital do estado. A República Velha era tocada pelas oligarquias paulistas; a Nova República, pelo revezamento de dois partidos uspianos. Tal como em 30, em 2018 os liberais da capital, ligados à imprensa e ao mercado financeiro, apoiaram o novo movimento achando que iriam dar as cartas. Uma vez frustrados, os liberais paulistanos viraram oposição feroz, criando a Revolução de 32 contra Vargas e a “frente ampla” contra Bolsonaro em 2022.
Nos dias de hoje, o racha entre a capital e o estado de São Paulo se traduz na oposição entre a Faria Lima, que quer colocar o Brasil no “mercado” do crédito de carbono, e o agronegócio, que se estende por toda a área desbravada pelos bandeirantes, num contínuo que liga o Oeste paulista ao Centro-Oeste brasileiro. Ou bem se taxa a flatulência bovina e se impõe desmatamento zero, premiando a inatividade econômica, ou bem o agronegócio brasileiro continua crescendo e tomando mercado dos Estados Unidos – cuja dívida pública se torna cada vez menos pagável, e cuja moeda vem sendo corroída pela inflação. O mercado de carbono pode ser lido como uma corrupção das elites dos países em desenvolvimento: os países ricos pagam a tais elites para que os pobres dos seus países continuem sem desenvolvimento econômico. A Faria Lima enriqueceria vendendo às potências ocidentais a inatividade econômica do resto do país.
Bolsonaro foi, sem dúvida, um governo favorável ao agronegócio nacional. Nem a sua imensa simpatia pelos EUA fez com que ele aderisse à OTAN na guerra da Ucrânia; afinal, é da Rússia e da Bielorrúsia que vêm os fertilizantes usados pelo nosso agronegócio. Lula, o candidato da Faria Lima, tardou um pouco, mas não deixou de aderir à OTAN. Com meus botões, creio que ele tenha feito isso precisamente para ferrar o nosso agronegócio, ao mesmo tempo que apoia o trabalho das ONGs ocidentais empenhadas em manter o nosso subsolo intocado, impossibilitando a nossa autossuficiência na produção de fertilizantes.
Diferentes, mas iguais no amor...
O governo Bolsonaro difere do governo Vargas em tantos aspectos quanto possível. Difere quanto ao tempo e ao poder, já que Bolsonaro governou por apenas quatro anos sem ter os seus poderes presidenciais plenamente respeitados, enquanto que Vargas governou por quinze consecutivos com poderes muito superiores aos do presidente de uma democracia liberal.
Bolsonaro foi eleito dizendo “Mais Brasil, menos Brasília” com um Chicago Boy a tiracolo. Vargas, a seu turno, tinha como guru político-econômico Oliveira Vianna, o teórico do planejamento central do desenvolvimento brasileiro por meio de um Estado autoritário. Bolsonaro foi eleito e não desafiou as instituições liberais. Vargas tomou o poder e tratorou as instituições da República Velha, liberal.
De um ponto de vista teórico, a persona de Bolsonaro não poderia ser mais diferente da de Vargas. No entanto, o papel que encarnaram na arena pública é muito semelhante, ao menos se levarmos em conta as reações de amor como de ódio que suscitaram.
As manifestações de massa do século XXI mostraram que Bolsonaro, e não Lula, é o líder político com carisma comparável ao de Getúlio. Mesmo no auge de sua popularidade, Lula nunca conseguiu encher o Eixo Monumental de apoiadores. Como Brasília não existia no tempo de Getúlio, o que há de comparável é a orla do Rio de Janeiro -- que Bolsonaro lotou, e Lula não. Só Bolsonaro se equipara a Vargas em matéria de mobilização de massas. Essa capacidade de mobilização também está atrelada à rapidez de ambos em usarem novas formas de comunicação: Getúlio com o rádio e Bolsonaro com a internet. Lula só foi chamado de grande orador, mas ninguém pretendeu que fosse um grande comunicador. Podemos enumerar os marqueteiros de Lula e seus diferentes estilos; não podemos numerar marqueteiros de Getúlio ou Bolsonaro.
O povo mudou, ou mudaram os problemas do povo?
…e iguais no ódio
Em 1945, Getúlio Vargas perdera o apoio dos militares e fora deposto da Presidência da República. Tornou-se presidente interino o Ministro do STF José Linhares. José Linhares não era careca. Sua presidência da república durou apenas três meses; ainda assim, conseguiu se notabilizar pela revogação da Lei Antitruste e pela perseguição implacável aos varguistas, então organizados no PTB e no movimento do queremismo. Em um balanço privado no seu retiro em São Borja, Vargas anotava: “O novo governo que se instituiu para democratizar o país suprimiu todas as liberdades. Em nome da democracia, dera um golpe de força. Para consolidar essa singular democracia, estabeleceu a censura, proibiu as atividades partidárias e começou a praticar uma série de mesquinharias contra mim, contra minha família, contra meus amigos. Não satisfeitos com isso, querem arrancar-me ao solo da pátria ou sequestrar-me a liberdade” (trecho na página 15 do v. 3 da autobiografia de Lira Neto).
Com as eleições se aproximando, os jornais tratavam o Brigadeiro Eduardo Gomes como o candidato da democracia, que seria eleito com toda a certeza. Ele era o candidato de uma frente ampla que reunia liberais, católicos conservadores e esquerda democrática. Sendo a primeira eleição com voto feminino, um dos seus slogans era "Vote no brigadeiro, que é bonito e solteiro". A segunda opção era o Gal. Dutra, feio e com problemas de dicção, que tinha acabado de trair Getúlio.
Os jornais pintavam Getúlio como o diabo em pessoa e alardearam que ele em breve seria julgado em Nuremberg por seus crimes – coisa um tanto implausível, dada a adesão do Estado Novo aos Aliados. Tratava-se de uma fake news, posteriormente desmentida em erratas miúdas.
Fronteiriça, a terra natal de Getúlio lhe permitia sair do Brasil com facilidade. Mas ficar foi um risco, e ele contou com garantias de militares para isso. A imprensa vasculhava o governo passado à procura de um grande escândalo de corrupção, sem sucesso. No entanto, na capital já se dizia que “os Linhares são milhares” (os parentes de José Linhares nomeados para cargos), e a imprensa fazia vistas grossas. Getúlio era mau como Hitler e, se isso não colasse, então colariam nele a pecha de corrupto mor. Se não nele, nos familiares e amigos. O trabalhismo e o queremismo passaram a ser considerado caso de polícia, com manifestações proibidas e material partidário apreendido pela polícia.
Ainda assim, Getúlio mostrou a sua força ao apoiar Dutra de última hora, levando-o a uma vitória de lavada. Para abalar mais ainda a elite paulistana, concorrera ao senado por São Paulo e ganhara com uma votação acachapante (São Paulo se tornara um eleitorado no mínimo tão bom quando o gaúcho por causa do operariado urbano que ganhara direitos trabalhistas).
É difícil negar semelhanças entre a reação a Vargas e a Bolsonaro. A imprensa vive uma situação esquizoide, segundo a qual ela mesma é democrática e o povo é antidemocrático, merecendo até ir em cana por isso. Temos ataque à democracia em nome da democracia; temos ministro do STF com superpoderes de Executivo; temos censura em nome da democracia. Temos uma elite tradicional que não sabe o que fazer com a popularidade Bolsonaro.
Como isso é possível?
Normalmente, quem gosta de Bolsonaro não gosta de Vargas, e quem gosta de Vargas não gosta de Bolsonaro – o que é muito natural, dadas as profundas diferenças políticas de ambos. Contudo, tanto quem gosta de Bolsonaro quanto quem gosta de Vargas aponta para o respaldo popular como uma evidência de sua legitimidade e do seu acerto. Pois muito bem: se o apoio popular significa alguma coisa, tanto os bolsonaristas quanto os varguistas do século XXI terão de decifrar o povo, sob pena de serem devorados por ele. Ou apenas ignorados, o que é ruim o bastante em política. Eis a questão: como o povo pode parecer liberal hoje e estatista há menos de cem anos?
Já que nossa época mede tudo por economia, não custa lembrar que ambos entregaram bons resultados. A Era Vargas começou com um país exportador de café quebrado pela crise de 29 e deixou um país industrializado em crescimento. Bolsonaro, mesmo sendo efêmero, se destacou por ter mantido, na pandemia, um cenário econômico ameno em comparação ao mundo rico.
Eu tenho um pontapé inicial para a explicação: as regulações criadas pelo Estado em defesa do trabalhador funcionaram bem e depois, corrompidas, se tornaram um problema. No começo, a CLT de fato teve uma utilidade colossal na proteção do trabalhador, impedindo que se repetissem aqui os abusos desoladores ocorridos na Inglaterra durante a Revolução Industrial. A Justiça do Trabalho pode ter surgido para tirar o poder de uma justiça comprometida com as oligarquias da República Velha e entregá-lo a juízes comprometidos com o varguismo. O TSE seguramente foi criado por causa das notórias acusações de fraude da República Velha, e no século XXI notabilizou-se por censurar um sem número de acusações de fraude que sofre. A CLT, a seu turno, acabou servindo menos como uma garantia para o trabalhador e mais como um mecanismo tributário agressivo que ainda é uma barreira para a contratação de funcionários por parte de pequenas empresas. Abocanha o salário e atrapalha o pequeno empresário.
Creio que Vargas tenha criado instituições novas com o intuito de tirar poder das instituições velhas e substituir homens de Estado pró-café por homens de Estado pró Vargas. Uma vez que o Estado seja capturado por forças contrárias ao trabalhismo, tais criações puderam ser usadas com as finalidades contrárias. O problema não seria tanto o desenho institucional, mas sim quem é que manda.
Quando quem mandava no Estado o usava em prol do povo, o povo parecia estatista. Quando o Estado foi capturado e o presidente mandava muito pouco, o povo parecia anti-estatista. No fim, o povo é só pró povo, mesmo.
Mas isto é só um palpite vago que aponta para uma direção geral. Penso que essa charada deve servir como um convite para pensar a política e a economia em termos mais conjunturais e menos abstratos.
Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima