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Com o home office, a pandemia acabou trazendo a mulher de classe média de volta ao lar. Eu não tinha pensado nisso, e este é um objeto de reflexão interessante. O fato só me ocorreu porque, como comentei no último texto, enquanto o governador da Bahia fazia decreto de vacinação compulsória, os jornalistas acharam uma boa ideia botar como manchete que os bichos de estimação estão sofrendo impactos psicológicos com o fim do teletrabalho. Ali lemos o drama do gato Merlim, diagnosticado com a “Síndrome da Ansiedade por Separação” desde quando a sua “tutora” (agora não é mais dona) voltou a trabalhar na rua. A reportagem, amparada por especialistas, arrola uma porção de anedotas para comprovar um verdadeiro surto de problemas psiquiátricos em “pets” (pet pra mim é garrafa, mas agora não se diz mais bicho de estimação). Todas as “tutoras” são mulheres. Uma arranjou até creche pro cachorro.
Vá lá que há uma semelhança grande entre os mamíferos, e que animais têm sentimentos. Psicólogo de cachorro eu já acho um pouco demais. E essa tentativa de antropomorfizar bicho — que agora tem tutor, creche e síndrome chique — é uma coisa um bocado esquisita. Acho ainda que quem precisa de ajuda para tratar da cabeça não é o cachorro, mas a dona do cachorro e a psicóloga do cachorro.
Mas eu não sou uma especialista científica, sou só uma palpiteira obscurantista de extrema-direita.
E como eu sou uma palpiteira obscurantista da extrema-direita fundamentalista religiosa (embora ateia), observo que esse povo todo parou de ter filho, não está bem resolvido com isso e fica fazendo de conta que cachorro é criança. Aí fica-se num delírio coletivo segundo o qual ser a tia dos gatos é empoderamento feminino e ser uma mãe dedicada é horrenda submissão ao patriarcado.
Minhas senhoras, um gato é um gato; um ser humano é um ser humano. Quem se dedicou a criar um gato não fez, com isso, porcaria nenhuma da vida.
Misantropia feminina
Deixo a cada um a tarefa de consultar o próprio anedotário (também conhecido como experiência) para vincular a tia dos gatos ao ódio a crianças. No meu está a minha avozinha boquiaberta ao descobrir que aquela montanha de bandejas de doces e salgadinhos subindo para o apartamento das três irmãs solteironas mal-humoradas que odeiam crianças era para a festa de aniversário do gato.
Nos idos dos anos 90, era evidente aberração fazer festinha de aniversário infantil pra gato. No mais, minha avó ficava intrigada com aquelas velhas que odeiam crianças: “Como pode alguém odiar crianças? Todo mundo não foi criança um dia?” Se minha avó ainda fosse viva, eu poderia responder que odeiam crianças do mesmo jeito que as raposas odeiam as uvas. E hoje o feminismo serve como um verniz de embasamento “científico” para esse ódio.
“Mamãe era uma vítima do patriarcado e por isso se dedicou a mim. Eu sou uma mulher livre e me dedico a três gatos e duas samambaias. Vou poder viver a vida plena que minha mãe nunca pôde ter por causa do meu pai!” Aí abre o Tinder e arranja algum barbudinho feio de óculos e camisa florida que a leve para ver Bacurau, depois de outras dez. Depois ela descobre que é décima primeira a ver “Bacurau” com o barbudinho e vai para as redes sociais postar coisas misândricas com filtro de Frida Kahlo.
Entre um pote de sorvete e outro, faz carinho no gato. O gato não vai se tornar menos caloroso quando ela se tornar uma ativista antigordofobia. O gato não vai criticá-la por suas opiniões ou por sua conduta. O gato não vai decepcioná-la nem traí-la.
O gato é uma beleza porque não é humano.
Misantropia masculina
O fenômeno tem equivalência em ambiente masculino. São dois nichos: o fã de cachorro e o MGTOW. Esta sigla significa “Homens Tomam seu Próprio Rumo” em inglês; é um movimento masculino surgido nos Estados Unidos com o fito de se proteger contra as leis misândricas emplacadas por progressistas. Aquela coisa de a mulher pegar os bens do homem e ficar livre para praticar alienação parental, ou assassinar reputações alegando estupro a torto e a direito.
Sem dúvida é uma pauta legítima. Mas eles, a partir de suas más experiências amorosas, concluem que a mulher é um ser evolutivamente preparado para parasitar o homem, e que deve ser evitado em função de sua periculosidade. Em vez de porem a mão na consciência e pensar que talvez eles tenham uma parcela de culpa no próprio infortúnio, escolhendo mulheres ruins, eles se tornam misóginos do mesmo jeito que as feministas se tornam misândricas. (E não vá dizer à feminista que ela escolheu homens ruins, porque isso é “blame the victim”.)
O fenômeno já chegou ao Brasil, mas creio que ainda seja pouco expressivo.
Já a pieguice de homem com cachorro é mais fácil de encontrar. Resumidamente, o ideal de relação de amor para o cidadão é a do bebum com o seu cachorro. Creio que o nicho político mais fácil de encontrar esse tipo de mentalidade seja em ativismo pelos direitos dos animais. Tal como em qualquer movimento radical pequenininho, a maioria das figuras de proa é composta por homens. Esses homens vão pintar os bichos como seres naturalmente inocentes – uns anjos –, ao passo que o ser humano é um antro de maldades potencial.
Que há uma componente sexual aí, as próprias feministas vão corroborar. Os anúncios do Peta e do Greenpeace volta e meia fazem cenas com mulheres bonitas na situação de animais, supostamente com o fito de comover a sociedade. Quem quiser que acredite.
O cachorro do bebum nunca vai dizer ao bebum que ele precisa parar de beber. O cachorro vai abanar o rabo para o bebum mesmo que ele só faça besteira e não tome banho. O cachorro do bebum não vai reclamar jamais, em hipótese alguma, das condições materiais do bebum, nem mandar ele ir trabalhar. De quebra, o cachorro do bebum pode ser adestrado.
Amor incondicional
Creio que um romantismo exacerbado seja um problema da nossa época. O primeiro sinal foi quando os gays começaram a cantar os hétero falando de alma. Amar a alma, de fato, prescindiria de amar o corpo. No entanto, alma não faz sexo. Usando o jargão feminista, podemos dizer que o amor erótico sempre vai “objetificar”. É um jargão um tanto quanto frígido, já que um objeto não é, nem de longe, tão atraente quanto um corpinho humano bem habitado por uma alma, que está lá espreitando pelos olhos.
Temos de dizer aos negacionistas da biologia: as almas de um homem na flor da idade e de uma velhinha de 90 anos podem ter a maior afinidade do mundo, sem que isso resvale para o erotismo correspondido. A seleção natural produziu homens cujo interesse sexual reside mormente em mulheres de aspecto sadio e fértil. Há os gays, há os fetichistas, mas são exceção. Seleção natural não é planejamento; cá estamos com apêndices, sisos, homossexuais e tarados por maduras, isto é, com exceções à regra da estrita funcionalidade. Do mesmo jeito, mulheres não foram selecionadas para gostar de mendigos bêbados incapazes de manter uma prole.
O povo hoje quer amor incondicional – uma outra imagem do romantismo que foi exacerbada sem o mínimo de razoabilidade. “Amor incondicional” já significou capacidade de perdão ou fé na capacidade de alguém. Opunha-se o amor incondicional à ideia de um amor interesseiro – seja o do homem que só enxerga na mulher um pedaço de carne e a abandona ao primeiro sinal de envelhecimento, ou o da mulher que só se une ao homem por sua capacidade de provedor e está pronta para abandoná-lo caso o padrão de vida caia.
Mas a rigor, tomando-se ao pé da letra, o amor deve sim ser condicional. Se em vez de apenas se empobrecer, o homem de repente se revelar um pedófilo estuprador, seria bonito a mulher continuar o amando? Se em vez de apenas envelhecer, a mulher se revelar dona de um péssimo caráter, seria bonito o homem continuar amando? E se os filhos de alguém se revelarem psicopatas homicidas e estupradores, feito o Champinha, será bonito seus pais continuarem os amando?
Deixemos famílias já constituídas de fora, e a coisa ficará mais visível. O que diremos de uma mulher que escolha ter um relacionamento amoroso com um notório celerado? A sua reputação será afetada, porque isso é informativo acerca dos seus valores.
Deve haver sempre uma dose de mérito no amor, e as pessoas deveriam ter fé bastante em si mesmas para se acreditarem merecedoras do amor dos seus iguais. Amor tem grau; já que dá pra amar mais e amar menos. O amor tem, então, essa capacidade de estimular as pessoas a serem melhores, já que querem ser amadas e sabem – ou deveriam saber – que o caráter e o comportamento são cláusulas tácitas do amor.
Seres humanos têm parâmetros do que é bom e deve ser amado. Amor incondicional é coisa de bicho. Se as pessoas o desejam tanto, é porque não têm a mínima disposição de se tornarem melhores.