• Carregando...
Steak tartare feito com carne artificial da startup holandesa Mosa Meat
Steak tartare feito com carne artificial da startup holandesa Mosa Meat| Foto: Mosa Meat/Divulgação

Como vimos, manteiga, qualquer analfabeto com umas cabeças de gado pode fazer. Já margarina precisa de uma fábrica. Enquanto a primeira é descentralizada, a segunda concentra capital. Com muito capital, compram-se acadêmicos, jornalistas e burocratas. Assim, a “Ciência” — isto é, os jornalistas e os burocratas — passou anos mandando a população trocar manteiga por margarina, quando isso significava trocar a gordura saturada pela gordura trans. Uma vez que venha a público a descoberta de que a gordura trans é péssima para a saúde, não haverá uma campanha orquestrada em prol da manteiga.

A primeira vez em que comecei a pensar nisso foi quando um libertário me disse que é vegetariano por questões éticas e que comeria carne artificial. Observei que, dado o poder da turma de Peter Singer, a produção de carne artificial enfim abriria as portas para a criminalização do abate de animais. Assim, a velhinha pobre que cria galinha seria convertida numa assassina e escravizadora de galinhas. Tirando da velhinha o seu sustento, das duas, uma: ou bem se considerava aceitável que a velhinha passasse fome (o que não é de admirar, já que agora ela era uma assassina em massa, merecendo talvez pena de morte ou simplesmente eutanásia ao estilo canadense), ou bem se considera que é dever do Estado prover os cidadãos com sua quota de bifes artificiais. Neste último cenário, teríamos alguma empresa gigante vendendo tais bifes ao Estado. Seria como venda de vacinas, só que com uma demanda infinitamente mais alta. E como custaram a descobrir os males da gordura trans, só Deus sabe que tipo de outros males um bife artificial não traria, e quanto tempo não custaria para descobri-los, e quanto empenho não haveria na ocultação dessas descobertas.

É claro que esse grupo de interesse faria o possível e o impossível para inculcar a ideia de que “especismo” (termo inventado por Singer) é um crime tão abominável quanto o racismo, pois nenhuma vida humana vale mais que a de um porco.

Por isso, não é de admirar que o veganismo seja tão promovido. Todo ele é antinatural. Sendo antinatural, é preciso de soluções artificiais. Soluções artificiais são caras e demandam concentração de capital. Concentração de capital leva à concentração de poder, concentração de poder leva à fusão entre poder político e poder econômico.

Moral da história: aceite as ideias de Singer e, tão logo se crie uma produção de carne em larga escala, haverá uma pressão corporativo-governamental para controlar o seu prato e o seu quintal.

Barreiras éticas

É claro que tudo isso implica a instauração de uma nova moralidade. Por isso mesmo, Peter Singer é o catedrático de Ética em Princeton; é o papa da disciplina bioética, comum em cursos de ciências biológicas, medicina inclusa. A espinha dorsal da ética de Singer é a negação de que o homem deva ser mais respeitado do que os animais irracionais. O que importa na sua ética é ser “senciente”, não ser humano. Isto é: ter a capacidade de sentir prazer ou dor, coisa que coloca o homem em pé de igualdade com a galinha. É uma evidente negação do legado judaico herdado pelo cristianismo, segundo o qual Deus criou o mundo para Adão, que é feito à sua imagem e semelhança.

De um ponto de vista étnico, Peter Singer é judeu. Quanto à consciência, porém, é ateu.

Hoje são promovidas duas maneiras de encarar a religião. Uma é o ateísmo cienticifista, segundo o qual a religião é uma coisa primitiva e pessoas ilustradas devem ser ateias. As origens desse pensamento têm profunda relação com a França e seu iluminismo anticlerical, mas é comum em países de formação protestante. A outra maneira é a submissão da religião ao progressismo. Creio que o maior exemplo disso seja a Igreja Anglicana, que reconhece a ideologia de gênero e admite até padre queer não-binário.

Isto só espanta quem romantiza as liberdades da Inglaterra e não presta atenção às origens da Igreja Anglicana. Ela surgiu quando Henrique VIII recusou a autoridade papal e chamou para si a chefia de assuntos religiosos, porque queria anular o casamento de mais de 20 anos com Catarina de Aragão e se casar outra vez para fazer um herdeiro homem. (Acabou tendo, ao todo, seis casamentos, e o trono acabou sendo de uma mulher, a filha de Ana Bolena, dama de companhia de Catarina de Aragão.) Assim, a Inglaterra se transformou no primeiro reino moderno a fundir Igreja e Estado. Enquanto no mundo católico os opositores dos chefes seculares podiam usar os mosteiros como refúgio, na Inglaterra não haveria mais poder religioso que contivesse o secular. Quase meio milênio após o rompante de Henrique VIII, a Igreja Anglicana segue a ideologia estatal oficial do país.

Há então duas vias que levam ao mesmo destino: a submissão dos ateus à deusa Ciência e a submissão dos fiéis a uma igreja que não é soberana.

Nova centralização da moral

No frigir dos ovos, o problema não é a ausência ou presença da religião, mas sim a presença ou ausência de pessoas e instituições com soberania moral. Com isto quero dizer pessoas e instituições que chamem para si a tarefa de pensar no certo e no errado, em vez de seguirem cegamente a autoridade. No caso das igrejas lacradoras, o fiel segue o padre ou pastor cegamente. No caso da deusa “Ciência”, os ateus seguem o que uma turminha de bem-pensantes diz que é ciência. Ambas as instituições que os guiam – igreja e universidade – estão compradas pelas corporações donas do Estado.

Olhem para a Inglaterra: quem é melhor para restaurar a soberania moral, Theodore Dalrymple ou o padre queer? Eu voto no primeiro, que é ateu, mas infunde ceticismo quanto às maravilhas da Ciência. Por outro lado, o que é melhor para restaurar a soberania moral: um único indivíduo soberano ou uma Igreja soberana? Eu fico com a segunda. Instituições têm mais capacidade de se opor aos monopólios do que indivíduos isolados. O mal do ateísmo é que ou ele é solitário (como Dalrymple) ou é ruim (como os devotos da igrejinha da siença). Um ateu solitário dá um bom homem de letras capaz de contribuir com o debate público, mas não faz dele a parte viva de uma comunidade moral.

Importância do aspecto econômico

Embora a moral seja muito importante, volto a insistir que não dá para perder de vista o aspecto econômico. A questão mais visível da nova moral é o aborto. (A mais visível, mas não a pior. Peter Singer defende infanticídio também, sob a seguinte premissa: Antes de o bebê já nascido ganhar um certo grau consciência, ele não pode ser considerado pessoa, então pode ser morto. Mas, para ele, macaco adulto é pessoa.) Em grande medida, opor-se ao progressismo vem sendo opor-se ao aborto. Essa oposição vem de duas frentes: na Europa, tem-se a Igreja católica; nas Américas, o barulho vem mais dos protestantes evangélicos. Outra vez há a questão da soberania: na Europa protestante, o clero expulso tinha uma terra para chamar de sua, que eram os estados papais. A autoridade secular protestante poderia tentar dizimar todo o clero, mas ele tinha sua liberdade resguardada em Roma. Nas Américas, bem ao contrário da Europa, a maior nação protestante foi fundada com uma neutralidade do Estado perante as igrejas. Assim, depois de a Planned Parenthood pintar e bordar por lá, parte dos cristãos daquela nação usaram a bandeira religiosa para se opor à indústria secular do aborto.

Mas consideremos o seguinte: a Planned Parenthood é uma empresa privada que monopoliza o aborto e que vende seus serviços ao Estado. Os seus serviços são o “aborto gratuito, seguro, de qualidade”. Para a Planned Parenthood, quanto mais mulheres quiserem abortar, melhor. Assim, ela pode investir parte da sua fortuna na mudança cultural e ética, de modo que as mulheres passem a reivindicar mais e mais os seus serviços, a serem custeados pelo Estado. As mulheres devem transar loucamente com homens aleatórios e usar o aborto como método contraceptivo.

Ora, a indução do aborto existe há milênios — tanto que é mencionada, e proibida, pelo juramento de Hipócrates. A Planned Parenthood não inventou o aborto. No entanto, a crermos nos progressistas, parece que as mulheres que querem abortar só têm duas opções: ir ao SUS receber uma pílula que dá "aborto seguro" ou enfiar um cabide e morrer. Se houvesse tanto empenho assim em garantir o aborto às mulheres, e não em vender remédio, os progressistas falariam muito mais em plantas baratas e de fácil acesso do que em distribuição de pílulas SUS. Fazer chás tem os seus perigos e o aborto de parceria público-privada também (vide a ativista argentina que engravidou logo após a legalização, foi fazer um aborto “seguro” e morreu). A diferença é que planta não tem fabricante, portanto não tem lobby, nem financiador de pesquisas.

O aborto exite há milênios e nunca foi uma questão de grande atenção pública. Só se tornou graças à propaganda em prol de sua naturalização — propaganda essa gerada pelo interesse de oferecer o serviço.

A artificialização das coisas naturais começou com o aborto, mas prossegue para a concepção (com seleção de genes e embriões), a gestação (com barriga de aluguel) e a morte (eutanásia). Nesse ínterim, vai tomando conta de outros aspectos das nossas vidas, que vai sendo cada vez mais medicalizada e, nisso, entrando na planilha dos fornecedores, que ganham mais dinheiro ainda para comprar o Estado.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]