No Sul, descobri que é incomum a ideia de fazer turismo em Porto Alegre. O turismo no estado do Rio Grande fica concentrado em Gramado. Os nativos, bem como os demais sulistas e os argentinos, passeiam na ilha de Florianópolis. Esta é estimadíssima na região por causa de suas belas praias de água azul. Isso é uma coisa bem banal para a maioria dos brasileiros litorâneos; não para os gaúchos. O litoral do Rio Grande do Sul tem umas praias que eles chamam de “chocolatão” por causa da cor natural da água. Como os gaúchos não gostam de suas próprias praias, rumam ao norte quando querem veranear.
Assim, os turistas rumo ao Rio Grande do Sul vão a Gramado; os turistas do próprio Rio Grande do Sul vão para Santa Catarina. E ninguém além desta que vos escreve vai a Porto Alegre. Polzonoff mesmo perguntou o que fui fazer lá, se não sou gaúcha. “Quem vai para Porto Alegre é gaúcho!”, protestou, diante do chope, o curitibano que nunca foi lá.
Cidade de relevância histórica
Ora, Porto Alegre é a capital de um estado que foi muito importante para o Brasil desde a Guerra do Paraguai até meados do século XX. No começo, o Rio Grande do Sul foi importante indiretamente, via Exército. A tradição castrense do estado se deve à atmosfera conflituosa que reinava na fronteira viva com a América Espanhola. É natural, portanto, que as Forças Armadas tenham uma simbiose grande com o estado fronteiriço. Como hoje essa atmosfera conflituosa migrou para a fronteira com países cocaleiros e bolivarianos, o Exército vai se fundindo com o cenário amazônico. Já no Império do Brasil, as perturbações estavam no Cone Sul – por isso o Exército fincou fundo as suas raízes por lá.
O Exército, ao seu turno, era indissociável da República e do Positivismo. A doutrina de Augusto Comte foi a última febre intelectual anterior ao marxismo. Defendia uma República tecnocrática, a “Ciência” e a Religião da Humanidade. Em virtude de sua adesão ao Positivismo, os militares acreditavam ser necessário derrubar a monarquia para instaurar a República. Foi o que fizeram.
A parte religiosa da doutrina de Comte só pegou no Brasil. (Rondon era um fervoroso positivista, e a devoção pela Humanidade guiou sua política pacifista e integracionista no que se refere aos índios.) Hoje existem dois Templos Positivistas no mundo: um no Rio de Janeiro, primeira capital da República, e outro em Porto Alegre, a capital desse estado castrense. O suntuoso Templo Positivista do Rio de Janeiro, onde estava a primeira bandeira do Brasil republicano, está caindo aos pedaços. O Templo Positivista de Porto Alegre, embora modesto, continua em atividade. Por aí se dimensiona o quão importante é o Rio Grande do Sul para a memória da época positivista do Brasil. Os ritos são aos domingos. Como não fiquei no final de semana, vi apenas a fachada, com seu característico estilo neoclássico e uma simbologia que domino pouco. Pude reconhecer a imagem de Clotilde de Vaux, a paixão platônica de Comte. Ele a escolhera como imagem da Humanidade, e sua representação artística imita a de Maria no catolicismo.
À influência castrense soma-se o fato de, na República Velha, o Rio Grande do Sul ter sido uma espécie de ditadura positivista, com Júlio de Castilhos e seu sucessor Borges de Medeiros liderando o estado com mão de ferro. O poder Executivo podia tudo; o Legislativo era figurativo. Um afilhado dos chefões positivistas gaúchos é Getúlio Vargas, que conseguiu dominar a capital da República. No mais, registre-se que os outros dois ditadores de pendor tecnocrático que chegaram à presidência do Brasil eram militares gaúchos: Geisel e Médici. O Rio Grande do Sul tem uma cultura política muito específica e muito influente na história do Brasil.
A Biblioteca Pública
A Biblioteca Pública do Estado é uma preciosidade arquitetônica do positivismo construída ainda na época do Império, no século XIX. A mim ela lembrou uma igreja barroca, com sua profusão de cores e com a impossibilidade de apreendermos todos os detalhes numa olhadela. Reparem que a arquitetura de hoje é feita para você ver de uma vez tudo o que há: um quadrado com paredes lisas não convida sequer à mera observação atenta, quanto menos à contemplação. Eu acho que a arquitetura moderna contribui para formar sabichões simplórios, que acham que compreendem tudo numa olhadela só. Mas admito que essa é só uma tese extravagante minha.
Diferentemente das igrejas barrocas, porém, a Biblioteca contém uma simbologia positivista enigmática e desconhecida até hoje. É reconfortante saber, portanto, que a Biblioteca é habitada por funcionários apaixonados por História que se empenham em descobrir cada detalhezinho dos afrescos. São tão empenhados que há controvérsias entre o homem da Sala Rio Grande do Sul e a mulher do térreo.
Do primeiro, ouvi que a mistura entre Egito Antigo e Divina Comédia se devia a restrições orçamentárias: era para ter um número maior de salas, com um tema em cada; mas, como não poderia haver salas bastantes para todos os temas, a Divina Comédia acabou sendo encaixada em todas as salas.
Já a mulher do térreo diz que o mentor do prédio era fascinado por Dante, e desde o princípio a ideia era pincelar cada sala com referências tanto à Divina Comédia, quanto a Comte. Mas ela confirma que houve uma redução do tamanho previsto, e um resultado disso é a incompletude da representação dos meses do calendário positivista na fachada. Ela deu mais fontes por ter sido cobrada, já que eu e o meu amigo falamos com ela depois de conversarmos com o homem da sala Rio Grande do Sul. Ambos cultivam uma saudável disputa. Registro que, para nos explicar que o bode na sala Egito é o deus da sabedoria Acnun, ela revelou ter encontrado a reportagem num jornal do século XIX, do dia da inauguração, que revelava os detalhes. A Biblioteca tem profissionais dedicados.
Pintura de cinza
Uma parcela pequena dos afrescos da Biblioteca está visível. Nos anos 50, um modernista mandou pintar tudo de cinza. Modernistas são assim mesmo; destruíram o Palácio Monroe no Rio de Janeiro.
O que me chama a atenção, nesse caso, é a diferença que o Nordeste dá ao seu patrimônio arquitetônico, em contraste com o Rio Grande do Sul. Segundo a mulher do térreo, anos atrás a reforma foi orçada em 8 milhões. Ela falou como se fosse uma quantia imensa, mas, para os governos, é uma bagatela.
De fato, a própria comunidade da biblioteca se organizava para levantar fundos, sem parecer contar muito com o governo. A mulher do térreo concordou comigo quanto ao fato de o Nordeste ser outro mundo; ela mesma tinha morado na Paraíba e ficara fascinada com o trabalho de restauro – um trabalho mais complicado e caro, já que as pinturas dos séculos XVI, XVII e XVIII devem ser bem mais difíceis de restaurar do que as do XIX. No entanto, ela parecia convicta de que a diferença entre os investimentos se deve à falta de turismo em Porto Alegre. Na certa ela não tirou essa crença do nada e a comunidade deve ter ouvido isso do governo do estado.
Eu tenho minhas dúvidas se isso é verdade. Creio que uma parcela miúda dos turistas que vêm para o Nordeste está interessada em História. Uma coisa que me dá nervoso é turista que vai a Salvador só pra ver praia, desprezando todo o valor histórico, arquitetônico e cultural. Se a mentalidade dos governos for essa, no Sul só vai ter restauro em Florianópolis. Que tem museu, mas é só panfletinho psolista.
De todo modo, fica aqui a sugestão: se você gosta do Centro do Rio, é tiro e queda que vá gostar do de Porto Alegre. É o mesmo estilo arquitetônico, com museus e chopes. De quebra, tem parques bem arborizados. O que tem sobrando lá é pichação, e o governo deveria trabalhar para resolver o problema. É tanta pichação nos prédios bonitos da UFRGS, que deu um calorzinho no peito pensar nos feitos ilegais de ACM na UFBA.
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