Nossa época é marcada pela repressão da opinião. Em países de língua inglesa, dizer que mulheres têm vagina é um abominável crime de ódio, por causa da transfobia. A exceção são os Estados Unidos, salvaguardados pela pétrea Primeira Emenda.
Nos tempos em que aula de biologia não era crime de ódio, a liberdade de expressão era facilmente reconhecida como um direito humano. Quando se queria tratar da limitação da expressão num caso especialíssimo, mencionava-se o nazismo. Mas não se tratava se “socar nazistas”, como gostam de dizer na Internet. Popper propôs a proibir incitação à violência física, sem entrar no mérito da opinião. No plano legal efetivamente adotado por países europeus, criminalizou-se uma opinião particular: a negação do Holocausto. O significado original de “negacionista” é esse. Não é quem tem dúvidas acerca de qualquer coisa que Peter Daszak e Renan Calheiros digam sobre a Covid.
A minha ideia é a seguinte: a Europa desenvolveu muito bem um aparato repressivo contra a própria população e que vem sendo disseminado mundo afora pelos Estados Unidos. Embora esse país tenha uma Constituição fortíssima, os autoritários a driblam por meio de monopólios poderosos. Afinal, se a Amazon, o Google e o Facebook decidirem, podem ter mais êxito em censurar um escrito do que o Estado.
Por que alguém duvida do Holocausto?
A Humanidade tem uma propensão a identificar anjos e demônios em qualquer história onde haja oposição. Mesmo após muita reflexão ponderada, os atos dos nazistas são chocantes e inexplicáveis. Assim, Hitler é um símbolo bom para o mal absoluto. Aqui no Brasil, distantes de todo o rolo da Europa em chamas, vemos sem grandes problemas a história da Segunda Guerra Mundial como uma luta dos anjos contra o Capeta.
Mas, porém, contudo, todavia, seres humanos são seres humanos e anjos simplesmente não existem. Os Aliados cometeram crimes de guerra. (Dê uma olhada superficial aqui, em português). O europeu não só vê essa narrativa como parte interessada, como ainda é o lado perdedor da história. Tomou um monte de bomba de americano na cabeça, perdeu família em bombardeio de área civil e teve as mulheres na família estupradas pelos soviéticos. Depois, foi bombardeado pela propaganda de Hollywood de um lado e viu-se súdito ao Camarada Stálin de outro. É natural que deseje reagir negando os seus próprios crimes.
Além disso, o Holocausto, tal como o formato da Terra, é bastante contraintuitivo. Os soviéticos, que estavam bem longe de serem santos, ficaram chocados: estavam acostumados à matança, sim, mas não à matança cuidadosamente organizada, cheia de higiene. Em seus diários, o sensível Himmler conta que teve uma crise de nervos e quase desmaia ao assistir ao fuzilamento de famílias de judeus. Isso foi antes da invenção das câmaras de gás. Uma vez inventadas as câmaras, as almas sensíveis ficavam sem ver sangue nem corpos. Saía tudo pela chaminé.
Se com o alto comando era assim, imagine o civil comum. Ele via os judeus irem para o Leste e o governo dizia a todos (inclusive aos judeus) que estavam sendo construídas cidades para eles lá. Essa era uma meia-verdade: não haveria cidade nenhuma no Leste, muito menos no Leste (que era o Espaço Vital). Mas, segundo Joachim Fest, os nazistas não sabiam direito o que fazer com os judeus. O alto comando cogitava enviá-los para Madagascar após conquistarem a África. O importante era apartá-los da raça alemã. A ordem para exterminá-los é um mistério até hoje. No julgamento post mortem de Hitler, em Nurembergue, a defesa insistia que ele era inocente do Holocausto, pois não havia provas de que dera ordem de executar os judeus.
Parece loucura e é. Mas os loucos estão por aí mesmo. Vejam esses janotinhas que repetem, como bons meninos, que o homem branco cis hétero é horrível, ou que Bolsonaro deve morrer, ou que os eleitores de Bolsonaro não merecem viver. Quantos deles vocês acham que têm estômago para assistir a uma execução? E quantos deles vocês acham que têm hombridade suficiente para peitar uma autoridade “do bem”? Se você respondeu nenhum e nenhum, está desenhado o cenário da matança envergonhada perpetrada pelos nazistas. Matança oculta e asséptica.
Agora some o fato de a matança ter sido oculta ao fato de os bombardeios de áreas civis terem sido vistos por todos. E pronto: compreende-se que um perdedor ache que o Holocausto foi uma invenção de Stalin mancomunado com os americanos para denegrir o povo.
Aliás, eles estão também numa posição incomum para nós, pois veem Stalin como um aliado dos EUA. É verdade que foi uma aliança mais de ocasião do que de ideologia, mas esse tipo de consideração não tem muita eficácia para quem está apanhando dos dois. Ademais, a aliança entre Hitler e Stalin era algo sigilosa para as populações soviética e alemã. Então, para um alemão acreditar que aquele bando de estupradores que invadiu sua cidade estava secretamente ao lado de Hitler, era preciso acreditar na palavra dos americanos que lhes jogaram bombas na cabeça.
França, centro do negacionismo?
O nome negacionista mais famoso que me ocorre é Roger Garaudy, francês, membro do Partido Comunista Francês durante a Segunda Guerra, ex-comunista, convertido do ateísmo ao islamismo, pioneiro do ecologismo. Um pupilo dele é Norberto Ceresole, argentino guru de Chávez. Creio que tenha sido Garaudy quem inventou que os bombardeios a Dresden mataram mais do que o Holocausto, que teria consistido numas poucas mortes.
Não é interessante que seja o nome de um francês o que vem à mente quando se trata de negacionismo? Para confirmar minha impressão, achei na Wikipédia anglófona uma lista de negacionista do Holocausto por país. As maiores quantidades são Estados Unidos (59), Alemanha (11) e França (16). Os dois primeiros estão, de certa forma, inflados: os EUA desbaratam suas organizações criminosas neonazistas e cada membro (como Matt Hale, mandante de assassinato, cujas relações com Glenn Greenwald o leitor pode pesquisar) entra na lista da Wikipédia. Se a Argentina não pega ninguém, não entra na lista. Também considero a Alemanha inflada porque inclui criminosos de guerra alemães; ou seja, os caras negaram os crimes que eles próprios cometeram porque queriam se safar. Já na lista da França, a coisa muda bastante de figura: em vez de criminosos comuns e de guerra, há ninguém menos que um candidato à presidência quase vitorioso, Jean-Marie Le Pen. (O Brasil figura na lista com apenas um indivíduo, que é… Clodovil).
Por que na França o negacionismo tem mais visibilidade? Das duas, uma: ou os franceses são mais propensos ao negacionismo do que os alemães ou os alemães são melhores em reprimir do que os franceses. Conhecendo os latinos e sabendo que a França é uma bagunça, voto na segunda até prova em contrário. Repressão dá trabalho e os alemães, herdeiros da Prússia militarista, burocrática e centralizadora, são muito bons nisso. Bons nisso e bons em esconder sujeira.
Na semana que vem a gente espia um pouquinho da repressão de opinião por lá que dá para ver por aqui.