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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Qual era a ideologia da Ação Popular

Boletim informativo da Juventude Católica publicado em 1960
Boletim informativo da Juventude Católica publicado em 1960 (Foto: Reprodução)

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Vamos então à Ação Popular. Como vimos, o Pe. Vaz era apontado como responsável pela radicalização da Juventude Católica. A sua filosofia, já desde a década de 50 pregava a noção de que a cultura era ruptura vem vez de tradição.

Segundo lemos no verbete do CPDOC sobre a Ação Popular, “a partir de 1960, […] a JUC começou a sofrer um processo de radicalização, engajando-se na luta pela transformação dessa sociedade. Os primeiros sinais dessa nova tendência surgiram durante o congresso comemorativo dos dez anos da organização, em que a equipe da região Centro-Oeste apresentou um trabalho propondo o combate ao subdesenvolvimento e à primazia do capital sobre o trabalho.” Aqui a radicalização da JUC é tida por mais tardia: é possível que o autor do verbete esteja errado, ou então ele despreze o ensino escolar (campo de atuação da JEC, Juventude Estudantil Católica) por ser diferente da JUC. No entanto, como lemos neste trabalho da Unicamp, o Pe. Vaz conquistava potenciais militantes nos anos 50 por meio da JEC, ainda nas escolas. Finda a escola, o aluno migrava da JEC para a JUC. O Pe. Vaz recrutava bons alunos de escolas de elite de Minas Gerais e do Rio de Janeiro.

Continuemos o verbete: “No início de 1961, já provocando reação dentro da Igreja, a JUC participou de um seminário organizado pela União Nacional dos Estudantes (UNE) em Salvador. Nesse mesmo ano, o jucista Aldo Arantes, presidente do Diretório Central dos Estudantes da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, foi eleito presidente da UNE. A reação da Igreja diante do fato traduziu-se na expulsão de Arantes da JUC pelo cardeal dom Jaime Câmara.” É possível que Arantes fosse excepcionalmente radical, mas é possível também, simplesmente, que a Igreja quisesse evitar os erros da época do Estado Novo, quando os quadros estudantis da Ação Integralista e da JUC não eram muito discerníveis.

Seja como for, a expulsão de Aldo Arantes deu início a uma movimentação de jucistas mineiros para criar uma organização livre das amarras da Igreja. Assim, em 1962, Betinho lê uma convocatória nesse sentido num congresso nacional da JUC e, ainda no mesmo ano, redige-se o Documento Base, com as diretrizes do movimento nascente. Brizola prestigia o congresso da JUC em que isso acontece. Em 1963, ocorre o primeiro congresso nacional da Ação Popular em 1963, em Salvador, e cria-se oficialmente o movimento secular.

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O Pe. Vaz continuou como mentor e, em 1979, assumiu publicamente ter sido o autor dos dos primeiros capítulos do Documento Base. Revirei a internet e não consegui encontrar uma versão digitalizada do Documento Base, então resta citar trechos reproduzidos por Paim. Vou tentar jargonizar o mínimo possível — o Pe. Vaz é um hegeliano e hegelianos escrevem de modo praticamente ilegível. O Pe. Vaz também tem influência do nazista Heidegger, e repete o seu vício de fazer devaneios relativos à linguagem. Paim observa que a “fundamentação teórica [do Documento Base] será o espiritualismo cristão de Lima Vaz e seus discípulos.” Isso é importante para nossa investigação porque o “espiritualismo” é uma deliberada oposição ao “materialismo” professado por Marx e marxistas.

Paim é sensível a todas essas distinções, pois ele próprio, entre a Era Vargas e os anos 50, se transformou num bolchevique fluente em russo. Para ele, a “fundamentação teórica da plataforma totalitária […] é o espiritualismo cristão, na versão historicista que lhe deu Henrique de Lima Vaz. A mencionada modalidade de espiritualismo afirma que a história humana, em decorrência da perda de sentido imposta ao homem pela própria linguagem, exige o Absoluto. Este não se revela no curso da história real, é pensado como seu resultado, a fim de dar inteligibilidade à criação humana. Essa doutrina se completa pela afirmação de uma humanização (cristianização?) da cultura, mediante o rompimento com o passado, ruptura cujos sinais são dados por uma crise dos valores.” De fato, o Documento Base fala numa civilização socialista — mas, como o Pe. Vaz brinca com as palavras, a socialização também traz um sentido cultural. Não se trata só de mexer com os bens, como querem os marxistas ortodoxos, mas de “socializar” os espíritos numa nova cultura. Esse novo Espírito era premente porque o mundo estava em decadência.

No artigo da Unicamp, lemos que a Revolução Cubana desencadeara, aos olhos de parte da Igreja, uma crise cultural. Por isso, para um dominicano mineiro que recrutava com o Pe. Vaz, “o interesse na formação de um laicato cultural e intelectualmente instruído estava atrelado à necessidade e, portanto, ao interesse da Igreja Católica em preparar um corpo pensante capaz de fazer frente aos líderes políticos e intelectuais militantes dos partidos comunista e socialista, que ganhará espaço, sobretudo, no final da década de 1950.” Moral da história: desde a JEC e da JUC, eles queriam constituir uma elite cultural católica para combater o materialismo marxista.

A acompanharmos Paim (que me parece correto), o Pe. Vaz acabou defendendo um sistema que, no frigir dos ovos, era idêntico ao do marxismo soviético, trocando apenas o Partido leninista por uma juventude “espiritualista cristã”. Leiamos um trecho do Documento Base redigido pelo padre: “O que interessa é garantir a liberdade de desenvolvimento das pessoas, a possibilidade da sua expressão e da sua vontade. Porém, liberdade como expressão da pessoa não é poder fazer tudo o que se quer, mas poder fazer tudo o que seja expressão de uma necessidade humana fundamental, tratada ao nível da razão. A liberdade, sendo pessoal, é essencialmente social, tem como referência uma função social. Portanto, garantir a liberdade é fazer com que o Estado seja a convergência das decisões socialmente assumidas.” Paim pontua ainda que, segundo o texto, não há quebra de estruturas sem violência, e cita: “Poderá fazer-se sentir a necessidade de um Partido único ou de outro tipo de organização, segundo as circunstâncias do processo revolucionário.” Ou seja, era uma imitação do leninismo, só que com ênfase na dimensão espiritual da vida, contra o materialismo e, portanto, contra o marxismo. Na Itália houve algo muito parecido com isso, ainda que anticlerical.

O terrorismo e o PCB

Em 1966, as inclinações violentas da AP se consumam no primeiro atentado terrorista do regime militar: o atentado do Aeroporto dos Guararapes, que visava o presidente Costa e Silva. Este acabou não estando no local na hora esperada; ainda assim, a bomba explodiu no saguão do aeroporto pernambucano e matou dois homens.

O que pouco se comenta, e a história de Vélez ignora, é que os “marxistas-leninistas” não eram violentos no período militar. Quem se dizia “marxista-leninista” reivindicava o legado de Stálin na URSS. Stálin era um nacionalista à frente da URSS. O outro ramo de origem soviética é o trotskismo, internacionalista. Além disso, existiam as novidades do maoísmo (chinês) e do foquismo (inspirado em Che Guevara, cujas ideias foram postas no papel por Régis Debray).

Depois de sair o Relatório Kruschev, em 1956, o Partido Comunista Brasileiro, guiado por Luís Carlos Prestes, adotou o gramscismo como posição oficial. Prestes só causou confusão na República Velha e no Estado Novo. Na ditadura militar, ele só fazia propaganda. O seu seguidor mais violento – Carlos Marighella – só começou a explodir coisas e roubar banco depois de romper com o PCB e formar sua própria sigla independente. (Ao meu ver, ele se aproximou do anarquismo soreliano aprendido em casa com seu pai operário italiano. Não reivindicou nenhum -ismo comunista, ao que eu saiba.) Quem causou muita confusão no regime militar foram: os radicais católicos, os foquistas, os maoístas e a turma de Marighella.

Há quem diga que houve muita relutância entre os comunistas brasileiros em reconhecer o Relatório Kruschev, que seria “coisa da CIA”, e que Paim teria sido muito importante por contrabandear o Relatório contra a vontade de Prestes e traduzi-lo. Seja como for, em 79 Paim observa que o espiritualismo cristão de Lima Vaz “evoluiu rapidamente para o terrorismo”, enquanto que o marxismo europeu, desde 54, era intransigente com o terrorismo. No Brasil, o PCB aceitava a hegemonia dos trabalhistas e tentava subvertê-la por meio do voto. Tinha, assim, meios de trilhar o caminho do marxismo europeu.

Mas o PCB rachou após as novas diretrizes. Criou-se primeiro o PCdoB (1962), que se filiou à China. Quando a China não topou mandar dinheiro para a Guerrilha do Araguaia (1967 - 1974), eles renegociaram e se filiaram à Albânia e se tornaram hoxaístas. O PCdoB foi precoce. Embora não tenha cometido o primeiro atentado terrorista do regime militar, já durante o governo Jango eles enviavam guerrilheiros à China para fazer a Revolução comunista no Brasil. Ou seja, não aceitavam a hegemonia trabalhista e não queriam derrubá-la no voto.

APML: racha ou mudança?

Há mais de um jeito de se referir ao surgimento da APML: pode ser entendido tanto um racha na AP quanto como uma mudança.

Houve sem dúvida uma mudança teórica. Seja por uma conversão dos mais velhos ao marxismo ou por receber marxistas, o fato é que, a acompanharmos o verbete do CPDOC, no final dos anos 60 surgiu o debate de se os militantes da AP deveriam adotar princípios marxistas. Pela versão do Tortura Nunca Mais (Tomo III, p. 29), mais detalhada, o divisor de águas foi quando militantes da AP voltaram da China exigindo dos colegas que haviam sido cristãos uma "autocrítica de Deus" (sic) como condição para permanecer na AP. Nessa época, houve uma debandada do movimento. Também pelo Tortura Nunca Mais, vemos que a AP, trocando o espiritualismo cristão do Pe. Vaz pelo marxismo, não tinha mais nenhuma consistência interna, pois não conseguia se decidir pelo foquismo, nem pelo maoísmo, nem pela "ótica althusseriana" (que suponho mais próxima do PCB).

Uma ala já descristianizada rompeu no final de 68, fundou um efêmero "Partido Revolucionário dos Trabalhadores" e foi "expropriar" mercadinhos. Acabou presa. (Veja-se matéria do Jornal do Brasil, nº 152, 2/2/71).

Enquanto isso, a AP, predominantemente maoísta, atuava em conjunto com o também maoísta PCdoB. Em 71, torna-se APML. Em 72, há mais um racha e parte decide expulsar os maoístas, que migram para o PCdoB, mas não reconhecem a APML como entidade distinta. Dizem que a APML são eles e a APML foi incorporada ao PCdoB. Essa ala "expulsa" provavelmente seria a ala majoritária, segundo o Tortura Nunca Mais. Assim, uma simplificação da história é que a AP virou APML e se incorporou ao PCdoB.

Em 74, segundo o verbete do CPDOC e o Tortura Nunca Mais. Esta última fonte, porém, finaliza a história com um breve ressurgimento da APML entre 76 e 78. Aí ela atuou em parceria com o MR-8, organização foquista, para reestruturar o movimento estudantil. Moral da história: na década de 70, a AP ou APML não existia mais como uma entidade de atuação independente.

Com a descristianização da AP no final da década de 60, suponho que a Igreja tenha desistido de lutar contra o marxismo e se aliado a ele, abraçando a gororoba hegeliana da Teologia da Libertação justo no começo dos anos 70. O Pe. Vaz, porém, entrou os anos 80 como um opositor da Teologia da Libertação porque considerava “inteiramente vã qualquer tentativa de repensar o marxismo numa perspectiva teísta, ou de atribuir ao ateísmo em Marx um caráter acidental”.

Sendo a APML ateia, como seria a relação dela com o Pe. Vaz? Perguntei isto a um ex-militante da APML que não quer ser identificado. Eis a resposta: “O Pe. Vaz se manteve como figura intelectualmente respeitada, mas suas questões mais teóricas não estavam presentes no dia a dia da organização política nos anos 70, ao que creio. Parecem-me fantasiosas as relações feitas com a CAPES.”

No próximo texto encerramos (espero!) esta série discutindo a plausibilidade da história de Vélez.

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