Ouça este conteúdo
O melhor documento para averiguar a censura perpetrada pelos pupilos do Pe. Vaz não é o artigo de Vélez, mas sim a coletânea Liberdade acadêmica e opção totalitária, organizado por Paim. Ocorreu o seguinte: em março de 1979, uma professora de filosofia da PUC-Rio pediu demissão porque o chefe de departamento, Raul Landim, havia vetado a impressão de um texto de Miguel Reale no material institucional do Departamento “face ao caráter polêmico e controvertido das [suas] atividades políticas”. Miguel Reale havia sido um notório teórico integralista, além de reitor da USP em suas ocasiões (49-50 e 69-73). Raul Landim era um pupilo do Pe. Vaz e, hoje, notório estudioso da obra de São Tomás. Paim, então professor da PUC-Rio, pediu demissão em solidariedade à colega e jogou a história no ventilador. Resultado: editoriais do Jornal do Brasil, d’O Globo e do Estadão contra o episódio de censura na PUC-Rio, mais uma chuva de artigos de opinião. Quase todos ficaram contra Landim. Exceções foram o Pe. Vaz, o Pe. Olinto e o sociólogo Simon Schwartzman (também parte da entourage do Pe. Vaz, mas que fez um texto isento apontando para a necessidade de parâmetros acadêmicos na seleção de textos institucionais, que devem se preocupar com o assédio da política sobre a academia). Um desfecho do qual o leitor da coletânea não se inteira é que a celeuma foi seguida pela demissão de Landim.
“A intelectualidade estará dividida entre liberais e totalitários”, diz Paim na apresentação da coletânea. Vale frisar, porém, que o seu amigo Reale não era nenhum santo.
Acuse-os do que faz?
Em seu segundo reitorado, Reale criou um órgão secreto de inteligência chamado AESI (Assessoria Especial de Segurança e Informações) cujo fito era investigar as ideologias dos alunos e professores que fossem ou quisessem ser parte da USP e denunciá-los à Repressão. Segundo relata o Estadão na matéria “SNI barrou expurgos” (23/3/2018), “a assessoria [AESI] produziu 2.895 documentos entre 1973 e 1979 enviados ao Departamento de Ordem Pública e Social (Dops), ao 2.º Exército e ao SNI.” Os professores bem relacionados com a reitoria passaram a denunciar os colegas a fim de promover expurgos e açambarcar a verba da pesquisa. Assim o SNI parou de dar credibilidade às denúncias. Como diz a matéria sobre um caso (o relatório da AESI contra o físico Oscar Sala), “para o SNI, o documento da AESI ‘insere-se num contexto de luta pelo controle administrativo da Fapesp e do manejo de suas vultosas verbas’. Por fim, os agentes concluíam: ‘Não é, em essência, documento válido e merecedor de crédito’.”
Pois bem: a acusação de Vélez aos pupilos do Pe. Vaz da APML é a de que teriam feito a mesma coisa que os anticomunistas da USP, só que em plano federal. Em vez de FAPESP, seriam a CAPES e o CNPq. Para explicar como “marxistas-leninistas”, em vez de anticomunistas, se aliariam aos militares, insere-se a teoria de que foi uma negociação para que a APML abandonasse a luta armada. Os militares estariam preocupados porque a APML não ingressara na vida partidária e isso seria um indício de que iriam pegar em armas. A negociata (trocar o controle das verbas pela desistência da luta armada) teria ocorrido entre 80 e 82.
Alguns apontamentos: 1) Na década de 70, a APML era ateia e não tinha mais deferência ideológica pelo Pe. Vaz, de modo que ser pupilo do Pe. Vaz e ser da APML são coisas mutuamente excludentes. 2) A APML ingressara na vida partidária, pois se fundira com o PCdoB. 3) Não há uma relação necessária entre virar partido e sair do terrorismo, como mostra o próprio PCdoB no Araguaia. 4) O ciclo que vai da JUC radicalizada à APML compreendeu três décadas (50, 60 e 70), de modo que não faz sentido presumir coesão entre o Prof. Landim (um pupilo do Pe. Vaz) e os estudantes maoístas da APML.
Tudo isso torna a história de Vélez muito implausível, para dizer o mínimo.
Quem seriam os aparelhadores?
Se estivesse vivo, o Pe. Vaz teria 101 anos. Seus pupilos, se vivos, estão na casa dos 80 anos. Já os ativistas estudantis da fase maoísta estão hoje na casa dos 60 anos. Em 1980, não tinham idade para tomar a direção da filosofia da CAPES. Se alguém aparelhou a CAPES, foi da primeira leva.
O pivô da briga de papel, Raul Landim, de fato foi importante na institucionalização da pesquisa em filosofia. Ele não foi o único da AP: o artigo da Unicamp cita uma ampla influência do “militantismo católico” sobre a filosofia no Brasil. Os nomes citados são o do fluminense Raul Landim, mais os mineiros Guido Antonio de Almeida, Walter José Evangelista, José de Anchieta Corrêa e Hugo César Tavares. Os dois primeiros compõem a linha analítica da UFRJ e os demais últimos ficaram na UFMG. Os dois primeiros eu conheço de nome; dos demais eu nunca tinha ouvido falar. Walter Evangelista em 75 havia se convertido ao marxismo e estava na Bélgica terminando o doutorado sobre Althusser. A crermos no seu Lattes, orientou apenas quatro doutores. Parece provável, então, que ele tenha sido o membro da AP que levou a influência de Althusser nos final dos anos 60. Dos demais, não encontro informações detalhadas. Seja como for, o fato apontado no artigo da Unicamp é que essa turma se doutorava em Louvain, na Bélgica.
Se há aparelhadores da filosofia pupilos do Pe. Vaz, hão de ser estes, que têm idade e estão nas raízes da criação da ANPOF. Creio que seja ônus de Vélez e seus partidários explicar como qualquer deles teria condições de adotar táticas de guerrilha, e como conseguiam manter vínculos com a APML nos anos 70 estando na Bélgica.
Quando a nomeação de Vélez trouxe esse episódio de volta à tona, a extinta revista Época procurou Landim. Cito-a: “Disse [Landim] que a exclusão do curso de filosofia brasileira estava relacionada a uma modernização do departamento para adequá-lo à realidade de outros cursos de filosofia no mundo. Da mesma forma, a antologia de textos distribuída aos alunos passou a incluir apenas filósofos considerados clássicos. ‘Fui da AP, mas não sou marxista, como também não era o padre Vaz. Estávamos preocupados em melhorar a competência dos alunos, mas o Paim transformou tudo em questão ideológica’, disse a ÉPOCA Landim […]. A querela não terminou bem para ele. Seis meses depois, Landim e outros professores perderam seu emprego na PUC. Ele acha que a polêmica teve um efeito indireto em sua saída.”
Hipérbole falsa
A Época também ouviu Paim: “A USP é hostil ao pensamento brasileiro. A Capes está na mão dos comunas, dos marxistas. O MEC só dá passagem e bolsa para quem está na chave gramsciana. Se você não estudar Gramsci, você perde o emprego. É exatamente isso.” Dois apontamentos aqui: Paim aponta, corretamente ao meu ver, que a USP ditou as normas da institucionalização da filosofia no Brasil. Na verdade, isso é senso comum na filosofia acadêmica brasileira, e eu mesma sou fruto desse modelo uspiano de formação. Nele, o aluno escolhe um filósofo “clássico” (sempre estrangeiro) para estudar e se torna um “historiador da filosofia” que escreve obras de “comentário” seguindo o método estruturalista expresso por Victor Goldschmit (pupilo do católico Étienne Gilson) em “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos”. É uma coisa muito específica e fácil de reconhecer. Eu sou especialista em Hume; Chauí, em Espinosa. O próprio trabalho de Paim é o de um historiador da filosofia que faz análises estruturais de textos. Ele só diferencia do estilo uspiano por causa da amplidão do seu escopo e por formar um cânone (brasileiro) por conta própria.
O predomínio de São Paulo pôs o Rio de Janeiro e Minas Gerais em segundo plano. Minas tem notas da Capes excelentes, mas não impôs um “modelo UFMG” de fazer filosofia, nem lotou departamentos com seus egressos Brasil afora. Quem fez isso foi a USP, que a seu turno era um “departamento francês ultramar”.
Quanto à outra afirmação de Paim, é simplesmente falsa. O próprio Landim é um especialista em São Tomás que não chega perto de Gramsci ou Marx. Eu, que estudei num departamento paulista da Bahia, só tive um professor especialista em Marx. Era um peixe fora d’água: mais velho do que os colegas egressos de São Paulo (foi o único que se aposentou enquanto eu estudava), tinha se formado no México.
Last, but not least, os dois egressos da AP que ficaram na UFRJ eram opositores do modelo USP. Muitas das diatribes contrárias ao estruturalismo uspiano vêm dos ditos analíticos, que às vezes até se especializam num filósofo, mas preferem pensar a história da filosofia focando em problemas a serem tratados diacronicamente pela lógica, em vez de sistemas fechados a serem estudados somente em seus próprios termos por um historiador. Raul Landim e Guido Almeida, embora “famosos”, são de uma corrente minoritária. Aliás, a filosofia analítica da PUC-Rio também sofreu bastante com a hegemonia paulista. Vide (vou deixar o leitor pesquisar, para não me alongar) Oswaldo Chateaubriand, ou ainda a filosofia do paranaense Newton da Costa, de reconhecimento internacional.
O que deve ter acontecido
O certo é que o modelo USP tratorou iniciativas de outros cantos do país. Paim estudava um tema fora do escopo tido como legítimo pela USP. (Vale apontar que tampouco o Pe. Vaz é conhecido ou estudado – ele estava junto com Reale na apostila vetada.) Além disso, Paim pediu demissão da PUC e foi para a Gama Filho, uma instituição privada que sequer tem o amparo da Igreja. Ora, na institucionalização levada adiante pelos militares, as universidades públicas foram de longe as que mais cresceram. Com qualidade e dinheiro, passou a atrair o resto do alunado de elite que ainda escolhia universidades privadas. As federais só declinaram após a gestão Haddad em Lula II. Paim teria chances de resistir ao modelo USP – como Landim resistiu – se ao menos tivesse escolhido uma universidade pública para trabalhar.
Há uma diferença entre estudar as escolas de pensamento que moldaram a política brasileira e estudar polemistas vivos (como Reale e o Pe. Vaz à época). É uma pena que a polêmica tenha transformado “estudar filosofia brasileira” em “estudar Reale e outros anticomunistas”. Foi uma injustiça grosseira e imperdoável com a obra de Paim. Isso o levou a uma revolta justificada, e o sentimento de revolta conduz a hipérboles.
Em sua entrevista à Época, ele se sentia especialmente traído porque ajudara os comunistas: “Excluíram o Miguel Reale porque ele tinha sido integralista, o que é um absurdo. Eu tinha arrumado bolsas para os marxistas, em pleno governo militar, porque achava um absurdo a discriminação a eles, mas a convivência é difícil. Você não deve dar cargo de poder a eles, porque eles vão liquidar os outros. É da alma deles.” O próprio Miguel Reale, porém, institucionalizou um macartismo dentro da USP às escondidas. A AESI só foi descoberta em 2018, e só podemos crer que Paim não fazia ideia das presepadas do amigo ex-integralista. Por outro lado, a esquerda devia saber muito bem. E por isso deve ter ganhado uma aversão indelével por Paim, que expôs os esquerdistas no jornal em plena ditadura enquanto retratou o Inquisidor Mor da USP como mártir da liberdade de expressão.
A influência da turma da AP não deve ter servido para muita coisa além de jogar para cima a avaliação da Kriterion. O não reconhecimento de programas laicos sobre filosofia brasileira não é uma explicação razoável para o declínio do conservadorismo, como pretendia Flávio Gordon. Esta causa, como já argumentei, deve ser buscada dentro da Igreja.
Quanto à tréplica
Por fim, devo dizer que sua última tréplica ficou aquém do que eu esperava. 1) Desconheço comunista e nazista que tenham sido virtuosos por causa de sua ideologia, e não apesar ou a despeito dela. 2) Paim usa "progressista" de um frouxo, sem ser uma definição. Afinal, o positivismo no Brasil teria um papel progressista, ao passo que na Europa era visto como algo atrasado. Paim não se interessa pela Nova Esquerda, que tem afinidade com a ideologia racista e neomalthusiana surgida no mundo de língua inglesa conhecida como progressismo. Sua experiência de militar brasileiro e bolchevique soviético fizeram dele um grande estudioso do positivismo e do marxismo ortodoxo e suas ramificações. Mesmo com as ciências sociais da USP tomadas pelos intelectuais bancados pela Fundação Ford (entre os quais se contam Florestan Fernandes e Abdias do Nascimento), Paim não deu muita bola para a corrente. Pode ter sido porque ela só chegou aos departamentos de filosofia brasileiros no século XXI...