Hoje há pouca gente politizada que tenha interesse em saber a verdade. Quando alguém diz que “o copo está meio cheio”, o cidadão politizado, viciado em redes sociais, tem uma preocupação primordial: saber de qual lado está a afirmação de que o copo está meio cheio. As pessoas que afirmam isso são de esquerda ou de direita? Então eu tenho que dizer que o copo não está meio cheio. Porque o que importa é estar do lado certo da História, não descobrir a verdade.
Até pouco tempo atrás, essa mania de querer estar do lado certo da História era coisa de comunista. “La Historia me absolverá” é uma frase famosa de Fidel Castro. Foi dita após ser condenado pela Justiça por causa de uma quartelada. O contexto mostra bem a divinização: fosse um religioso em seu lugar, diria que Deus o absolveria. É a distinção clássica entre o reino de César e o reino de Deus. O comunismo, na esteira do hegelianismo, abraçou essa ficção da deusa História. Karl Popper fez uma boa crítica disso, dizendo tratar-se de mera bajulação dos mais fortes; afinal, se no fim os melhores triunfam, daí se segue que aquele que triunfou (por quaisquer meios) é o melhor.
Mas a postura das massas guiadas por influencers consegue ser ainda mais desorientada do que os comunistas da velha guarda. Estes, bem ou mal, tinham um projeto de longo prazo. Para as massas, tudo acaba sendo uma coreografia frenética: quem não adere ao slogan do momento toma paulada. E assim não há espaço para pensar.
Já critiquei muito a esquerda por isso, e acho que não é possível ela se tornar mais estúpida desde a adesão a um idioma próprio (vide o episódio do “pauliste safade”, sic). Aponto, então, um exemplo mais recente na direita, que ainda tem muito a evoluir na imbecilização. No dia 9 deste mês, quando se anunciou de que os brasileiros em Gaza seriam repatriados, o influencer e deputado Nikolas Ferreira tuitou: “Obrigado, presidente Bolsonaro”. Como se sabe, a participação de Bolsonaro numa reunião com a embaixada israelense fez com que os bolsonaristas reivindicassem os louros de Bolsonaro na repatriação dos brasileiros. Subiu-se até a hashtag #BolsonaroNobelDaPaz. Recentemente, porém, começou a circular uma postagem do Instagram na qual um dos repatriados defendia a explosão de ônibus em Israel – defesa de um ato terrorista, portanto. Que fez Nikolas? Tuitou: “Repatriado que Lula trouxe para o Brasil em seu Instagram: ‘Não queremos violência, mas acho que este é o momento certo para explodir ônibus em Israel.’” Agora, são os repatriados de Lula. Não houve nenhuma errata nesse ínterim. Numa semana, pede-se à turba que acredite que Bolsonaro repatriou os brasileiros em Gaza – se você não acreditar, é comunista!!! Na semana seguinte, pede-se que acreditemos que um dos repatriados é o “repatriado de Lula” – se você não acreditar, é comunista!!! O homem que aceita se submeter a isso abre mão de sua racionalidade e se animaliza, reduzindo-se a um cão pavloviano. O homem dessa direita supostamente cristã não faz jus à ideia de imago Dei.
Não é uma coincidência que essa direita imite o partido Republicano dos EUA, nem que a esquerda “todes” imite o partido Democrata dos EUA. Elas cresceram muito em plataformas de redes sociais populares, que eram todas, até pouco tempo, sediadas nos EUA. (A exceção é o caçula TikTok, chinês.) Bom, nesta Gazeta, lemos o analista político Gladden Pappin descrevendo a internet atual como setores de informação: nós, assim como os europeus ocidentais, estamos no American Sector da internet, que não é mais global. E ele critica também o fato de que, embora a desinformação seja uma tática de guerra comum e legítima, aqui no Setor Americano a propaganda está descontrolada, e não parece servir para mais nada além de promover cancelamentos estúpidos.
Penso que no âmbito do jornalismo a coisa seja igualmente perceptível. Por exemplo: li recentemente que segundo o Washignton Post, um jornal com linha editorial do partido Democrata (isto é, woke e pró Ucrânia), a Ucrânia explodiu o gasoduto Nord Stream ano passado. Ora, a esta altura, a notícia de que a Rússia não é a responsável pela explosão só é novidade para quem se prende ao American Sector. Na época da explosão, duas explicações concorriam: a do American Sector, segundo a qual Putin explodiu seus próprios gasodutos porque é mau e queria deixar a Ucrânia sem energia, e a do “Setor Russo”, segundo a qual a explosão foi urdida pelos EUA para afastar a Europa Ocidental da Rússia e diminuir-lhe as receitas de exportação. Ora, a dependência energética da União Europeia é um fator muito mais importante para a Rússia do que a dependência da Ucrânia (que estava longe de ser esse leão imbatível prometido pelo American Sector). Eu não preciso ser russófila para achar a segunda explicação muito mais plausível. No entanto, o estado mental promovido pela nova direita exige que eu não pense por mim mesma, mas acredite no que quer que seja contra Putin ou pró EUA. Quanto a mim, penso que, se o Washington Post está noticiando isso agora, então o establishment democrata tem a intenção de despachar a Ucrânia e ficar só com Israel por agora – e que a divisão do partido Democrata quanto a Israel é só fachada.
Israel é outro assunto no qual o nível de desinformação atrelado à politização impressiona. Por exemplo, no Twitter leio Gustavo Maultasch, um escritor erudito e cheio de verve que acontece de ser um judeu sionista (que defende a liberdade de expressão inclusive para nazistas), dizendo que “A esquerda sempre adorou os judeus quando eles estão mortos.” Eu não tenho a capacidade de crer que ele seja simplório a ponto de considerar que a esquerda sempre é contrária ao sionismo. Para acreditar nisso, a pessoa não pode saber o que é um kibbutz – o leitor que vai me xingar na caixa de comentários certamente não sabe o que é, nem vai procurar no Google, mas eu tenho certeza absoluta de que Gustavo sabe. E sabe muito bem que, por muito tempo (dos anos 40 aos 80 pelo menos) ser sionista fora de Israel praticamente implicava ser de esquerda. Não que o contrário fosse verdadeiro (ou seja, nem todo esquerdista era sionista), já que a esquerda tem também uma tendência antiga de considerar os judeus uma raça de banqueiros. Antissemitismo, antissionismo e sionismo têm presença histórica na esquerda, que está longe de ser um bloco monolítico ao longo da história.
No nosso American Sector, uma série de assuntos é ignorada na cobertura de Israel. Por exemplo: nas redes sociais e nos veículos noticiosos, não é muito difícil aparecerem menções aos colonos israelenses (no meu feed, amiúde eles são denunciados por destruírem oliveiras velhíssimas na Cisjordânia, sem que eu possa precisar a data). Mas você não vai ver jornal nenhum, no mainstream, explicar o que são colonos israelenses ou seus assentamentos. Esse é um assunto de suma importância política passada e atual. No American Sector que nós integramos, a história do conflito entre israelenses e palestinos foi achatada de tal modo, que começa no dia 7 de outubro deste ano. Fala-se de Taqyia, mas nada de Hasbará. Comentam-se decapitações medievais, mas nada do terrorismo sionista na Palestina britânica (sendo o caso mais famoso o da explosão do Hotel King David). Todo o mundo vê os barbarismos da xaria islâmica, mas ninguém investiga os barbarismos do Talmude (por exemplo, sobre a licitude de matar gentios como gado) que vêm sendo revividos já neste século, em Israel.
Bom, depois de começar a escrever este texto, me ocorreu olhar o que Breno Altman fala de sionismo em seu canal no Youtoube. Só agora a direita descobriu a existência de Breno Altman, mesmo que ele tenha posando junto com chefes de Estado numa foto clássica do Foro de São Paulo em Havana.
Breno Altman é "esquerda raiz" e não difere muito do PCO. Portanto, tal como o PCO e uma porção de woke, Breno Altman não tem peias em se entusiasmar com o progresso do Hamas contra Israel. No entanto, diferentemente dos demais esquerdistas simpatizantes do Hamas, ele atraiu contra si um ódio pessoal descomunal. Motivo: Breno Altman é tão judeu quanto o embaixador de Israel que comeu lagostim com Bolsonaro e depois borrou as fotos. (A religião judaica proíbe lagostins.) Breno Altman é um judeu apenas étnico (não religioso) e um ferrenho antissionista. Sionismo é o identitarismo judeu, como expliquei aqui.
Assim como alguém da minha cor pode se manifestar contra o identitarismo negro sem ter medo de apanhar, mas Fernando Holiday não, alguém como Raphael Machado da Nova Resistência pode se manifestar contra o sionismo sem que um grupo de WhatsApp de centenas de sionistas discuta o seu assassinato, surra ou tortura. Foi o que aconteceu com Breno Altman, que ainda foi chamado de kapo, do mesmo jeito que negros dissidentes são chamados de capitães do mato. Em vez de se vitimizar (ou de procurar a polícia com os nomes dos envolvidos), ele se limitou a dizer que aqueles sionistas eram frouxos e boquirrotos, e que iriam “para a lata do lixo da História”, ou seja, o inferno dos marxistas.
Pouco antes de o nome de Breno Altman aparecer no meu feed por causa do furor da direita, aparecera justamente por causa da Nova Resistência. Ele entrevistara Raphael Machado e o confrontara com suas postagens antigas, além de cobrá-lo quanto ao possível etnocentrismo da filosofia de Dugin. Ou seja, muito se engana que do fato de Breno Altman ser contra Israel se siga o fato de ele não se comover com o genocídio perpetrado pelos nazistas, ou de compactuar com o antissemitismo. Tampouco se segue que um “time do mal” opere em conjunto sem discordâncias internas. No mais, frise-se que o judeu antissionista vive convidando judeus sionistas para irem debater com ele no seu canal; mas, diferentemente de Raphael Machado, nenhum deles topa levar uma prensa de Breno Altman. Em vez disso, preferem cancelar.
Tendo me impressionado positivamente com a sua erudição ao tratar de Dugin, e considerando que um filho de judeu polonês comunista vai ter muito o que ensinar sobre sionismo, resolvi ver seus vídeos sobre a história do sionismo e história do antissemitismo. São duas verdadeiras aulas (inclusive de história do marxismo) que eu recomendo. E dão um banho em qualquer produção do Brasil Paralelo sobre o assunto. Não é porque o cara defende o Foro de São Paulo que a visão dele sobre um assunto objetivo está errada.
Aonde quero chegar com isso? Quero deixar claro que posso aprender com Breno Altman; que posso aprender com Raphael Machado; que posso aprender com gente de toda orientação político-ideológica e, com sorte, posso ensinar algo a gente de todo tipo de orientação ideológica também. Porque quem faz uso da razão e se interessa pela verdade pode ter um contato produtivo com o material divulgado por gente de correntes ideológicas diferentes. Os liberais de hoje se acham muito melhores do que os “autoritários” porque não querem prender ninguém por dissidência ideológica. No entanto, pregam a ausência de diálogo com "extremistas" e pedem “apenas” para que as pessoas sejam canceladas e excluídas da sociedade, perdendo, por toda a eternidade, todas as formas de subsistência. Mais vale ir para a cadeia segundo alguma lei! Na cadeia se almoça, tem-se vida social (ir para a solitária é exceção) e há um prazo para o fim da punição.
Passemos à nova direita. Esta semana aprendi algo com ela, também. Foi-me instrutiva a leitura da matéria do Brasil Sem Medo intitulada “Atores militantes de extrema-esquerda possuem contrato de R$ 53 milhões com o governo de São Paulo”. Aprendi que desde Dória o governo do Estado de São Paulo remunera regiamente ongueiros da cultura que puxam o saco de Anielle Franco até no racismo do buraco negro. O BSM foi atrás do governo de Tarcísio e as respostas não me pareceram satisfatórias. Afinal, uma coisa é dar uma justificativa burocrática para a manutenção do contrato; outra, uma justificativa política. Defender o "buraco negro" de Anielle Franco é uma coisa que não se vê com facilidade nem dentro do PT. Recomendo a leitura da matéria, que está sem paywall.
Graças ao fato de eu acompanhar Sílvio Grimaldo no Twitter, atinei que já é o segundo ano seguido que os deputados da nova direita vão aos EUA durante a Black Friday para "denunciar" a perseguição no Brasil. Vi também sua denúncia do "brilhante" plano de ir encontrar com George Santos, um republicano cheio de capivara.
Por outro lado, a Oeste me matou de vergonha alheia com a manchete de que engenheiros do PCC estavam ajudando o Hamas a construir túneis em Gaza. O problema é que a denúncia vinha de um veículo de Taiwan e se referia ao… Partido Comunista Chinês. Duas atualizações foram incluídas na matéria: a primeira informando que "Primeiro Comando da Capital" no corpo do texto havia sido corrigido para "Partido Comunista Chinês"; e, depois de tomar nota no Twitter, a outra atualização informava que a manchete mudou, colocando Partido Comunista Chinês por extenso em vez de manter a sigla PCC. Nessa história, eu fiquei me perguntando como foi possível ver uma notícia de Taiwan e depreender que se tratava da organização criminosa paulista.
Moral da história: Não devemos consumir mídia noticiosa por ela ser de direita ou de esquerda, mas sim pela qualidade. Não devemos ouvir só quem pensa igual a nós; isso é estupidez. Não devemos nos sentir obrigados a nos inteirar de tudo, porque isso não é possível; logo, tampouco temos a obrigação de "nos posicionarmos" para ficar "do lado certo da História", que isso é coisa de comunista.
Não é livre quem vive preocupado em não fazer pipi fora do penico ideológico, com medo de contrariar a turba virtual.
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