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Ontem comecei a falar da Neojibá, a orquestra estatal juvenil baiana inspirada na Venezuela, que vocês podem ver tocando com Martha Argerich aqui, ou dando um show com “Aquarela do Brasil” aqui, e me desviei do assunto que pretendia tratar.
Como a Cultura está na mão de tuiteiro e a direita, salvo raras exceções, não liga pra cultura, acabo me inteirando do assunto pelos perfis no Twitter do cineasta Josias Teófilo e do sociólogo Eduardo de Alencar.
Josias é cineasta e o sociólogo é roteirista do seu documentário “Nem tudo se desfaz”, a dupla está mais inteirada da Secult do que eu, mera escritora de um veículo privado, a quem bastam o salário e o computador com internet para trabalhar. Fazer cinema é uma mão de obra danada e muitas vezes envolve dinheiro público.
Baixaria contra apoiadores do governo que critiquem a Secult
O próprio Josias já chegou a escrever em público, sem desmentido, que recebeu telefonema do presidente pedindo que renunciasse a dinheiro captado pela Rouanet. Ele captou menos dinheiro do que podia, R$ 78 mil em vez dos previstos R$ 530 mil, mas o filme saiu mesmo assim. E ele segue sendo xingado em público pelo secretário André Porciuncula e por um tal de Paulo Chuchu, ex-assessor de Eduardo Bolsonaro. Eduardo Bolsonaro é quem banca Porciuncula no cargo e é usado por este para dar uma aura de respeitabilidade às suas atividades tuiteiras.
Josias apoia o governo, abriu mão de dinheiro captado para um filme acusado de governista e é tratado assim pelas nulidades que ocupam a Secult. A última xingação contra ele foi ontem mesmo por ter compartilhado o último texto desta escritora referida como “amiguinha do cineasta”.
Bom, devo dizer então que também sou uma apoiadora do governo, e, mais do que isso, cheguei a usar, neste jornal, a pessoa inofensiva do Sr. Porciuncula para defender os bolsonaristas das acusações de violentos que lhe são feitas. A imprensa tradicional não diz que todos esses olavetes do governo que ficam xingando muito na internet são extremistas que ameaçam matar os seus críticos? Escrevi que eu brigava com olavetes na internet e nunca sofri qualquer tipo de ameaça; que nem de André Porciuncula, que era PM na mesma cidade que eu e portanto sabia usar armas, eu tinha medo. Disse que André Porciuncula jamais me ofereceu nenhuma ameaça, e que esse povo que se diz ameaçado de morte pela “extrema direita” sem fazer BO é loroteiro.
Qual foi a reação de André Porciuncula a isso? A única reação que o seu cérebro parece ter aprendido. Sapos coaxam; pássaros piam; gatos miam; Porciucula lacra. Deu uma captura de tela print na minha coluna e tuitou: “Rindo demais com esta parte de uma matéria [sic] no [sic] Gazeta do Povo. Que tipo orégano estragado estão dando para as pessoas que escrevem para o @gazetadopovo?”
Sobrou até para este jornal, entendido por ele como um fumódromo verde. Todo mundo que o critica é maconheiro.
Buááááá
Se eu quisesse processar, processava. E se eu processasse, ele iria se fazer de vítima, mártir pregado na cruz por maconheiros. A reação dele e de Frias ao meu último texto foi dizer que é óbvio que estão trabalhando na cultura porque… Estão tomando processos. Cito a sequência de tuítes:
“Temos mais de 78 processos, todos motivados pelas diversas ações que fizemos. As principais delas: portaria proibindo linguagem neutra; portaria proibindo passaporte sanitário; decreto mudando toda a Lei Rouanet; portaria mudando o eixo de investimento para patrimônio histórico, formação profissional e arte sacra; instrução normativa forçando a descentralização dos recursos para projetos iniciantes; tabelamento de preços e redução de teto legal; auditoria e proibição de financiamento ideológico com a lei; MP para garantir a liberdade de expressão nas redes sociais e o uso de todo nosso orçamento para projetos de cultura realmente popular. Lutamos para barrar diversas iniciativas desastrosas, como a Lei Paulo Gustavo e a tentativa de emplacar uma Aldir Blanc eterna, sendo que a primeira foi antes de entrar, quando o Mário tinha poucos dias de governo, e ele trabalhou fortemente para mitigar os jabutis do PL. Mas claro, para a amiguinha do cineasta, Mario é um tuiteiro que nada faz. Está aprendendo bem com a mídia como fazer uma campanha mentirosa de assassinato de reputação. Um ponto fora da curva no [sic] Gazeta do Povo. Lastimável! São dois objetivos: (01) tentar inviabilizar o único meio de comunicação com o público e (02) atingir o presidente.”
Alguém contou para ele, nesse ínterim, que a Gazeta não é um veículo lacrador. Pelo teor da resposta, vocês veem a mentalidade chinfrim do cidadão: uma montanha de canetada consiste em algo relevante. Eu gostaria que projetos de gente que não sabe português fossem reprovados, embora ache que essa é a consequência natural de um controle de qualidade competente; além disso, eu, você, Roberto Carlos e as baleias sabemos que o STF barra qualquer coisa contra linguagem neutra. E como seria a aplicação dessa regra? Seria exigido um certificado de ausência de linguagem neutra? Bom, uma peça que quisesse satirizar o uso dessa linguagem conteria palavras nessa linguagem, tornando-se assim inelegível pela Rouanet.
De um modo geral, ele se gaba de proibir coisas e de pôr empecilhos aos artistas na captação de recursos. (E encontrei até gente se queixando de não conseguir acessar a emenda de Ana Caroline Campagnolo para a cultura catarinense por causa da tal da auditoria da Rouanet.) Quanto às alegadas novas ações da secretaria, há que se ter ceticismo. Josias e Eduardo constataram – sem desmentido – propaganda de programas pré-existentes como se fossem novidade. Tendo o meu estado por base, posso dizer que formação de museólogo não é problema; eu mesma dei aula para turma de museologia na UFBA e tem o curso na UFRB também. Lugares como a Bahia, Minas Gerais e Pernambuco não passaram a ter experts em arte sacra no século XXI, não é mesmo?
Não tenho nenhum interesse em desestabilizar o presidente. Digo a quem quiser ouvir que, apesar da Cultura, o apoio – e, ao contrário da dupla de tuiteiros estatais, não recebo nem um centavo por isso. Do jeito que eles falam contra quem recebe dinheiro público, parece até que eles trabalham tuítam de graça.
Ao contrário do que esse cérebro primitivo pensa, não tenho nada contra o Twitter em si mesmo. Eu uso, a Gazeta usa e aprovo o uso que o presidente tem feito. Mas Porciuncula acha que minha crítica quer dizer que usar Twitter é “Crime máximo. Sabe como é, isso tira o monopólio da informação da turminha dos jornais.” Ah, bom! Agora eu reclamar de tuiteiro estatal que não trabalha é querer impedir o uso do Twitter para aumentar o leitorado do jornal!
Importa que nada seja feito
De todo modo, eu comecei a escrever o texto de ontem por causa de um sincericídio que explica muito da atual situação da Secretaria de Cultura. Enquanto cumpria o expediente, que inclui lançar indiretinhas contra Josias Teófilo no seu local de trabalho (o Twitter), Porciuncula mandou esta pérola de sapiência: “O sujeito que trata a cultura como ofício é um idiota arrogante que não tem a menor ideia da amplitude e profundidade dessa coisa mística que convencionamos chamar de cultura.”
Ou seja: não tem mais artista profissional. Ao que parece, vai valer o ideal marxista segundo o qual todos farão trabalho e crítica literária no mesmo dia. Cantora lírica agora vai treinar no chuveiro. As Orquestras Sinfônicas serão extintas. Um novo Michelangelo vai surgir com o exercício das horas vagas, sem um treinamento intenso.
Continuemos com a sequência de tuítes desse gigante da cultura ocidental: “Toda vez que alguém arrotar que é um produtor de cultura, atribuindo a si uma distinção inexistente ao resto da raça humana, como se fosse possível algum ato humano em sociedade que não fosse um ato cultural, saiba que você está lidando com um medíocre arrogante. Tudo que essa mediocridade de contentamento olímpico merece é o escárnio ou o ostracismo.”
Com base num sofisma, numa questiúncula linguística, esse sujeito resolveu que não existe diferença entre um artista profissional e um tuiteiro medíocre. Por isso acha que ficar levantando obstáculos burocráticos a quem de fato quer produzir cultura profissionalmente é uma coisa louvável em si mesma. Ele não seria capaz de acompanhar um debate como o do meu último texto – a saber, sobre o papel estatal de fomentar uma cultura superior à comercial, daí eu citar a Neojibá –, porque Porciuncula não é capaz de entender que o trabalho artístico existe e é superior a tuítes pedantes.
Até quando esse senhor vai ficar lacrando com dinheiro público, sentado em cima dos recursos? Quando os recursos saem – e uma hora eles saem – não é de admirar que seja por meio de um gabinete de oposição, que sabe muito bem diferenciar o trabalho legislativo da lacração tuiteira.
Vamos mesmo passar pelo Bicentenário da Independência com uma nulidade dessas que não sabe o que é uma Orquestra Sinfônica e ainda fica desrespeitando apoiadores leais ao governo? Isto não faz o menor sentido!
A primeira versão deste texto informava que Josias Teófilo não havia usado dinheiro público em seu filme "Nem tudo se desfaz". A informação correta é que dos R$ 530 mil que ele podia captar, captou apenas R$ 78 mil.
Corrigido em 24/11/2021 às 10:45