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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Politicamente correto

Representação e representatividade são coisas diferentes, apesar do que diz o identitarismo

representatividade
Membros do Parlamento Europeu durante sessão de votação em junho de 2022. (Foto: EFE/EPA/JULIEN WARNAND)

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Traduzir faz bem ao homem de letras. Por exemplo: certa feita, no texto de um conservador que mencionava um romance, apareceu a palavra “impoverished” – literalmente: empobrecido – para se referir a uma personagem que, pelo contexto, parecia ter sido pobre de nascença. Se traduzo como “empobrecido”, o leitor lusófono pensará em alguém que nascera acima da pobreza e caíra nela. Em português, pobre é pobre; não se usa eufemismo para pobre. No entanto, bastava conferir o resumo do romance para ver que a personagem era pobre de nascença.

Resta concluir que os anglófonos criaram um eufemismo politicamente correto para “pobre”, “impoverished”, na mesma linha do que a beautiful people faz agora em português com “escravo”. Não pode dizer mais “escravo” porque isso seria naturalizar a escravidão, então tem que botar na voz passiva: “escravizado”. Como o politicamente correto é uma invenção anglófona, essa novidade é cópia de lá: em vez de slave, dizem enslaved agora.

Acontece, porém, que há uma diferença atroz entre ter nascido em cativeiro e ter vivido em liberdade até ser capturado por escravagistas. Além disso, se eu depreender que existem “escravos por natureza” apenas por não se usar a forma passiva, então devo depreender que jornalistas, médicos, engenheiros, são o que são por natureza; do contrário, seriam jornalistizados, mediquizados, engenheirizados. E se ninguém nasce mulher, deveríamos dizer “mulherizadas” em vez de “mulher” a fim de combater a cis-heteronormatividade.

Mas a situação de pobre/empobrecido é ainda mais tola do que escravo/escravizado. A tradição judaico-cristã ocidental de fato considera que o homem nasce livre; a partir disso, argumenta-se que a escravidão é ilegítima. Por outro lado, desconheço bases profundas para a alegação de que nenhum homem nasce pobre. Todo homem nasce nu e faminto. Se alguns nascem herdeiros, isso, sim é construção social – do mesmo jeito que era construção social o fato de alguns nascerem escravos. A fartura, a abundância, a posse de muito dinheiro, tudo isso é fruto de construção social continuada, passada de pai para filho através dos milênios. É verdade que a pobreza e a miséria também podem ser fabricadas, mas o fato é que, entregue à natureza, o homem é pobre.

Por outro lado, não existe nenhuma doutrina milenar que afirme que os homens nascem ricos. O que existe de mais consolidado nessa linha tem só uns 300 anos. É o discursinho de Rousseau de que os homens nascem iguais e a sociedade produz desigualdade.

Ao cabo, portanto, o conservador que escreve “impoverished” em vez de “poor” adere a um vocabulário que só faz sentido dentro de um rousseaunianismo ao qual ele próprio não adere. Nisso, ele perde uma palavra – poor – e, junto com ela, a distinção entre ser pobre de nascença e ter se empobrecido. A língua de Shakespeare tem berço de ouro, mas está depauperada, empobrecida.

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Representação

Esse empobrecimento deve ter sido imposto aos anglófonos antes de o inglês ter tomado o lugar do francês como língua franca; por isso, a pressão para não falar “pobre” não deve ter nos atingido. Ou talvez haja mesmo uma diferença cultural que faça com que o brasileiro de fato não veja pobre como moralmente condenável, e a pressão eufemística tenha se voltado, aqui, contra a palavra “mendigo”, já que mendigos são condenados moralmente por parte da população, sobretudo desde a difusão do crack. Aí entra a “pessoa em situação de rua”. De todo modo, é um jargão restrito, sem chances de cair no uso comum e ir parar na escrita de um conservador.

Mas uma outra corrupção linguística que se entranhou de tal forma na língua inglesa, e que vejo se infiltrar no português, é a deturpação do significado de “representante de minorias”.

Embora ambas se confundam, representatividade é uma coisa; representação, outra. No mundo jurídico e político, nós podemos escolher nossa representação: contrato um advogado para me representar; voto num político para me representar. Em ambos os casos, trata-se da noção tradicionalíssima de representação – e em ambos os casos o representado é livre para escolher quem irá representá-lo. Na noção politicamente correta de representatividade, porém, nós não escolhemos ninguém. Postula-se como um dogma que mulheres representam mulheres, negros representam negros etc. Se eu sou uma mulher, cabe a mim ficar sentada, passiva, à espera de que surja uma mulher – em tese, qualquer mulher – para me representar. Representar-me como? Sendo mulher. Basta ficar lá fazendo cara de paisagem. Lá onde? Em qualquer lugar ou contexto: numa bancada de TV, numa empresa de TI, num consultório médico, no Congresso. A representatividade se insere em todos os âmbitos da vida social. Se ligo a TV e vejo Dani Calabresa, devo enxergar ali a minha representante no humor, porque sou mulher e ela também. A representatividade é grátis e compulsória. Mas pra que eu quero uma representante no humor?! Quando vejo um programa de humor, quero só ver boas piadas, não quero ser representada.

Minorias

O direito das minorias à representação é sagrado nas democracias. O identitarismo acaba com isto de duas maneiras: distorcendo a noção de representante, atrelando-a à “representatividade”, e confundindo a noção de minoria. Ora, em política, a minoria é o voto vencido, é o dissidente. Um parlamento deixa de fazer sentido quando a ala vitoriosa (a maioria) cassa os direitos da ala vencida (a minoria). Congressos têm oposição e situação. Nos primórdios da democracia, na Europa, a minoria e a oposição eram compostas por homens brancos. Hoje, nos países de língua inglesa, branco não pode ser minoria porque é maioria no sentido demográfico. A consequência natural dessa distorção é acabar com o direito à dissidência na política. E junto com isso vem a ideia de que ninguém precisa receber voto para ser representante; basta existir.

A porca torce o rabo noutro assunto bastante importante. Neste texto aqui, somos alertados para o problema dos mecanismos feitos para aumentar artificialmente a “representação negra” na medicina, ou seja, a quantidade de médicos negros. Não é correto falar em representação negra noutro contexto que não a política ou, vá lá, a arte (por exemplo: “o negro é representado assim-assado na obra de Fulano de Tal”). O paciente não vai ao consultório para encontrar um representante compulsório; vai ao consultório para encontrar alguém que saiba como tratá-lo. Pelo andar da carruagem nos EUA, pacientes negros só podem ir a médicos negros. Se os negros dos EUA têm uma cultura avessa aos estudos, as faculdades devem empurrar maus alunos negros adiante, para haver “representatividade”. No fim, a representatividade obriga as minorias étnicas pobres a terem médicos açougueiros. Cheira a darwinismo social.

Clareza, por favor

A única representação importante no debate político é a representação política. Esta tem que ser livre, salvo em caso de menoridade ou incapacidade mental. Se é compulsório, não é representação política.

Se um indivíduo é anão e albino ao mesmo tempo, isto não faz dele uma minoria política a gozar de direitos especiais; faz dele, apenas, um indivíduo estatisticamente raro. Ser negro ou mulher não é uma questão política. Existem mulheres e negros adeptos de variadas ideias políticas, e cada qual tem o direito de escolher representante conforme essas ideias. “Mulher” não é uma ideia política, e nenhuma política tem o direito de dizer que me representa se eu não tiver votado nela. Jean Wyllys nunca representou os gays; ele representou uma parcela do eleitorado carioca.

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