Ouça este conteúdo
Saiu pela É Realizações este ano o livro Uma nação, duas culturas, de Gertrude Himmelfarb (1922 – 2019). A primeira edição em inglês é de 1999; pouco tempo depois, saiu uma segunda edição avaliando as próprias previsões com um posfácio redigido em 2000. É um livro de análise de conjuntura voltado para a vida cultural dos Estados Unidos. Assim, seria de esperar que não tivesse relevância em outro hemisfério e em outra década.
Não obstante, o livro é pertinente para o Brasil do século XXI – e muito. A teoria da qual Getrude Himmelfarb parte é que houve uma Revolução Cultural nos Estados Unidos durante a década de 60. Essa revolução foi vitoriosa porque a moralidade defendida por ela se tornou cultura hegemônica. De todo modo, sua vitória não implicou o aniquilamento da cultura anterior: restam então duas culturas coexistindo numa única nação.
A validade ampla da análise de Himmelfarb se deve ao fato de que essa Revolução Cultural, oficialmente inaugurada pelo maio de 68 na França, foi um fenômeno ocorrido em todo o Ocidente. Caetano Veloso não tinha nenhuma originalidade ao cantar “é proibido proibir”; a contracultura por ele integrada, que exaltava a “liberdade sexual” (sexo sem compromisso) e a “abertura da mente” (drogas), era um fenômeno geral em todo o Ocidente. Onde houvesse um país de formação cultural católica romana ou protestante, aí estaria a contracultura combatendo a cultura prévia.
Igual, só a mudança
As culturas preexistentes variam, naturalmente. Gertrude Himmelfarb começa o livro citando uma observação de Adam Smith relativa às diferenças de moralidades entre as classes sociais. Os nobres podem ser devassos, porque têm condições de arcar com os custos de sua devassidão. Já a plebe tem que ter mais autocontenção para não se dar mal. Pouco após a morte de Smith, porém, a elite da Inglaterra se torna vitoriana, e todo o país adota uma moralidade casta e contida. Himmelfarb aponta que Smith pôs uma condicional: se houver classes sociais bem demarcadas, haverá duas moralidades vigentes. A Inglaterra deixou de ser uma sociedade de classes marcadas, então essa moralidade característica da plebe tomou até as elites. O movimento wesleyano, surgido no seio do operariado, galgou a elite e deu origem ao vitorianismo.
Já os EUA surgiram em clima de igualdade entre os cidadãos. O movimento wesleyano pautou a moralidade do país com muito mais força do que em qualquer país do Velho Mundo. Por outro lado, o Brasil era uma continuação do Império Português e se manteve assim até mesmo na Independência, quando pegamos o herdeiro da monarquia portuguesa para nós. Além disso, a ética do trabalho duro, mais associada ao calvinismo, não faz parte da nossa formação. Entre nós, trabalhava-se em primeiro lugar para a subsistência e, depois, para custear o prazer.
Ainda assim, por mais que o nosso povo tenha tomado cachaça e farreado com o samba, é inegável que as coisas tenham mudado após a Revolução Cultural. As letras dos funks de hoje, com toda a sua obscenidade explícita, fazem um malandro como Wilson Batista parecer puritano em comparação. Wilson Batista, autor de "Meu mundo é hoje", encarnava o malandro. Criou uma polêmica pública com Noel Rosa, que queria fazer do samba um gênero musical de bons moços, desatrelando-o da malandragem. Com o funk, deu-se o oposto: funkeiros com o perfil de Claudinho e Bochecha, que tinham letras românticas, sumiram do mapa. O funk se firmou como música de traficante e de mulher empoderada que canta devagar o verso “Dako é bom”.
Na verdade, talvez as mulheres sirvam mais como prova de mudança de costumes no Brasil do que os homens. Está certo que a figura do malandro sempre teve algum charme entre nós; mas nunca foi bonito a mulher se gabar de ser rodada e aceitar tudo. O malandro podia conviver com o romantismo; a mulher rotativa dos traficantes, não. As mulheres servem inclusive para mostrar a mudança no que concerne às drogas. Se antes lastimavam que os homens bebessem demais, hoje parte vê como símbolo de status a qualidade das drogas que um homem não só usa, como dá para as ficantes.
Consequências danosas
Segundo Himmelfarb, os conservadores, no começo, achavam que a Revolução Cultural seria circunscrita aos que podem bancar essa moral tresloucada. No entanto, o tempo provou que seu otimismo não se justificava.
Uma das coisas interessantes do livro é a riqueza de estatísticas destrinchadas. Primeiro, porque no Brasil se faz muito pouca estatística; segundo porque, quando faz, faz um trabalho porco justamente para extrair conclusões idênticas às dos EUA. E tais conclusões são as de sempre: que as mulheres são espancadas pelos seus companheiros e as crianças são vítimas de abuso sexual dentro da própria casa. Como as estatísticas dos EUA são mais completas, aprendemos que ambos os fatos são verdadeiros, mas a história foi contada pela metade: as crianças vítimas de abuso não costumam ter o pai em casa, e as mulheres espancadas não têm um marido. Os progressistas divulgam os dados como se fossem prova de que os homens são mais, quando o mais razoável seria concluir que rodízio de padrasto prejudica criança, e que abalos na monogamia tradicional deixam os homens mais violentos.
Outro dado interessante é que os EUA, apesar de tudo, permaneceram religiosos. Este é um ponto que o aproxima do Brasil e distancia ambos da Europa, em que a modernização e a Revolução Cultural implicaram o crescimento da irreligiosidade. Nos EUA, a Revolução Cultural chegou às igrejas, cujos pastores se tornaram progressistas e passaram a defender uma moral relaxada. No Brasil, o avanço da Teologia da Libertação coincidiu com a Revolução Cultural. No entanto, creio que uma comparação entre protestantes dos EUA e católicos do Brasil mostraria que a adesão destes últimos ao progressismo é tardia, já que a Teologia da Libertação tinha um foco mais econômico do que comportamental. Hoje é fácil fazer de contra que os drogados são drogados porque são pobres, mas no começo tratava-se mais de redistribuição econômica e apoio à URSS do que de relaxamento moral e tolerância às drogas. A esquerda católica brasileira marchou com a esquerda brasileira como um todo, desde a fase pró URSS até a fase pró Partido Democrata dos EUA.
Previsões acertadas e erradas
Himmelfarb dava como certo que a contracultura se tornou não só hegemônica, como majoritária nos EUA. Mas ela apontava que, por um lado, os próprios democratas estavam se empenhando em reverter os males sociais causados pela desagregação familiar e pela política de segurança pública leniente (tinha em mente sobretudo a política de tolerância zero, de Nova Iorque); e, por outro, uma “contra-contracultura” estava se fortalecendo. Ela acreditava que ambas as tendências continuariam uma reversão lenta e gradual da contracultura.
Quanto à primeira das previsões, em 2022 podemos dizer que falhou. Os democratas se radicalizaram muito de lá para cá – inclusive na área de segurança pública, como mostram as leis da Califórnia. Quanto à outra, podemos dizer que acertou em cheio. As tendências testemunhadas por ela eram a da valorização da religião tradicional como elemento benéfico à sociedade, bem como a debandada dos moderados. A valorização da moral tradicional fazia com que judeus ortodoxos se associassem a católicos tradicionalistas e a pastores batistas negros e brancos do Sul. Tamanha coalizão se devia ao fato de os religiosos conservadores perceberem que sua religiosidade estava sendo expulsa da vida pública. Além disso, Himmelfarb, judia, percebia que judeus secularistas estavam colocando seus filhos em escolas judaicas religiosas por não aprovarem a moral da contracultura. Além disso, o movimento do ensino domiciliar estava deixando de ser coisa de amish e se espalhando pela classe média.
Essas tendências se confirmaram lá e têm correspondência no Brasil. Aqui, a “bancada evangélica” tem de tudo, vem causando desde pelo menos 2014, e seu candidato à presidência é católico. O ensino domiciliar virou pauta aqui, também. Nas classes baixas, o crescimento dos evangélicos pode ser caracterizado como um movimento contra a contracultura.
O que eu não sei é se se pode dizer que a contracultura seja ou tenha sido majoritária no Brasil um dia. À hegemonia, chegou; à maioria, creio que não. Afinal, basta compararmos a questão do aborto e ensino de sexualidade nas escolas: no Brasil, é de bom tom os candidatos mentirem que são muito conservadores enquanto varrem a turma do arco-íris para debaixo do tapete. Nos EUA, é tudo feito às claras.
Aqui eu pontuei só algumas questões do livro tendo em vista o Brasil. Valem a pena também as considerações de Himmelfarb sobre as mudanças que a cultura comunitária sofreu com o advento de entidades privadas mais poderosas que governos, tais como a Fundação Ford e a Open Society. O livro é curto e bem escrito.