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Se um deputado põe uma peruca e diz ser mulher para discursar contra a ideologia de gênero, trata-se, segundo ouvimos, de um desrespeito à casa legislativa. Em defesa de Nikolas, porém, posso argumentar que ele não teve a pachorra de se dizer lésbica, e que tampouco foi a um salão de beleza feminino exigindo ser tratado como mulher pelas funcionárias. Se Nikolas usasse vestido em vez de paletó, se se maquiasse (talvez com a ajuda de uma namorada) e se tivesse deixado o cabelo crescer, aí nem precisava de um partido de esquerda: ele, ou melhor, ela seria tida por representante da direita civilizada, aquela com a qual vale a pena conversar e que pode ser admitida dentro dos estreitos limites de uma democracia ESG.
O curioso disso tudo é a cara de pau com que se impõe de cima para baixo uma moralidade totalmente artificial. Quantos por cento da população brasileira estarão dispostos a aceitar que algumas mulheres têm pênis? Chegará a meio por cento? Ainda assim, o STF resolveu equiparar a transfobia ao racismo. No frigir dos ovos, nossa lei contra o racismo, proposta pelo deputado Afonso Arinos e sancionada pelo presidente Getúlio Vargas em 1951, já em sua fase democrática, tornou-se ineficaz para proibir tribunais raciais e eficaz para proibir transfobia – um conceito inexistente à época, e desconhecido ainda hoje para a maior parte dos brasileiros.
Mas a mídia está tentando mudar isto. O jornal O Globo, mesmo, não hesita em se referir ao episódio como “fala transfóbica”. Enquanto escrevo estas linhas, é bem possível que uma porção de analfabetos esteja boquiaberta e confusa, vendo a TV dar muitos rodeios para ensinar que os machos da espécie que usam vestido são mulheres, mas Nikolas é mau porque é um macho da espécie que usou peruca e isso é transfobia. Entendeu? Imagine o analfabeto.
Se Nikolas usasse vestido em vez de paletó, se se maquiasse (talvez com a ajuda de uma namorada) e se tivesse deixado o cabelo crescer, aí nem precisava de um partido de esquerda
Todo esse contraste entre revolução vinda de cima e revolução vinda de baixo me lembrou o opúsculo Marxismo e Liberalismo, de Josef Stalin e H. G. Wells. Stalin dispensa apresentações e responde pelo “marxismo” do título. H. G. Wells é um progressista britânico que, embora seja mais conhecido pelo romances de ficção científica (seu O homem invisível foi um grande sucesso comercial, com adaptação para o cinema), é autor também de planos utópicos para este mundo. Ele é um idealizador da Liga das Nações, por exemplo, e sua intenção era a de que se criasse um governo mundial. Escreveu um livro de não ficção intitulado Nova Ordem Mundial. Ele responde pelo liberalismo do título, já que todo tipo de ideologia inventado por anglófonos reivindica esse rótulo. Em 1934, H. G. Wells viajou à União Soviética para entrevistar Stalin. O opúsculo é resultado de uma conversa de quase três horas.
A pergunta inicial de Wells é bem conforme a pieguice vigente neste nosso mundo de Gretas Thunbergs. Ele explica que conversara com o presidente Franklin D. Roosevelt, dos EUA, e diz a Stalin: “Agora venho perguntar ao senhor o que está fazendo para mudar o mundo”. Claramente, para Wells, o mundo precisava de mudança. E ele, no seu papel de cidadão do mundo, ia cobrar de Stalin que o mudasse. Sucinto, o georgiano bigodudo respondeu: “Pouca coisa”.
Wells dá a sua teoria de fusão entre socialismo e capitalismo. “A minha visita aos Estados Unidos”, diz ele, “estimulou as minhas ideias. O velho mundo financeiro está desabando, e a vida econômica do país está sendo reorganizada sobre novas linhas. Lênin disse: ‘Devemos aprender a fazer negócios’, aprendendo-o com os capitalistas. Hoje, os capitalistas têm que aprender com os senhores, têm que captar o espírito do socialismo. Parece-me que nos Estados Unidos se está levando a cabo profunda reorganização – a criação de uma economia planificada, isto é, socialista.”
O que chamamos de capitalismo hoje é um sistema bem mais mitigado que o de antes. Acontece que não é bonito dizer que o fascismo (no caso do Brasil) teve um papel importante na criação dos diretos trabalhistas, nem convém ao mundo protestante dizer que a Igreja tinha razão
De fato, em 1934 a economia do país estava em frangalhos após a crise de 29; e, como suposto remédio, entrava no segundo ano sob o pacote do New Deal. Além disso, é sempre bom lembrarmos que o capitalismo que saiu vitorioso da Segunda Guerra Mundial e da Guerra Fria é um capitalismo bem diferente do que se defendia à época, que era o de laissez faire. Socialismo, fascismo, social-democracia e uma porção de teorias inspiradas na Doutrina Social da Igreja pretenderam domesticar o capitalismo por meio da melhoria da vida do trabalhador, em vez de deixá-lo solto (como o liberalismo darwinista de então) ou de destruí-lo por completo (como o comunismo). O que chamamos de capitalismo hoje é um sistema bem mais mitigado que o de então. Acontece que não é bonito dizer que o fascismo (no caso do Brasil) teve um papel importante na criação dos diretos trabalhistas, nem convém ao mundo protestante dizer que a Igreja tinha razão. Aí fica-se no máximo elogiando o esquerdismo da social-democracia alemã.
Como era um comunista, Stalin discordou da proposta de síntese de Wells: “Os norte-americanos pretendem desembaraçar-se das crises à base de uma atividade particular capitalista, sem mudar as bases econômicas. Estão tratando de reduzir ao mínimo a ruína, as perdas causadas pelo sistema econômico existente. Aqui, entretanto, como o senhor sabe, foram criadas, em lugar do velho sistema econômico destruído, bases inteiramente diferentes; um novo sistema econômico. Embora os americanos referidos pelo senhor atinjam parcialmente o seu propósito, quer dizer, embora reduzam ao mínimo tais perdas, não reduzirão as raízes da anarquia que é inerente ao sistema capitalista”. Ou seja, Stalin, como bom marxista, acreditava no colapso do capitalismo. Segundo a profecia de Marx, um dia a propriedade estaria tão concentrada nas mãos de uns poucos que o proletariado faria uma revolução sangrenta e tomaria os meios de produção. Assim, toda medida de alívio social criada pelos social-democratas (chamados de fascistas por Stalin) apenas retardaria a crise e atrasaria a Revolução. Por isso Stalin era contra qualquer conciliação entre comunistas e social-democratas, e essa oposição de fato levou a Alemanha a uma radicalização – mas não comunista e sim nazista.
Podemos dizer que Stalin estava mais certo que Wells: os EUA de fato volta e meia trombam com crises e bolhas financeiras; aquilo lá nunca se transformou numa economia planificada socialista. Por outro lado, a experiência soviética, junto com uma porção de outras sob a sua esfera de influência, mostra que é ilusória a tentativa de construir um sistema econômico totalmente novo a partir do zero. E cá estamos, no século 21, com as leis antitrustes mortas, com uma concentração de renda galopante desde a pandemia (pensem nos negócios fechados e no crescimento da Amazon), mais uma guerra mundial latente e uma confusão energética.
A experiência soviética, junto com uma porção de outras sob a sua esfera de influência, mostra que é ilusória a tentativa de construir um sistema econômico totalmente novo a partir do zero
Outra coisa importante na qual discordavam Stalin e Wells era a viabilidade de uma revolução que se impusesse a partir do topo. Diz Wells: “Oponho-me a essa classificação simplista da humanidade em pobres e ricos. […] Na minha opinião, há uma classe numerosa de pessoas capazes que admitem ser o sistema atual não satisfatório e que estão destinadas a um grande papel na futura sociedade socialista. Durante os últimos anos tenho pensado muito na necessidade, e me dedicado muito à tarefa de levar a cabo a propaganda em favor do socialismo e do cosmopolitismo entre amplos círculos de engenheiros, aviadores, elementos técnico-militares. […] Agora tomemos Rockfeller: é um organizador brilhante, tendo dado o exemplo de como organizar a produção de petróleo, exemplo esse digno de ser imitado. Ou tomemos Ford. Está claro, Ford é egoísta. Porém, não é um organizador apaixonado da produção racionalizada, a quem os senhores tomaram lições?” Em suma, Wells quer convencer Stalin de que há bons socialistas em meio à classe média (os técnicos) e aos grandes capitalistas, e que tais figuras deveriam liderar a Revolução. Esta não aconteceria com a revolta dos trabalhadores, mas sim com o condão e a tutela de uma elite econômica e intelectual.
É bem possível que ele tenha em mente a concepção leninista da Revolução, que é guiada por uma pequena elite partidária. Havendo herança leninista nessa concepção da Revolução vinda de cima, entende-se por que o capitalista Klaus Schwab, inventor de um conclave cosmopolita de notáveis e planejador econômico, tem um busto de Lênin em sua estante.
Stalin manifesta descrença. Para ele, só pode mudar o mundo “uma grande classe que tome o lugar da classe capitalista e venha a ser senhor soberano, como aquela o era. Tal classe é a classe operária. Está claro que o apoio da intelectualidade técnica deve ser aceito, e essa intelectualidade, por sua vez, deve receber ajuda, mas não pense que ela representa papel histórico independente. […] O senhor, Sr. Wells, parte da presunção de que todos os homens são bons. Eu, entretanto, não posso esquecer que há muitos homens perversos”.
Agora estamos assistindo a uma revolução de baixo para cima, iniciada pela peruca, a exigir que acreditemos que mulheres têm pênis
E quanto ao leninismo, será que Stalin engole a ideia de que uma vanguarda revolucionária basta? Wells pergunta: “Não é uma verdade estabelecida que as revoluções são feitas por minorias?” Eis a resposta: “Para levar-se a cabo uma revolução requer-se minoria revolucionária dirigente, porém a mais inteligente, apaixonada e enérgica minoria estaria desamparada se não contasse com o apoio, pelo menos passivo, de milhões”.
Muito bem: agora estamos assistindo a uma revolução de baixo para cima, iniciada pela peruca, a exigir que acreditemos que mulheres têm pênis. Vai dar certo? (Notem bem, seu STF e Dona Tabata do Lemann, que eu não estou dizendo que mulheres não têm pênis; estou só dizendo que vocês querem que acreditemos todos nisso. Reservo-me o direito de não dizer em que acredito sem ser convocada em juízo.)
Resta saber quem tem razão nessa questão, se Wells ou Stalin.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos