O livro de Nisbet mais encontradiço em sebos brasileiros.| Foto: Bruna Frascolla/Acervo pessoal
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Na História da Ideia de Progresso, de 1980, Robert Nisbet, tem uma tese um tanto simples: a crença no progresso humano mais ou menos linear é, desde Santo Agostinho, fundamental para o progresso das sociedades ocidentais; e, uma vez que tal ideia tenha se perdido (o que parece ser o caso), maus ventos vêm por aí. Ter uma tese simples não é má coisa; Nisbet enche as páginas do livro usando a sua erudição para para embasar a tese com evidências históricas.

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O marco está em Santo Agostinho por ele ter fundido filosofia grega com milenarismo judaico. Os antigos tinham uma concepção cíclica das coisas humanas, vendo-as como parte integrante da natureza, que é cíclica. Na natureza as coisas vivas nascem, se desenvolvem e morrem, e geram descendência que nasce, se desenvolve e morre. O milenarismo judaico, por outro lado, traz uma concepção linear da história: primeiro, Deus criou o mundo; no fim, Deus acabará com o mundo. Entre uma coisa e outra, o povo escolhido atravessará provações ao longo da história, até que o Milênio chegará, fazendo da própria terra um paraíso para os bem-aventurados. Com Santo Agostinho, a ideia grega (aristotélica) do desenvolvimento de características naturais inatas passa a ser realizada não mais em ciclos, senão em uma linha com início, meio e fim, que culmina no Milênio, quando a Humanidade (e não mais uma tribo) tiver progredido ao máximo. O desenvolvimento, antes cíclico, se dá ao longo da História da raça humana. Volta e meia há acidentes e obstáculos, mas no longo prazo o progresso humano é certo e natural, ordenado pela Providência.

Este é um livro anti-popperiano, embora Nisbet seja um tanto cheio de dedos para falar de Popper e o mencione muito pouco, sempre en passant. Isso se explica talvez por ele adorar Hayek, amicíssimo de Popper, e a dupla austríaca se perceber como unha e carne em matéria de pensamento político. Mas Nisbet aponta evidências de que Hayek é um firme crente no progresso. Popper, por outro lado, condena a crença na necessidade histórica (o historicismo) como a fonte do totalitarismo. Assim, o fito de Nisbet com o livro é mostrar que a crença na necessidade histórica é essencial à ideia de progresso, e que a ideia de progresso é essencial ao próprio progresso.

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No entanto, há um ataque evidente em seu livro: é à mentalidade cientificista que opõe religião a ciência. Para ele, afinal, a história do progresso começa na Idade Média. Aquela que seria a Idade das Trevas foi, na verdade, uma era de grandes avanços técnicos, artísticos e culturais de modo geral, mesmo com o grande analfabetismo. Se hoje todo o mundo sabe ler, mas não lê nada de grandioso, na Idade Média quem não podia ler se beneficiava da leitura em voz alta de obras de primeira qualidade feitas àquela época. A leitura era algo mais social não só por causa dos analfabetos, mas também por causa da falta de bons óculos.

Mais intrigante ainda, Nisbet mostra que não há ideia de progresso na Renascença. Os renascentistas enxergavam o seu mundo como terra arrasada. Contemplavam a Antiguidade clássica como o período áureo da humanidade e viviam de recolher os cacos desse tempo perdido ou de tentar imitá-lo sem jamais pretender se igualar, quanto mais superar. Eles acreditavam em Deus, mas não acreditavam no progresso científico. Os renascentistas voltaram a pensar o mundo de modo cíclico, tendo os ricorsi (recorrências) de Maquiavel em mente. O mundo foi glorioso na Antiguidade e decaiu depois dela. Daí se seguia, para eles, que não há um sentido histórico rumo ao progresso; há somente infinitas recorrências esparsas pelo tempo. E ao analisá-los, Nisbet pontua uma coisa muito interessante: não é possível crer no progresso descrendo no passado, pois o progresso só é possível dentro de uma continuidade histórica. Isto é muito interessante porque vivemos numa época em que é obrigatório desfazer-se do passado (não só da remota Idade Média, mas do passado de dois anos atrás, quando as normas do politicamente correto não eram idênticas às do politicamente correto de hoje), ao mesmo tempo em que se fala obsessivamente de progresso, enxergando-o como um rolo compressor sobre o passado. Depois voltamos a isso.

Na Modernidade, tanto iluministas quanto puritanos acreditavam em Deus e no progresso científico. Havia ateus entre os iluministas, mas eram minoria excêntrica. Descartes, Leibniz, Newton, Malebranche, Voltaire, Adam Smith eram todos crentes num Deus autor da natureza. Até mesmo a Revolução Francesa, com todo o seu anticlericalismo, instituiu uma religião civil dedicada a adorar o Ser Supremo. No século XIX é que ganham força versões seculares da crença no progresso: Comte, Hegel, Marx… Para cada qual, o progresso tinha um motor poderoso, muito diferente da providência. Ciência, Estado e proletariado se tornaram objeto de devoção e culto, pois seguramente nos levariam a uma versão laica do Milênio.

Longe de ser fonte de todo mal, o “historicismo” foi fundamental para que o Ocidente se tornasse o império que é

Foi no século XX, baseando-se nas ideias do século XIX, que o totalitarismo se apropriou da ideia de progresso. Nisbet até concede que o totalitarismo tenha um precedente em algo bem mais antigo: a República de Platão, que não respeitava a liberdade individual e colocava os homens sob tutela de uma pequena casta superior. Como se sabe, Platão, junto com Hegel, são os dois grandes vilões de Popper. Nisbet só menciona Platão en passant; e Hegel, arrolado entre os vilões por ele, tem suas citações retiradas do livro de Popper e avaliadas a uma luz um pouco mais branda. Hegel na certa ficaria horrorizado com o nazismo, mas o arcabouço intelectual legado por ele de fato implica esse tipo de coisa. Ainda assim, Nisbet é menos crente no poder das ideias do que Popper: o nazismo na certa não teria existido sem uma brutal crise econômica, em vez de ser o puro produto de ideias. Na verdade, com ele vemos que esse é mais um defeito da abordagem excessivamente racionalista da política por Popper: considerar o mundo como se fosse um tratado de lógica, e não algo sujeito a mil contingências de ordem material. Ao mesmo tempo, porém, Nisbet concede que as ideias de Hegel não podem ter passado em brancas nuvens e têm de ter tido algum impacto, sim.

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Mas, como vimos no último artigo, Nisbet faz uma listinha de mocinhos e vilões com base na maneira como eles levaram adiante o ideal de progresso: se como liberdade, mocinhos; se como poder, vilões. Para ele, a ideia de progresso é uma das muitas coisas fundamentais que podem sofrer deturpação e ser usadas para o mal. Longe de ser fonte de todo mal, o “historicismo” foi fundamental para que o Ocidente se tornasse o império que é. À luz de Nisbet, portanto, podemos concluir – com alguma surpresa – que, bem analisadas as coisas, Popper não acredita na ideia de progresso; jogou-a fora junto com sua crítica ao totalitarismo. E creio que Nisbet esteja certo quanto a Popper porque o austríaco fez um movimento ainda mais radical contra o arcabouço herdado de Santo Agostinho: negou expressamente a possibilidade mesma de uma História Universal, pois tal história, ao sue ver, só seria possível como um somatório das biografias de cada homem que já andou sobre a terra. O próprio fato de se escrever uma História Universal já levaria o homem a tratar de política como a coisa mais importante da terra, o que seria uma idolatria do poder. O homem deveria se importar mais com o Reino dos Céus do que com o de César – criando uma cisão absoluta entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens das quais se ocupava Santo Agostinho. Lendo Nisbet, podemos concluir que Popper estava errado também quanto a isto, pois a técnica e a ciência, mais até que a política, têm sido marcos na História Universal, que se vale de expressões como “Idade do Bronze” ou “Era do Rádio”.

Ao meu ver, essa obra de Nisbet é uma crítica discreta ao livro de filosofia política mais importante do século XX, que é A sociedade aberta e os seus inimigos (1945), de Popper. Como já expliquei, foi essa obra que realizou o casamento entre liberalismo e democracia, fazendo com que a própria democracia fosse entendida como uma emanação da Razão. No entanto, vemos que essa emanação se dá fora do tempo e da História; nela, nada mais há que indivíduos discutindo teorias, fazendo experimentação social e se refutando. A bem da verdade, Popper pode ser acusado de um certo platonismo, na medida em que supõe que o uso da Razão levará obrigatoriamente ao Bom e ao Belo – é a única coisa que explica a sua fé na humanidade após garantir que o futuro está em aberto e nada pode ser previsto quanto ao progresso humano.

O vazio de autoridade na nossa época é sem precedentes

E quanto ao próprio Nisbet, em que acredita? Ele lastima a destruição das bases da ideia de progresso; por conseguinte, lá nos anos 80, ele acreditava que tempos sombrios estavam à frente. Tais bases são “cinco grandes premissas a serem encontradas na história da ideia de progresso desde os gregos até os nossos dias: a crença no valor do passado; a convicção da nobreza e até mesmo superioridade da civilização ocidental; a aceitação do valor do crescimento econômico e tecnológico; a fé na razão e no tipo de conhecimento científico e acadêmico que só pode derivar da razão; finalmente, a fé na importância intrínseca e no inefável valor da vida neste mundo. No século XX, e, especialmente, em sua segunda metade, cada uma destas premissas tem sofrido desafios atribuíveis à dúvida, à desilusão ou mesmo à hostilidade declarada.” Como esses temas estão frescos demais na cabeça do leitor, não creio que precisemos detalhar muito. Noto apenas que Nisbet se afligia com a destruição da História, enxergando nela um poderoso tecido de coesão social. O livro mais importante de Nisbet em sua terra natal, sem tradução no Brasil, é sobre a importância da comunidade. Por isso ele influenciou bastante os pós-liberais.

Mas ele não deixa de ser um crente no progresso. Essa crença não é científica nem refutável, como pretende Popper. Podemos olhar para um período negro como uma refutação da ideia de progresso – o que Popper, um fugitivo do III Reich, parece ter feito –, ou podemos, à maneira religiosa, enxergá-lo como mais uma provação a ser enfrentada antes do Milênio. Nisbet fica com esta, e, tal como os religiosos antes dele, não abre mão de explicações seculares para os eventos atuais e futuros. Pontuo por alto, então, quais são estas. Ele adere ao pessimista Max Weber, que via no desencantamento do mundo a futura gaiola de ferro da humanidade, e concorda com o prognóstico sombrio de Soljenítsin para o Ocidente. Para o sobrevivente russo, o Ocidente padecia de uma perigosa carência de autoridade. Nos anos 80, Nisbet apontava que a imprensa, a universidade, as igrejas, os artistas, os políticos – a elite de modo geral – não gozava de autoridade moral nenhuma. Por mais desgostosos que os renascentistas estivessem com a Igreja, havia políticos e artistas para admirar e respeitar. O vazio de autoridade na nossa época é sem precedentes, para Nisbet.

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E era por isso mesmo que tal ordem não pode subsistir. Por isso ele espera que se trate somente de uma má fase, e que haja um renascimento religioso acompanhado de uma firme crença no progresso.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]