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O "Roda Viva", outrora consagrado programa de entrevistas da outrora nobre TV Cultura, recebeu a romancista Chimamanda Ngozi. Para compor a bancada são convidados… romancistas? Não, nenhum romancista. Chimamanda é uma mulher negra, então – pensa o obtuso "Roda Viva" de Dória – ela deve conversar, de preferência, com mulheres negras. Não sendo possível catar aleatoriamente uma militante racialista na rua, ficaram com apenas duas nulidades fêmeas negras (atendem pelo nome de Djamila Ribeiro e Carla Akotirene) e tiveram de se contentar com três nulidades fêmeas. Nenhum romancista. Mas não tendo nenhum homem branco cis hétero já está bom.
É verdade que Chimamanda comete o deslize de se dizer feminista. Ela é da Nigéria, um país onde se pratica mutilação genital feminina e onde as mulheres estão longe de desfrutar da igualdade com os homens. Seu livro sobre feminismo tem o título de “Sejamos todos feministas”, é inspirado na realidade da Nigéria e o “todos” engloba os homens. Ou seja: nada de guerra dos sexos, nada de identitarismo. Chimamanda é feminista no sentido em que eu sou e o leitor provavelmente é: quem se opõe a mulheres nascerem fadadas à submissão a pai ou marido e a se confinarem às atividades do lar. Essa é uma bandeira já exitosa entre nós, que já somos todos feministas. Por isso mesmo deixou de ser reivindicada por seus defensores originais e passou para a cracolândia identitária.
Ignorância histórica da militante
Circulou um bocado nas redes sociais um excerto do próprio "Roda Viva" em que a militante da UFBa Carla Akotirene, com o palavreado empolado de acadêmico e hiperbólico de militante, quer dizer que os filhos de santo são perseguidos pelos evangélicos no Brasil e pergunta como os negros podem tirar inspiração do candomblé para construir uma nova sociedade. A militante baiana presume que exista candomblé na África.
A militante não sabe que o candomblé, que significa “festa” em iorubá, foi criado na Bahia. Os “santos” ou “orixás” de fato vieram da atual Nigéria, já que a Bahia mantinha, independentemente de Portugal, um comércio de escravos direto com o Reino do Daomé, um reino livre que não se submetia a potências europeias. Por isso a Bahia tem tantos negros e por isso os negros da Bahia são mais nigerianos (iorubás) do que os do resto do Brasil: os portugueses importavam sobretudo angolanos (banto), e não nigerianos.
No território que hoje virou a Nigéria, cada cidade cultuava um orixá diferente. Uma cidade cultuava Oxóssi, o caçador; outra, Ogum, o guerreiro; outra, Omolu, o senhor da peste e da saúde. Eles não tinham a noção de panteão; tinham a noção de uma divindade máxima que presidia um povoado, uma típica divindade tribal. Aliás, nos tempos mais remotos dos povos latinos, cada cidade também tinha a sua divindade presidente, como se pode ler em Fustel de Coulanges. Quando a militante sai elencando atributos especiais dos orixás, está agindo como uma baiana, não como uma africana: ela trabalha com uma noção de panteão.
A noção de panteão, comum na Europa à época da difusão do cristianismo, tem serventia para inocular o catolicismo em populações pagãs. E assim foi feito na Antiguidade e na Idade Média: em vez de abolir as comemorações do solstício de verão, a festa foi ressignificada como homenagem a São João. Os pagãos não foram proibidos de celebrar a colheita, nem de pular fogueiras. É evidente, por exemplo, que a prática de botar Santo Antônio de cabeça para baixo não tem nenhum fundamento teológico; é costume popular que pode muito bem ser uma adaptação de uma prática pagã.
O que aconteceu na Europa medieval deu-se também na Bahia, onde deuses pagãos, já organizados em panteão, foram assimilados aos santos. Omolu e São Lázaro, ambos responsáveis pela saúde, foram identificados como a mesma pessoa, e as baianas dão banho de pipoca na escadaria da Igreja de São Lázaro. Santa Bárbara, padroeira dos bombeiros, e Iansã, a orixá dos raios e tempestades, também são identificadas. E o corpo de bombeiros sai com uma Santa Bárbara em procissão no dia de comer “caruru de Santa Bárbara”. (Para ter uma ideia do caráter institucional da festa, clique aqui).
É o velho, sabido e consabido sincretismo, que era verdade evidente até ontem, mas os identitários são ignorantes demais para enxergar.
A alternativa ao sincretismo é o quê?
Já houve na Bahia uma tentativa de instaurar um purismo nos terreiros e acabar com o sincretismo. Esse movimento aconteceu em conjunto, da parte do arcebispo primaz Dom Lucas e da Ialorixá Stella de Oxóssi. É algo legítimo, pois ninguém pode ditar, de fora das religiões, como os sacerdotes devem conduzi-las. Mas trata-se de uma decisão interna às religiões voltadas para o futuro, não de teorias sociológicas.
Se quisermos buscar na história uma alternativa ao sincretismo, devemos olhar para os colonizadores da terra de Chimamanda. A alternativa é, como ela falou, não deixar os pagãos batizarem seus filhos com nomes tradicionais. É como se Constantino proibisse os romanos de darem nomes latinos aos filhos. Enquanto isso, no Brasil, os padres gostavam de dar nomes indígenas; as Yaras e os Ubirajaras já foram nomes de moda entre brasileiros de qualquer cor. A alternativa é tratar a crença alheia com profundo desprezo e tratorar qualquer marca da cultura alheia. Como aponta Antonio Risério, basta comparar a religiosidade negra dos Estados Unidos à religiosidade negra da Bahia para notar a acachapante diferença dos colonizadores.
Africanizar o cristianismo
Chimamanda, para a frustração da militante, gosta do cristianismo e tem mãe católica. Lastima apenas que seja, desnecessariamente, tão branco e europeu. As imagens de Maria que ela conheceu representavam uma loura de olhos azuis, uma imprecisão histórica, feita à semelhança dos ingleses. Em vez de pretender abraçar o paganismo ancestral, ela queria que o cristianismo fosse mais africano. A africanização do cristianismo está sendo feita, lá, pelo pentecostalismo. (Creio que ela deveria dizer antes “neopentecostal”, mas o termo foi escolhido pelo estudioso brasileiro Ricardo Mariano para tratar dessa religiosidade nova surgida no Brasil e exportada com sucesso para a África negra).
Se Chimamanda conhecesse o Brasil, ela se surpreenderia ao ver a imagem de nossa padroeira. Se ela visse uma procissão católica na Bahia, veria um catolicismo – não um pentecostalismo, um catolicismo – africanizado.
Gilberto Freyre sempre disse que o colonizador português é católico e antropocêntrico, avesso a todo etnocentrismo e exclusivismo da raça. Vai aos trópicos para se misturar com a gente de cor e absorver sua cultura.
A militante ficou com cara de tacho e é provável que nem se dê conta do quão africano é o catolicismo na Bahia; que, em vez de repensar, fique com raiva da escritora. Mas a obra que Chimamanda gostaria de ver feita na Nigéria foi feita no Brasil.
Obra brasileira
A minha atual cidade (Cachoeira) era um centro do comércio Bahia-Daomé. Daqui saíam o tabaco, o açúcar e a cachaça a serem trocados por escravos. Logo, é também um centro de cultura afro-baiana.
Faz meses que ouço uma batucada cuja procedência tento identificar. Ontem, numa rua próxima, ouvi atabaques, berimbau e canto. Entro na rua, não vejo instrumento nenhum e olho então para os letreiros das casas. Havia uma igreja evangélica e eu penso “não pode ser!”. Presto atenção à letra e noto que é em glória do Senhor. Haja africanização!
As semelhanças entre as igrejas evangélicas surgidas no Brasil e os cultos afro-brasileiro são objeto de inúmeros estudos antropológicos. Se havia uma sede de cristianismo na África, só por intermédio do Brasil ela pôde ser saciada.
Um post scriptum
O que se fala da África nessa discussão não vale para a Etiópia. Esse reino negro é cristão antes mesmo do Império Romano. A princesa Ifigênia, responsável por isso, foi santificada.