Ouça este conteúdo
Sigamos com a cronologia dos governadores de São Paulo. Findo o Estado Novo, volta a democracia. Getúlio Vargas pretendia que houvesse eleições estaduais em dezembro; no entanto, ele fora deposto antes disto por uma junta militar simpática à UDN e aliada ao Judiciário. Assim, as eleições foram revogadas e os interventores foram nomeados por José Linhares, presidente do STF que ocupava a Presidência da República. O interventor de São Paulo foi José Carlos de Macedo Soares. Depois dele, haveria cinco eleições diretas para governador até o golpe de 64.
Esse interventor uma figura bem interessante, cuja biografia merece ser estudada por quem queira se aprofundar na história de São Paulo ou do Brasil dos meados do século XX. (Há um verbete bom no CPDOC.) Resumidamente, ele era um bem nascido que casou com a filha de um capitalista dono de empresas, expandiu os negócios do sogro, estudou Direito no Largo de São Francisco e se revelou, na política, um grande conciliador. Macedo Soares fez campanha para que o Brasil participasse da Liga das Nações e foi presidente do IBGE desde sua abertura (com outro nome) em 1936 e, entre idas e vindas, passou um bom tempo presidindo-o.
Dos bastidores à interventoria
O que nos concerne aqui é como seu nome chegou à interventoria. Para isso, é preciso voltar à República Velha. Ele era presidente da Associação Comercial quando o Tenentismo estourou em São Paulo, ou seja, em 1924. A coisa foi séria, houve muitos mortos e feridos, a sede do governo fora bombardeada pelos tenentistas e o presidente Arthur Bernardes, mineiro, mandara evacuar São Paulo para bombardeá-la, como de fato bombardeou. Macedo Soares fora contra o tenentismo, mas tinha boas relações com alguns partidários do movimento e se ofereceu para negociar. As negociações tiveram êxito e ele acabou muito benquisto pelos tenentistas, que queriam inclusive indicá-lo para governador numa junta provisória. Recusou e foi cuidar da vida empresarial.
Esse desempenho lhe granjeara a fama de bom negociador. Quando houve a Revolução de 30, o General Hanstílio de Moura, primeiro indicado como interventor de São Paulo, se reuniu com ele para saber quem colocar na interventoria. Vários indicados seus a assumiram. O banqueiro Whitaker foi indicação dele, bem como Plínio Barreto, Armando Salles e Laudo de Carvalho. Ao contrário de Whitaker e Plínio Barreto, Macedo Soares nunca apoiou a malfadada Revolução Constitucionalista (de 32) e permaneceu leal a Vargas.
Com o fim do Estado Novo, Vargas apoiaria a campanha do General Dutra para a presidência da República – que, de fato, foi vitoriosa. Macedo Soares foi uma recomendação de Dutra para a interventoria de São Paulo. Como os juristas queriam interventores imparciais e favoreciam juristas, o fato de Macedo Soares ainda acumular o dote de jurista deve ter contado.
O governador abatido pelo prefeito
A interventoria durou um ano e quatro meses. Houve cinco eleições para governador, e quatro eleitos: Adhemar de Barros (47 - 51), Lucas Garcez (51 - 55), Jânio Quadros (55 - 59) e Carvalho Pinto (59 - 63). Depois deste, volta Adhemar de Barros (63 - 66), que foi o primeiro e o último governador eleito do período.
Adhemar de Barros é figurinha carimbada, ex-interventor do varguismo. Era brigado com a turma uspiana avant la lettre, pois confiscara o Estadão, dos quais um dos donos era Armando Salles. Seu primeiro ímpeto na reabertura dos partidos foi se filiar à UDN, que tinha como candidato à presidência o rival de Vargas, o Brigadeiro Eduardo Gomes (cujos apoiadores criaram o doce e deram o nome em sua homenagem; na terra de Vargas, o quitute se chama "negrinho"). O Brigadeiro era nada menos que um dos Dezoito do Forte de Copacabana, um líder heroico do Tenentismo. Adhemar de Barros não durou no partido, porém. Aliou-se a uma outra turma proto-uspiana, esta de Miguel Reale; fundou um partido e fundiu-o com outros, criando um partido grande e com perfil de saco de gatos, o PSP. Elegeu-se governador de primeira.
Em 50, foram as eleições presidenciais. Ele não largou o governo do estado para concorrer; em vez disso, apoiou Getúlio Vargas, que ganhou no estado e no Brasil. Seu vice era do partido do PSP. O derrotado foi o Brigadeiro, ex-tenentista e atual udenista. Terminado o mandato de governador, Adhemar de Barros indicou o engenheiro Lucas Garcez para sucedê-lo, e este saiu vitorioso das urnas. Era novato na política e foi feito por Adhemar de Barros. Garcez era um tecnocrata responsável por grandes obras, e o governo de Adhemar de Barros era notório por suas obras de infraestrutura. Temos, portanto, um precedente com o perfil de Tarcísio: o tecnocrata da infraestrutura, novato na política, indicado para governar o estado. A diferença é que a indicação vinha de dentro de São Paulo, claro.
No entanto, o novato não aceitou receber ordens de Adhemar, rompeu com o padrinho e ainda indicou para a sucessão o estrambólico prefeito da capital, Jânio Quadros. Ele fez isto quando Adhemar quis voltar ao governo; ou seja, o veterano tinha a intenção de se revezar e foi frustrado. Assim, temos que Adhemar indica (e elege) Garcez em 50, que indica (e elege) Jânio Quadros em 54 numa campanha contra o próprio Adhemar.
Àquela época, a eleição de presidente era no ano seguinte à de governador. Em 54, Getúlio se mata. Em 55 Adhemar de Barros foi o primeiro a retomar o costume República Velha: candidatar-se à Presidência da República após passar pelo governo de São Paulo. Perdeu. Ganhara JK, apoiado pelo partido do finado Vargas, o PTB. Nessa eleição, o candidato a vice foi mais votado do que JK. Era João Goulart, do PTB.
Nova rota para a presidência
Em 55, torna-se governador de São Paulo o matogrossense Jânio Quadros. Seria o caso de averiguar se já aconteceu antes de o prefeito da capital desbancar o governador, coisa que não posso fazer agora. No entanto, parece improvável que antes de 55 tenha existido um núcleo urbano capaz de se equiparar, numérica e economicamente, ao estado de São Paulo. Lembremos que, numa democracia, as áreas com mais eleitores levam a melhor. Assim como os estados de São Paulo e Minas Gerais pesam na balança nacional, uma megalópole tem que ter peso no estado de São Paulo, que tem áreas rurais. Parece factível que Jânio Quadros tenha sido o primeiro candidato urbano a vencer o interior no voto, sem o auxílio do Exército ou do governo federal.
Terá sido, creio eu, o primeiro e o último. Depois dele, ascenderam de prefeito da capital a governador José Serra e João Doria, ambos do PSDB, ambos com pretensões presidenciais. Haddad obtém um fragoroso fracasso em qualquer tentativa eleitoral posterior à sua prefeitura – a começar pela tentativa de se reeleger. Em São Paulo, o PT é um partido urbano que chegou à presidência sem passar pelo estado. Seu aliado para isso foi o Nordeste, cujas elites foram beneficiadas pelo voto analfabeto, liberado em 85.
De todo modo, posso já apontar que todos os paulistas da República Velha que se elegeram presidentes eram do interior e não foram prefeitos da capital. O único que conseguira fazer a trajetória de Jânio (prefeitura de São Paulo, governo de São Paulo e presidência do Brasil) foi o fluminense Washington Luís – que, como ele, era um forasteiro eleito pelos paulistanos. Washington Luís causou uma instabilidade na República ao romper com Minas, um estado rural, se aproximar do Rio Grande do Sul, de tradição castrense, e apoiar o paulista interiorano Júlio Prestes para suceder a presidência.
Jânio se elegeu presidente derrotando o Marechal Lott, indicado de JK à sucessão, e Adhemar de Barros, que ficou em terceiro lugar. Participou da sua coligação a UDN, que pela primeira vez conseguia se tornar governo. No entanto, ela não conseguiu eleger o vice da chapa. Entrou o vice do PTB, João Goulart, que recebera mais votos que o Marechal Lott (mas menos que Jânio).
Mais conjecturas
Jânio Quadros não tem nenhum feito excepcional. Era, porém, muito bom de propaganda. Prometia acabar com a corrupção e melhorar a vida do trabalhador -- seu partido era o PTN (Partido Trabalhista Nacional), cujo trabalhismo no nome lembrava o varguismo. O fim da corrupção era a principal pauta do Tenentismo: basicamente, alguns jovens militares resolveram que a política da República Velha era muito corrupta e eles, tomando o poder na marra, iriam dar um jeito em tudo. A vitória do mineiro Arthur Bernardes sobre o fluminense aliado dos gaúchos Nilo Peçanha fora o estopim do Tenentismo, que estourou primeiro no Forte de Copacabana, em 22, e depois teve sua maior eclosão na capital de São Paulo, em 24. Lá, contou com adesão popular, bem como dos intelectuais -- aí inclusos o pessoal do Largo de São Francisco e do Estadão. O bombardeio de Arthur Bernardes teve efeito dissuasório também sobre a população.
Se for verdade que havia uma briga entre a capital e o interior de São Paulo, a primeira só poderia vencer o segundo ou com socorro de outros estados (numa democracia), ou do poder central (numa ditadura). Assim, não é de admirar que essa pauliceia tenha aderido à Revolução de 30, já que ela derrubou um paulista do interior e pôs um gaúcho no poder. No entanto, como este não atende às suas expectativas de mandar no país como os paulistas do interior mandavam, logo se revolta e faz a Revolução Constitucionalista, em 32. O mote de democracia e combate à corrupção seria adotado em definitivo por essa elite, até mesmo quando comunista.
Falando em comunistas, os tenentistas, após perderem em São Paulo, se concentraram em São Borja, no Rio Grande do Sul, e de lá marcharam até o Semiárido nordestino sob o comando de Luís Carlos Prestes. Mais tarde, ele se tornaria comunista. Ao cabo, tanto a UDN quanto o PCB têm raízes no tenentismo. (Quanto a essa simbiose, veja-se a trajetória pessoal de Lacerda.) O PT, quando se colocava como o Partido da Ética que ia salvar o país da corrupção, seguia uma tradição herdeira do tenentismo. E quando os tucanos resolviam colocar a corrupção como causa única e suficiente para varrer o PT, idem.
São Paulo pós Jânio
Tanto no Brasil como no estado de São Paulo, Jânio Quadros foi fogo de palha. Seu mandato de governador terminou em 59, e ele conseguiu emplacar um sucessor: Carvalho Pinto, egresso do Largo de São Francisco, pupilo de Plínio Salgado e expert em finanças. (Foi ele quem analisou as contas e colou em Adhemar de Barros a pecha de corrupto.)
Findo o seu governo, as urnas trazem Adhemar de Barros de volta ao governo. E na próxima continuamos com a cronologia dos governos paulistas.