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Após o último texto sobre a propaganda pró-revolução sexual, apareceram-me dois textos interessantes. Um é uma coluna científica de Natália Pasternak n’O Globo, que basicamente diz que a revolução sexual é uma coisa científica e quem não gosta é obscurantista. Outro é o artigo da Aceprensa sobre feministas que rejeitam a revolução sexual, que o editor sugeriu que eu traduzisse para esta Gazeta.

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Vamos começar com o de Pasternak. Como se sabe, há uma explicação biológica para os homens costumarem ser mais promíscuos do que as mulheres: um homem pode engravidar várias mulheres e, assim, ter um montão de descendentes de uma vez. Uma mulher, por outro lado, ficará 9 meses gestando, normalmente, apenas um descendente; além disso, ficará fragilizada numa boa parte desse período e também depois, quando terá de se dedicar a um bebezinho totalmente indefeso. A reprodução é muito mais pesada para a fêmea humana; logo, ela será muito mais seletiva na hora de escolher fazer sexo. (Se houver possibilidade de escolha, naturalmente.) A invenção da contracepção não apaga milênios de evolução, e isso pode ser visto com facilidade nos moderníssimos aplicativos de paquera: os homens saem dando “sim” e as mulheres saem dando “não”. No cenário homossexual masculino, os aplicativos nem são só de paquera, têm de sexo imediato, dispensando uma etapa de seleção. Se a conduta sexual fosse explicada pelo grau de opressão, os gays deveriam ser mais castos que as mulheres.

Pois bem: segundo Pasternak, no artigo “O mito da fêmea passiva”, tudo isso é ciência produzida por homens, logo, machista, ainda que “inconscientemente”. Tudo mudou quando mulheres entraram na ciência. Cito-a: “A antropóloga e primatologista Sarah Hrdy demonstrou, em seu estudo com macacos langures do Sudeste da Ásia, que copular com diversos machos era uma estratégia das fêmeas para impedir a prática comum de infanticídio. Se os machos não sabiam de quem eram os filhotes, ficavam confusos e não matavam nenhum. Brooke Scelza, ecóloga comportamental da Universidade da Califórnia, estudou os Himba, uma sociedade indígena do norte da Namíbia, onde relações extraconjugais são comuns para as mulheres, e elas têm filhos de vários parceiros diferentes. Scelza conta que durante o tempo em que viveu nesta comunidade, as mulheres não entendiam por que ela não aproveitava para levar homens para sua tenda.”

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Ceticismo, por favor!

Eu acho bastante implausível que se consiga provar tamanho grau de intencionalidade neste macaquinho aqui:

Shantanu Kuveskar, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via Wikimedia Commons

Chimpanzés usando ferramentas são uma coisa; macaquinhas com um cérebro bem menor tramando a liberação sexual, outra, bem mais implausível. Com uma googlada, descobre-se que a história dos langures é um cavalo de batalha feminista especialmente na antropologia. Essa antropóloga teria demonstrado que os cientistas sociais evolucionistas estão errados, e as mulheres são por natureza tão promíscuas quanto os homens. Todas as diferenças entre o comportamento masculino e o feminino se explicam pela opressão perpetrada por construções sociais. A lenga-lenga habitual.

Como a antropologia hoje talvez seja o ambiente mais tóxico de humanas, nenhum consenso politicamente correto que emerja dessa disciplina merece crédito.

A antropóloga primatologista ainda é uma velhinha; tem, bem ou mal, uma obra consagrada. A outra antropóloga está em atividade e não parece ter ganho relevância o bastante para ter um verbete na Wikipédia (na anglófona eles fazem verbete sobre todo o mundo). No Google Scholar, quando pesquisamos o povo himba, o nome dela não parece ter grande relevância, e os antropólogos que o estudam tampouco parecem estar particularmente empenhados na sexualidade feminina. Na Wikipédia anglófona, aprendemos que o povo himba é estudado por antropólogos há bastante tempo, que é um povo pastoril e que os himbas estão, aos poucos, recebendo influências da cultura ocidental. Quanto aos seus costumes, o verbete diz: “Os himbas são polígamos, com o homem himba médio sendo o marido de duas mulheres. Também praticam casamentos precoces. Meninas himbas são casadas com seus parceiros masculinos pelos seus pais. Isso acontece no começo da puberdade, o que pode significar que meninas com 10 anos ou menos são casadas pelo pai. Essa prática é ilegal na Namíbia, e até alguns himbas as contestam, mas, não obstante, é bem difundida. Entre o povo himba, é um rito de passagem tradicional circuncidar os meninos antes da puberdade. Com o casamento, um menino himba é considerado homem. Uma menina himba não é considerada uma mulher plena até ter um filho. O casamento entre os himbas envolve transações de gado, que é a fonte de sua economia. Essas transações envolvem o dote; este pode ser negociado entre a família do noivo e o pai da noiva, a depender da relativa pobreza das famílias envolvidas. Para a família da noiva aceitar o dote, o gado tem que parecer de alta qualidade. A prática padrão é oferecer um boi, mas mais gado será oferecido caso o pai do noivo seja rico e capaz de oferecer mais.”

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Um artigo da Wikipédia é tão bom quanto as referências que ele traz. As fontes desta seção do artigo são o governo da Namíbia, que visa a combater o casamento infantil, e o antropólogo David Crandall, que passou um ano vivendo como pastor entre os himbas.

Um problema da antropologia

O fato de podermos desmentir assim com certa facilidade as abobrinhas de uma antropóloga se deveu, nesse caso, ao fato de contarmos com o trabalho de um antropólogo sério. No entanto, a coisa mais fácil do mundo é ser um charlatão construtivista em antropologia. Digamos que você tenha como agenda provar que os valores são meras construções sociais arbitrárias, e que uma cultura totalmente diferente – a da revolução sexual, por exemplo – é possível. Ora, a sua área é a antropologia: basta encontrar um povo onde tal coisa não valha para mostrar que ela é uma construção social, e não um universal da natureza humana. E antropologia tem uma vantagem em comparação às demais ciências: o objeto de estudo às vezes é de dificílimo acesso.

Assim, lá nos anos 1920, a antropóloga Margaret Mead foi para a Samoa Ocidental viver com uma tribo e escreveu que lá era o verdadeiro paraíso da revolução sexual: um verdadeiro oba-oba onde todo o mundo transava antes do casamento; uma tribo de sexo casual. Quem vai na Samoa Ocidental? Quem vai na Samoa Ocidental e aprende a língua dos nativos estudados por Margaret Mead? A história foi dada como verdade incontestável até a morte da bam-bam-bam (uma discípula do fundador Franz Boas), e só na década de 80 outro antropólogo revelou que a coisa não é bem assim. A qualquer um com mero bom-senso, a história teria de parecer muito esquisita. Mas a "Ciência", à base da carteirada, dizia que Margaret Mead viu que em Samoa Ocidental todos faziam sexo casual; logo, qualquer alternativa ao oba-oba generalizado é mera invenção para oprimir mulhers.

É claro que aqui a Pasternak vai usar a cartada do sexo dos cientistas. Nesse caso, talvez eu deva me declarar trans, já que, se a objetividade não existe e a verdade tem sexo, eu prefiro ficar com a verdade masculina. Do lado das luluzinhas engajadas, é só abobrinha.

Valor da antropologia

Por outro lado, quem queira defender a universalidade de certas características humanas terá muito a ganhar com o estudo de diferentes culturas. A monogamia é construção social? Sim, de acordo. Monogamia não dá em árvore, é uma invenção humana feita para gerir uma realidade humana invariável, a saber: sexo entre homem e mulher férteis resulta em bebês, bebês precisam de estabilidade para serem criados. Uma sociedade sem bebês pode até existir por um curto espaço de tempo, mas não se perpetua. Logo, toda sociedade que chegou até aqui tem algum arranjo estável que permite a criação de bebês.

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Há arranjos monogâmicos; há arranjos poligâmicos. Se você “desconstruir” a monogamia atual, o resultado não é um “estado de natureza” poligâmico. Os himba têm uma construção social poligâmica bastante comum, que consiste em o pai vender a noiva àquele que puder sustentá-la; assim, a poliginia é uma forma de poligamia previsível e comum, ao contrário da poliandria. (Um homem com mais de uma esposa é bem mais comum do que um uma mulher com mais de um marido.)

É curiosa a maneira como a turma da “Ciência” lida com construções sociais. No fim, é a apologia de um estado de natureza fictício. Nós, mulheres, devemos sair dando, porque umas macacas da Índia fazem isso. Ou porque as samoanas intocadas pelo cristianismo saem dando. Ou porque são as himbas que fazem isso em vez das samoanas. E quem negar é machista. Bem desconstruídas todas as coisas, descobre-se que no estado de natureza todo o mundo tem OnlyFans e faz orgia.

Volta à dominação masculina?

Existem sociedades cujas construções se afastam mais da natureza, e outras menos. Quanto tempo não terá demorado para que se chegasse a um arranjo em que um homem tem somente uma esposa? Os judeus eram poligâmicos no Velho Testamento. Os romanos, desde os tempos mais primevos, é que poderiam ser chamados de monogâmicos – mas se tratava antes de uma questão patrimonial. Um homem tinha vários filhos, mas só um herdeiro. É de se esperar que tivesse várias teúdas e manteúdas, mas só uma – a esposa – capaz de gerar o herdeiro.

Podemos dizer que a monogamia é uma construção social que iguala homem e mulher, e que a afasta da condição de mercadoria a ser negociada entre homens. Em nossa sociedade, as mulheres passaram a decidir livremente com quem casar e com quem transar – algo que soa como um privilégio para as muçulmanas, ou ao menos as muçulmanas escolarizadas.

No entanto, o texto da Aceprensa traz outra provocação: o feminismo liberal, que considera que a chave para a relação homem-mulher é o consentimento, não está considerando as condições do consentimento. A moral da revolução sexual ignora que as mulheres querem compromisso. Ao mesmo tempo (como afirmei em meu texto anterior) a propaganda insiste que ser bem-sucedido na vida é transar com meio mundo. O resultado previsível é as mulheres assentirem ao que não querem, sentindo-se obrigadas. Depois dá em MeToo, misandria, lesbianismo falso, disforia de gênero.

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Antes de nos limitarmos a maldizer mulheres feitas que não sabem dizer “não” (talvez até sob o efeito de drogas que elas escolheram consumir), é preciso levar em conta que as mulheres mais novas, as que estão na casa dos 20, nasceram num mundo em que transar é obrigação e em que pornografia é preparação para a vida. Dito rudemente, é um mundo em que as mulheres têm tudo para ser doidas.

Essas malucas têm a capacidade jurídica de consentir, mas não têm a capacidade real, mental, de fazê-lo. Por isso pedem mais e mais leis paternalistas que separem homens e mulheres, e nos tratem como bebezonas. No fim das contas, pedem um mundo tão pouco livre, que acabam levando os ocidentais a se portar um pouco como teocratas islâmicos, que não levam em conta a liberdade da vontade das mulheres.

E não é de admirar, já que essa liberdade foi derrotada no seu âmbito mais importante: a própria cabeça da mulher.

Um post scriptum antropológico

Saiu no Frases da Semana, a indígena Ysani Kalapalo falando que, para os índios, os negros são referidos como homem branco. O que ela diz é perfeitamente intuitivo.

Quando o governo e a imprensa se referem à ação dos não-índios, tratam sempre do "homem branco". Quem fez a cartografia do Império, cruzando aldeias indígenas e estudando tupi? "O homem branco", respondem em uníssono as universidades e burocracias, segundo as quais "o homem branco" faz tudo quanto é avanço civilizacional. Nesse caso particular, quem fez isso foi Theodoro Sampaio, um mulato escuro da Bahia.

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Já tinha me ocorrido que esse jargão faz de Theodoro Sampaio um membro dessa entidade "o homem branco". Agora se coloquem no lugar de um índio que só fala português como segunda língua, que mora em área de pouca presença branca e que ouve que "o homem branco" fez isso e aquilo (desmatou, por exemplo). Quais as chances de esse índio achar que o tão falado homem branco tem a cor branca?

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]