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mulher francesa
O amour libre pregado pelos franceses no pós-guerra focava exclusivamente no prazer, contra toda motivação de ordem econômica ou social.| Foto: Pixabay

Este texto é uma continuação do assunto das diferenças entre os progressismos europeu e norte-americano. Também no que concerne às mulheres o progressismo europeu e o norte-americano são opostos. Como vimos, o casamento gay pode ser reivindicado por europeus hedonistas e norte-americanos puritanos sob chaves opostas.  O mesmo se dá com a liberdade sexual da mulher.

Nos Estados Unidos, a feminista para de trabalhar como os homens e passa a vender o seu sexo (sugar baby) ou sua beleza (Only fans). Num caso e noutro, o prazer está fora de questão. Prostitutas transam porque dá dinheiro, e uma jovem cam girl pode permanecer virgem em casa, salvando o mundo da pandemia. Para tirar fotos não é necessária nenhuma experiência, basta copiar as artistas pop. Antes, falava-se em liberdade sexual. Hoje, fala-se em “empoderamento”. Muito justo, já que empoderamento pode se referir exclusivamente a finanças. (Quando elas estiverem mais velhas, sem corpo para vender, ninguém se espante com suicídio e overdose.)

O sexo oposto ao comércio

Como seria uma oposição frontal a essa maneira de encarar o sexo? Aquela que focasse exclusivamente no prazer, contra toda motivação de ordem econômica ou social. Ou seja, o amour libre pregado pelos franceses no pós-guerra. A mulher que pratica o amour libre não recebe do homem o pagamento que as prostitutas recebem, nem o sustento que as mães de família tradicionais recebiam. Ingressou no mercado de trabalho para se tornar autossuficiente, não quer dever satisfação a marido nem cuidar de filho, e busca os homens só para o prazer.

Por que as europeias ficaram tão diferentes das norte-americanas? Além de fatores  religiosos (a Europa é muito mais ateia do que os Estados Unidos) e culturais (francesas não serem puritanas) eu tenho uma hipótese de ordem mais pragmática: a Europa perdeu uma grande guerra, enquanto que os Estados Unidos têm uma história bem macia em comparação a ela. O único trauma dos EUA é a guerra do Vietnã, cuja mortalidade é besteira em comparação à da Europa nas duas Guerras Mundiais, e cuja derrota, remotíssima, não acarretou uma invasão de vietnamitas estuprando americanas.

Levante a mão quem tem uma mãe, avó ou bisa bígama. Eu tenho bisavó, por causa da guerra. Imagine que você se casa em período de paz, que o seu filho nasce pouco antes do início da II Guerra mundial, e que Mussolini manda o seu marido para a África do Norte. A guerra não dá nada certo e a sua cidade fica sob bombardeios dos Aliados. Toda a sua sociedade conhecida colapsou. O inverno é duro e todos passam fome. Para achar comida, há que se procurar os lanchinhos dos soldados mortos estendidos no chão. Enquanto isso, o seu marido está lá na África do Norte.

De alguma maneira, levando o filho, a minha bisavó saiu da Europa com um austríaco e casou com ele na Argentina, sem saber se o marido estava vivo ou morto. A Argentina e os Estados Unidos receberam muitos fugitivos da II Guerra, sendo a Argentina aberta ao nazifascismo e um franco asilo de nazistas. Esse povo dificilmente vinha para o Brasil, já que o país era mais pobre e mais fechado à imigração do que a Argentina. Se o austríaco não tivesse vontade de morar na praia  e não conseguisse se mudar para o Rio de Janeiro, não tinha Bruna.

Mulheres durante o colapso social

Quando os homens vão para a guerra, perdem e uma sociedade colapsa, o que costuma acontecer com as mulheres? Estupro e prostituição. O estupro não precisa de maiores explicações, já que desde os primórdios da humanidade as mulheres são despojos de guerra. O exército vencedor invade, os maridos estão mortos e as mulheres indefesas. A prostituição é consequência da miséria. E mais: da miséria súbita. Então com a guerra temos moças carolas e devassas, ricas e pobres, viúvas e solteiras, igualadas na necessidade de vender a única coisa que têm (o corpo) para conseguir comida. É evidente que é traumático. Outra situação, mais nebulosa, é a da mulher que aceita o novo estado de coisas e se mistura com o vencedor, escolhendo tornar-se sua manteúda em vez de esposa de um compatriota derrotado.

Assim, na II Guerra, a Europa assistiu aos homens alemães tomando as francesas, as gregas, as belgas etc., para em seguida assistir aos russos, americanos e ingleses tomando as alemãs. Assistiu às judias fugindo com a roupa do corpo e vendendo o que tinham em seus novos países. Depois do fim da guerra, as francesas que ficaram com os alemães foram publicamente humilhadas e tratadas como prostitutas repugnantes.

Penso que o amour libre é um meio de expurgar a pecha da prostituição. No pós-guerra, as francesas poderiam jurar de pés juntos que só fizeram por prazer, sem proveito financeiro. E milhões de mulheres Europa afora puderam adotar o mesmo escudo contra a mesma acusação que lhes poderia ser imputada.

Entre o hedonismo e a paranoia, autonomia

De resto, hedonismo pode ser uma conduta natural de quem crê no colapso iminente. Que fez parte da descendência desses fugidos da II Guerra? Prepara-se para o próximo colapso, a III Guerra Mundial tida por iminente. Quem pegou a II depois de pegar a I tem certeza de que virá a III. E ensina isso para os filhos, que vão passando de geração em geração.

O temor pode ganhar contornos de paranoia. Um traumatizado já decidiu por sabe deus quais critérios que Garanhuns era o local do mundo aonde o colapso seria menos grave. Depois mudou de ideia e passou a ser uma área do interior de São Paulo. Sandor Lernard, o grande humanista que fugiu do campo de concentração e envelheceu no Brasil, achava que esse lugar era o Vale do Itajaí. São todos áreas rurais, onde se pode ser o esquisitão da sustentabilidade, o primeiro a viver em ambiente rural após gerações de ancestrais urbanos. Pode-se apontar também o surgimento de um moralismo alimentar, fetiche com orgânico e dietas vegetarianas.

Last, but not least, nesse perfil há o hábito de os homens também saberem cozinhar. Quem olhe de fora vai achar que é fruto de considerações sobre “papéis de gênero”, mas é que só uma sociedade com estabilidade pode produzir homens incapazes de fritar um ovo. Um homem assim tem que ter ou uma família sólida (com mãe ou mulher cozinhando), ou uma renda sólida (pagando sempre uma cozinheira) ou um mercado sólido (comprando comida pronta). São três coisas consideradas conforto numa situação de colapso. Se o brasileiro olha para quem cozinha como um abnegado fazendo as tarefas de alguém humilde, é porque nem passa pela cabeça a situação de colapso.

Ao cabo, se o medo do colapso preparou os homens para não precisarem das mulheres e as mulheres para precisarem dos homens, o casamento não é mais algo natural. Porque mira-se a autonomia, em vez do amparo mútuo.

E o hedonismo também é uma consequência plausível desse medo do colapso. Se o mundo vai acabar, que o mundo se esbalde antes.

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