Professores participam de manifestação contra a volta das aulas presenciais.| Foto: Fotos Públicas
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Um tema pouco abordado por professores universitários é o do desemprego dos seus alunos acadêmicos. Antes da gestão Haddad no Ministério da Educação, a universidade pública brasileira era uma pequena malha de cacicados locais muito bem financiada e não produzia mais acadêmicos do que era capaz de absorver. Se esses acadêmicos eram bons ou não, é uma outra história; o fato é que não existia a figura do doutor desempregado. Depois de Haddad, o Brasil se tornou uma espécie de Cuba superlativa: naquela ilha, os taxistas têm diploma de ensino superior; neste país continental, os motoristas de Uber têm doutorado.

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O assunto da gestão Haddad, com seu Reuni, fica para uma próxima. Por ora, tomemos o simples dado de que o Brasil tem uma pós-graduação inchada, que produz muito mais acadêmicos do que os departamentos são capazes de receber. Já expliquei como é a vida de jovem acadêmico aqui.

EAD dispensa professor

Um potencial beneficiário da expansão da pós-graduação pública, em tese, seriam as faculdades privadas; afinal, mão de obra qualificada é sempre bem-vinda para compor quadros docentes respeitáveis e abrilhantar o nome da instituição. Mas o leitor pode imaginar algumas de razões para eu escrever “em tese”: a qualidade dos egressos de muitas pós deixar a desejar, de modo que mais valha pegar um profissional experiente para ensinar do que um imberbe cheio de diplomas. Além disso, muitas instituições privadas serem do gênero “pagou-passou”, totalmente despreocupadas com o nome da instituição ou sua qualidade. Uma outra razão bem importante, porém, é o tele-ensino.

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Vejam a situação de um professor de filosofia que não passou num concurso. Introdução à Filosofia é uma disciplina muito comum em currículos do ensino superior, e sempre está presente em cursos públicos e privados de Direito. Ética, Estética, Lógica e Filosofia da História são outras disciplinas que constam em currículos de cursos com bastante demanda no ensino superior e que, em tese, são ministradas pelo professor formado em filosofia. Assim, seria de supor que todas as privadas tivessem espaço para receber um professor de filosofia.

Nos meus tempos de academia, conheci um doutorando que ficava exatamente com essa função. Já pela experiência dele, via-se que a existência de várias instituições privadas não implicava, de modo algum, a contratação de vários professores: ele zanzava por Salvador pulando de faculdade em faculdade para dar aulas a várias turmas lotadas, beirando os cem alunos. Vale destacar também que era um senhor paternal de meia-idade, muito bonachão e exímio contador de causos. Ele dividia o mercado das particulares não com outros acadêmicos, senão com professores de filosofia que não tinham metade do seu conhecimento e empenho em aprender. Ou seja, por mais que ele fosse um pesquisador, a razão da sua contratação era a habilidade de showman que os cursinhos pré-vestibulares demandam para manter os adolescentes entretidos.

Quando fui pedir a ele conselhos sobre locais para deixar currículo, eis que ele tinha ido do inferno ao céu em pouco tempo, sendo que o resultado era não haver lugar nenhum para eu deixar currículo. O céu era um só, na sua perspectiva: enfim passara num concurso. Teria que mudar de estado e deixar o contato com família e amigos para trás, mas há muito o céu dos acadêmicos deixara de incluir a escolha do local onde morar. E o inferno era o seguinte: passara alguma lei nova que  permitia a oferta de disciplinas na modalidade EAD em cursos presenciais, de modo que ele mesmo foi contratado para gravar várias videoaulas e dispensado. Depois dele, o dilúvio. Não há mais espaço para um professor viver dando aulas de filosofia naquelas instituições particulares.

Foi assim que descobri que EAD era mesmo igual ao vetusto curso por correspondência, em que a pessoa fica em casa recebendo material previamente preparado. Aí a instituição contrata um anônimo qualquer para corrigir provas ou ficar de monitor, tirando dúvidas.

Isso está longe de ser particularidade do Brasil. Viralizou nas redes há pouco tempo a história de um aluno no Canadá que se entusiasmara com as aulas online de um professor de História da Arte ficara frustrado ao descobrir que o professor estava morto havia mais de um ano.

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Novidades tecnológicas

A ideia de ter aulas com os mortos é, por si só, estupefaciente e maravilhosa. Quantos monges medievais não venderiam a alma ao diabo para poder ter aulas com Aristóteles? E se pudéssemos ter aulas com os sábios de Alexandria cujos livros foram incinerados? Jogando um balde de água fria nos nossos devaneios, há o fato de os mortos continuarem sem responder. O que se pode fazer com os vídeos, hoje, é o mesmo que se podia fazer com a escrita, desde a Antiguidade: guardar uma mensagem e revivê-la em privado. Se não conjuraremos o espírito de Aristóteles para que ele ministre aulas, havemos de nos contentar em abrir seus livros e reviver as palavras que um telefone sem fio milenar reza terem sido escritas por ele.

Aristóteles e devaneios à parte, assistimos hoje aos impactos que a revolução das comunicações tem sobre o ensino. Se o meu ex-colega morresse, ninguém avisaria os ex-empregadores em outro estado e os alunos continuariam assistindo às suas aulas. Mas se ele morresse e avisassem, como isso melhoraria as coisas? Queremos um mundo em que um funcionário de RH fica empenhado em deletar aulas dos professores quando eles morrem? O rapaz do Canadá não ficou triste por ter assistido a aulas com um morto, e sim porque aquele cujas aulas eram tão boas estava inacessível por causa da morte – e a universidade nem se dera ao trabalho de avisar.

Ter aula com os recém-mortos é tão inovador quanto ter aulas com professores de primeira do mundo desenvolvido. Para isso, basta saber inglês e ter Internet, sendo que com Internet e tempo disponível um jovem aprende inglês sozinho.

Se há vinte anos o economista da Unicamp repetia seu desenvolvimentismo como fina flor da teoria econômica, hoje o aluno de economia tem acesso a todo o debate dos economistas sérios. E na psicologia? O ensino superior estatal brasileiro está congelado lá nos anos 1970 e raramente fala de algo muito mais novo do que Skinner. Nada de psicologia evolucionista, nada de terapias mais novas, como TCC: psicologia amiúde é psicanálise e behaviorismo. Mas qualquer aluno de psicologia tem acesso a centros sérios do mundo desenvolvido. Em várias áreas, os alunos brasileiros, com Internet, percebem que seus professores estão cobertos de teia de aranha.

Mas e o emprego?

Ao que parece, o professor canadense morreu, não foi substituído e suas aulas continuaram lá como a luz de uma estrela distante que já se apagou. A universidade tem um salário a menos para pagar. Quanto ao meu ex-colega, se ele não tivesse dado um golpe de sorte e passado num concurso, teria ficado simplesmente desempregado, por melhores que fossem suas aulas. Essa é uma condição sem igual para a maioria das profissões liberais. Quantos profissionais podem ter igual valor estando vivo ou morto? Só o artista. Agora, é possível os professores terem a sina igual à de Van Gogh: viver na miséria e gerar rios de dinheiro post mortem.

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A questão do emprego, nesse cenário, é uma incógnita. Nessa situação, sindicatos docentes que estivessem interessados no futuro de sua profissão deveriam empenhar seus esforços em sentido contrário ao EAD. Mas, porém, contudo, todavia, o que vemos é estarem os sindicalistas interessados no futuro de suas próprias pessoas. Num futuro bem imediato, nos próximos meses; afinal, os sindicatos docentes fortes são os dos professores concursados.

Que quer um sindicalista concursado? Transformar a pandemia em férias pelo máximo de tempo possível e ficar sem pôr os pés no local de trabalho o máximo de tempo possível. Assim, eles adotam o EAD, dizem – com razão – que os alunos pobres têm dificuldade com o ensino online (é tudo com o pacote de dado no celular) e por isso deixam a universidade funcionando em ritmo devagar, com aulas facultativas (ou seja, para quem tem computador e wi-fi em casa). Como só uns poucos professores bastam para dar essas aulas, os sindicalistas jogam o teletrabalho no colo dos novatos do departamento e vão curtir essas férias que já duram mais de um ano.

Para piorar, o mesmo problema é transplantado para o ensino básico, no qual não existia essa possibilidade de as escolas particulares ofertarem aulas gravadas. Os sindicatos docentes escolares também querem ficar em casa e estimular o teletrabalho – que é facilmente confundido com gravação de aula. Como as escolas privadas estão sofrendo com o fechamento da economia, é uma questão de tempo até surgir a demanda pela oferta de aulas gravadas, cortando assim o custo do professor.

O futuro da profissão docente é um mistério e os sindicatos fazem tudo para extingui-la.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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