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Em conformidade com estereótipos, entrei em 2022 aprendendo a reconhecer tiro de fuzil. Coisas do Rio de Janeiro. Antes disso, eu julgava que a área de milícia estava muito melhor do que a Zona Sul nesse quesito. Quando uma amiga minha moradora de Copacabana disse escutar de casa os tiros da favela, comentei que em área dominada pela milícia lá em Jacarepaguá não tinha nada disso. A minha amiga respondeu que ela fazia questão de conforto.
Pouco depois, um segurança à paisana do café onde estávamos sai para bater numa cracuda que tinha entrado lá. Isto em Ipanema. As atendentes explicavam que a cracuda era uma reincidente e tinha quebrado todo e cada vaso de planta do café. Já expulsa, a cracuda desdentada gritava a plenos pulmões contra o segurança cariocão de blusa florida que a imobilizava.
“Que conforto?!”, perguntei aos meus botões, enquanto olhava curiosa o barraco na calçada. Os passantes não se detinham; talvez estivessem acostumados. A minha amiga também não estava interessada. Eu nunca vi disso nem na rua dos cabarés em Cachoeira, na Bahia. Também não vi isso em área de milícia de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Eu é que não vou reclamar do segurança: ruim com ele, pior sem ele. Em Jacarepaguá, ruim com a milícia, pior sem a milícia.
E na pobre Cachoeira, com seu IDH “médio” de 0,647 (contra o IDH “alto” de 0,799 do Rio de Janeiro), não tem milícia nem polícia, mas não tem disso. Os cracudos de lá são pedintes humildes; não têm esse comportamento agressivo dos cracudos das metrópoles. O Rio é superior em IDH e conforto. O IDH é medido com base em dinheiro, escolaridade e expectativa de vida. Eu não entendo direito como o pessoal das metrópoles julga o que é conforto, mas suspeito que confundam com preço. Se é bom e confortável, só pode ser caro; se é caro, só pode ser bom e confortável. Conforto para mim inclui não ter cracudo na porta de casa fazendo barraco. Para eles, deve incluir o gasto com seguranças para dar safanões nos cracudos, bem como gasto com carro para não ser importunado por trombadinhas.
Por isso não fazem caminhadas quotidianas, então têm que ter mais gastos para bancar academia de ginástica ou viagens para fazer trilhas ao ar livre. Não sei se há academias de ginástica em Cachoeira; suspeito que não. Não tem ônibus urbano, nem shopping, nem iFood, nem Uber. Faço tudo a pé, sem engarrafamento, sem medo de trombadinhas e cracudos, e chamo isso de conforto. Essa mentalidade das metrópoles é igualzinha à de tecnocrata.
Como eu sou uma obscurantista anticiência de extrema direita, creio que o índice de desenvolvimento humano (sic) deveria incluir o não-uso de drogas ilícitas ou psiquiátricas. Como no IDH entram expectativa de vida, dinheiro e estudo, daí resulta que se você tiver uma vida modesta e equilibrada numa propriedade rural, seu “desenvolvimento humano” é inferior ao de um cheirador diplomado que trabalha muito, ganha muito, gasta muito com cocaína, tem mil transtornos psiquiátricos e não vive sem Rivotril.
Cá com meus botões, penso que os cracudos fazendo malcriação na rua são a parte mais visível de uma decisão coletiva de viver chapado gastando dinheiro. Tem o careta de classe média que faz isso com Rivotril, tem o endinheirado que faz isso com cocaína pura e tem o cracudo – às vezes um ex-classe média usuário de Rivotril e um ex-rico cheirador. Mas eu só posso achar, já que não disponho de meios para testar minha hipótese de que a presença visível de cracudos agressivos está atrelada ao uso de Rivotril pela classe média numa mesma cidade.
Por outro lado, é uma trivialidade elementar a associação entre a presença de cheiradores entre os endinheirados e os cracudos fazendo escândalo. Afinal, o dinheiro de ambos os grupos move a mesma instituição empresarial criminosa. Se não houvesse cheirador nos anos 70, não haveria narcotráfico. Se não houvesse narcotráfico (e se Brizola não tivesse tirado a polícia das favelas), não haveria milícia. Quem tanto reclama da milícia sem reclamar do tráfico bem poderia parar de cheirar.
Metrô seria bom no Rio das Pedras
Voltemos aos confortos de Jacarepaguá versus Ipanema. Jacarepaguá fica na Zona Oeste do Rio de Janeiro, que, tirando a parte cafona de nouveaux riches que é a Barra, está mais para Faroeste mesmo. No caso de Jacarepaguá em particular, antes havia uma porção de condomínios de casas e prédios, separados por muito verde. A população da área cresceu com a migração de paraibanos e cearenses. As favelas, planas, foram circundado e insulando os condomínios. Daí resulta um baita engarrafamento.
Antes havia, por exemplo, uma bucólica Estrada Velha de Jacarepaguá, de pista única, e às suas margens aparece uma favelas como o Rio das Pedras, com casas construídas pelos próprios moradores, pegadas umas às outras. Antes de a milícia começar a fazer prédios, os próprios moradores já iam acrescentando pavimentos às casas. Existe então uma área nobre, que é a que dá para o logradouro já existente – a própria Estrada Velha de Jacarepaguá – , e uma montanha de predinhos de tijolo exposto, uns equilibrados nos outros, às vezes separados por umas ruelas claustrofóbicas. A parte nobre da favela tem um comércio pujante. Na pista única, volta e meia há caminhonetes fazendo carga e descarga, ônibus quebram, caminhões de lixo se travam, o motorista resolve pôr o papo em dia com o amigo pedestre que ele viu da janela. O trânsito da favela é imprevisível, e a classe média pega.
Assim, meditando sobre os confortos da Zona Sul em comparação à Zona Oeste (excetuada a Barra), pensei no metrô – um verdadeiro feitiço antiengarrafamento. Mas se os endinheirados usam, é outra história. Afinal, “ter conforto” é andar de carro, mesmo que engarrafado. Andar de carro é mais caro que pegar um metrô, então ficar engarrafado dentro do carro é melhor que andar de metrô. Etc.
De todo modo, é certo que a vida na Zona Oeste melhoraria bastante caso o metrô fosse além da Barra. Para um morador de Jacarepaguá chegar ao seu bairro saindo do metrô, encontrará uma quantidade abundante de ônibus e vans, que irão cortar as favelas da Muzema e da Vila da Paz, com engarrafamentos iguais ao do Rio das Pedras.
Todo carioca sabe do conflito de interesses que há no setor de transportes do Rio de Janeiro, e a “máfia dos transportes” era pauta comum no noticiário local. O nome de Jacob Barata Filho se tornou tristemente notório; ganhou até verbete na Wikipédia. Esse tipo de empresário tem todo o interesse em fazer lobby contra a expansão do metrô rumo à Zona Oeste.
Há também as vans, que todo carioca da Zona Oeste sabia serem de milicianos. (Procurando notícias sobre o assunto, vemos que o tráfico resolveu imitá-los.) Van no Rio de Janeiro aceita cartãozinho de ônibus e é regular – o que quer dizer somente que a milícia contou com o apoio do Estado na regularização de uma de suas receitas. Por isso as milícias são outro grupo de interesse que não vai querer, em hipótese alguma, que o metrô adentre a Zona Oeste.
No fim das contas, graças aos cheiradores da Zona Sul e a Brizola, a Zona Oeste perde muito tempo com engarrafamentos e gasta dinheiro com vans para chegar até o metrô.
Associação com o tráfico
Como os endinheirados não param de cheirar, era mesmo de se esperar que os traficantes tivessem um poder econômico pesado o bastante para comprar a milícia. Notem que o miliciano extraía sua riqueza da população dominada. O traficante, não: ele domina a população da favela com o dinheiro da população rica. Bem ou mal, o miliciano tinha de considerar as vontades clientela local. O traficante, por outro lado, pode atuar nas favelas como um soldado estrangeiro durante uma guerra.
Há algum tempo se fala no fenômeno de os milicianos venderem seus serviços de proteção aos traficantes. Eu ainda não tinha observado isso em primeira mão; o Rio das Pedras era bastante estável. Mas eis que começou a correr o bochicho que de os milicianos venderam um pedacinho da parte pobre aos traficantes, que agora têm uma boca ali. E eis que sai na TV a morte de uma criança no Rio das Pedras: o miliciano agiu igualzinho aos traficantes quando a polícia apareceu e atirou a esmo, sem consideração nenhuma pela vida dos seus “súditos”. Uma bala atravessou o peito de uma criança.
E no condomínio regular vizinho, traficantes agora são admitidos. Com a pandemia, as pessoas começaram a fazer um extra alugando casas. E da casa alugada saiu uma rajada de tiros de fuzil para o alto, junto com os fogos. Uma autêntica experiência carioca. Da casa do miliciano que entra e sai da cadeia, por outro lado, saíram só fogos. E nada de música alta.
Talvez o povo do condomínio deva vender a experiência carioca a uspianos endinheirados. Assim a renda local cresce e o IDH aumenta.