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Bruna Frascolla

Bruna Frascolla

Com ou sem açúcar: uma sociologia do cafezinho

A predileção do brasileiro por por café açucarado ou sem açúcar revela muito das nossas aspirações políticas. (Foto: Pixabay)

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Algumas situações me lembram o ato da minha avó ao me ver tomando café preto, sabendo que não boto açúcar, nem adoçante. Ela olhava, parava e exclamava, com muita dramaticidade: “COITADA!”

Os brasileiros devem tomar café à vontade desde o século XIX, quando o café se torna a grande commodity do Brasil. Antes disso, qual era a grande commodity? O açúcar. Daí não ser de admirar que os brasileiros carreguem a mão no açúcar e que tenham adotado o hábito de tomar café misturando-o ao açúcar. Isto depois de passá-lo por um arcaico coador de pano, que pode ser confeccionado em qualquer zona rural.

No século XIX, o expresso nem existia. Como o café só se massificou na Europa no séc. XX e a imigração para o Sul do Brasil começou antes disso, o colono louro que fala dialeto alemão toma um café igual ao do caboclo do Cerrado e ao do negro do Recôncavo. Todos aprenderam a tomar café aqui. Assim, é provável que tenhamos um consenso pelo Brasil rural de Norte a Sul: o cafezinho é uma bebida doce.

Tomar café amargo é coisa de centro urbano, muito provavelmente introduzida por imigrantes italianos do século XX. Nas grandes cidades, o coador arcaico foi ofuscado pelas máquinas sofisticadas, inventadas por uma Europa já industrial. Café expresso e amargo é chique e moderno. Juntando-se a isso o fato de que hoje, nas grandes cidades, todo mundo está às voltas com a balança, cortar o açúcar do cafezinho se torna desejável por razões de saúde ou, o que é mil vezes mais comum, por uma questão de beleza, para “perder a barriga”.

Rascunhemos um corte urbano vs. rural que vale para todo o Brasil: no ambiente rural, nem passa pelas cogitações deixar de adoçar o café; no ambiente urbano, os hábitos tradicionais do país são recalcados para aderir ao gosto trazido pelo imigrante europeu da era industrial, subitamente tido por mais chique e mais evoluído. Frise-se que esse modelo europeu industrial encheu os olhos dos brasileiros até mesmo quando era nos Estados Unidos, e não na Europa, que a elite política buscava inspiração. Nos Estados Unidos se bebe café frio e aguado, mas essa nunca foi a meta do povo metido a chique.

Quanto ao meu café, é que essas foi uma das poucas coisas em que aderi aos parentes com pé no Eixo, que têm bem essa cabeça de europeu industrial que o brasileiro complexado fica babando e tentando imitar, mas não entende. Para eles, e para mim, café é uma bebida amarga e forte. Tomo todo dia contente. E ficava exasperada quando vinha minha avó dizer “COITADA!”. Tem coisa mais embaraçosa do que gente sentindo pena de você quando você está feliz?

Minha proposta para o IBGE

Se eu mandasse no IBGE, colocaria a seguinte pergunta: “O que você acha de café sem açúcar? Não vale botar adoçante”. As opções seriam:

A. MISERICÓRDIA!! (Versão gospel: TAMARRADO!!)

B. Eu quero tomar assim, pra perder a barriga! Segunda-feira eu começo.

C. Só gosto assim.

No Nordeste, descontadas as capitais, a resposta massiva seria A. Nos centros urbanos Brasil afora, daria B nos apartamentos, B entre as mulheres da favela e A entre os homens da favela. Menos de 1% responderia C. O IBGE descobriria tratar-se de gringos residentes no país, filhos ou netos de europeus que vieram por volta da Segunda Guerra Mundial (feito eu), os gourmets e os farialimers que mudaram o mindset.

E, se eu mandasse no IBGE, usaria o mapa do cafezinho para traçar perfis de mentalidades. Os moradores das áreas com predomínio de B leriam o meu último texto e ficariam com pena do povo da roça. Como podem viver trabalhando pela subsistência? Quanta pobreza! Essas pessoas saem de casa de madrugada para não acumular nada?

Nisso eu me lembro da minha avó, que olhava para uma pessoa contente e ficava com dó.

Ao espelho

O brasileiro da resposta A e o da resposta B divergem quanto aos ideais – pois apenas um deles achou que é uma boa ideia imitar o europeu industrial. No entanto, o gosto de ambos é o mesmíssimo, já que mal atravessa a cabeça deles a ideia de que alguém pode tomar o café amargo por prazer. Para ambos, o café gostoso é o café doce. As opiniões discordam, o sentimento concorda.

No quesito cafezinho, o povo da roça está em paz com o próprio paladar: eles tomam café do jeito que gostam e não esquentam a cabeça com a balança porque fazem trabalho braçal. Já o povo da cidade é que tem que criar um cardápio mais frugal para se adaptar a um estilo de vida muito mais sedentário do que os dos seus antepassados roceiros.

Será que o mesmo não vale para objetivos de vida? Talvez falte ao brasileiro urbano um bom espelho.

“Agricultura de subsistência” é uma expressão demonizada pela nossa intelectualidade, acometida por severo complexo de vira-lata. Isso tem a ver com a idealização marxista do industrialismo: Antonio Paim já chamou à atenção que Marx pensava a economia futura como se fosse tudo indústria, sem dar uma palavra sobre agricultura. Enquanto são tratados como coitados os pequenos agricultores, os grandes são demonizados como latifundiários opressores. Não há espaço para a vida rural na cabeça dos mais intelectualizados. Que são urbanos.

Por hoje, deixemos para lá os latifundiários. Vamos apenas pôr o espelho defronte do homem urbano de classe média: para que trabalha, senão para garantir a subsistência da família e bancar alguns pequenos prazeres? Não é um engano supor que todo homem é vidrado em lucro e em produtividade?

Existem indivíduos com excepcional paixão pelo lucro e pelos negócios. Mas não temos motivos para crer que eles sejam os mais numerosos numa sociedade, nem os mais felizes. Creio que as pessoas comuns que não estão numa situação desconfortável podem ser descritas como subsistentes. Uns podem ser felizes assim no campo; outros, felizes na cidade. Fala-se em “agricultura de subsistência”, mas é possível falar também em “advogado de subsistência”, “jornalista de subsistência”, “lojista de subsistência”, “pedreiro de subsistência”, “faxineira de subsistência”, etc.

A vida rural é mais barata do que a vida dos centros urbanos; por isso não é de admirar que o agricultor de subsistência tenha menos dinheiro. Pobreza traz seus problemas já conhecidos, dentre os quais eu destacaria falta de cuidado médico-hospitalar. Está frito quem precisar de UTI no SUS, ou então quem precisar acompanhar com regularidade um câncer. (Agora, como a razão entre despesas e receitas em geral importa mais do que o valor absoluto, tanto faz se você ganha um Bolsa Família e gasta uma bagatela para viver plantando mandioca, ou se você mora numa grande metrópole com um padrão de gastos insustentável: de um jeito ou de outro, acaba-se no SUS).

Por outro lado, no ambiente rural ninguém sabe o que é um trans não-binário, de modo que as meninas não acham que castração química ou amputação dos seios são boas ideias. Saúde mental é um problema sério em jovens de ambientes urbanos mais intelectualizados. E não é nada ousado dizer que não precisava ser assim: bastava os brasileiros deixarem de ser trouxas. Em vez de mirarmos o exemplo de países cheio de gente doida, que não conseguem comprar saúde mental com a montanha de dinheiro que têm, deveríamos dar valor à cultura que temos em casa.

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