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Bruna Frascolla

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Soros contra o mestre: a ciência como manipulação

Popper já velhinho, em 1994, quando esteve em Praga para receber uma honraria. (Foto: Arnošt Pasler/Wikicommons)

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Vamos à teoria filosófica que levou Soros a ganhar dinheiro. Segundo ele, a economia ensinada nas faculdades costuma considerar que o mercado tende ao equilíbrio, repetindo uma cosmovisão newtoniana na qual a natureza está em perfeito equilíbrio, regida por leis intrínsecas (já tratei da importância que a física newtoniana teve para o surgimento do liberalismo econômico, com os fisiocratas). A verdade, porém, é que a economia é instável e tende à formação de bolhas. A influência popperiana entra aí: o homem se mata de tentar conhecer a Verdade, mas isso é impossível. Assim, as partes do mercado, por mais que tentem ler a realidade, cairão em enganos. A bem da verdade, ninguém do mercado financeiro precisa estudar Popper para concluir que o conhecimento do homem (no caso, do investidor) nunca é perfeito, mas Soros tinha pretensões filosóficas e por isso era valioso um grande filósofo da ciência que respaldasse o seu próprio ceticismo.

Soros vai adiante e investe contra o calcanhar de Aquiles na filosofia política de Popper, que é o caráter excessivamente idealista com o qual ele concebe as intenções humanas. Para isso, Soros começa abordando um problema bem importante da epistemologia que é o da diferença entre as ciências humanas e as ciências da natureza. Esse, por sinal, é um problema ao qual Hayek se dedicou muito, e que o levou a cunhar o utilíssimo conceito de cientificismo (do qual já tratei aqui). Mas enquanto Hayek se empenhava em alcançar a objetividade nas ciências humanas (tentando conhecer objetivamente a subjetividade alheia), Soros cunhou o conceito de “reflexividade”. Como as ciências humanas não lidam com objetos inanimados, as previsões do cientista social afetam a realidade. Isso abala bastante o modo como Popper tratou, por exemplo, o marxismo. Tendo isso em conta, não basta avaliar de modo objetivo se a profecia de Marx se cumpriu no prazo estabelecido ou não; é preciso levar em conta que o fato de Marx ter publicado os seus raciocínios sobre a futura crise do capitalismo levou os homens a agir com base em seus escritos (Soros não fala abertamente da possibilidade de Marx estar certo; do que ele fala bastante é do colapso inerente ao capitalismo da Escola de Chicago). E ao cabo, pouco importa se Marx estava certo ou errado: suas previsões fizeram com que uma legião de fanáticos corresse para fazer a Revolução Comunista (alguns conseguiram) e, ao mesmo tempo, com que os banqueiros corressem atrás deles para financiá-los. Certa ou errada, a previsão de Marx levou à alteração da realidade. Isso quer dizer que a teoria de Marx serviu para manipular a realidade. E uma vez que manipulemos a realidade, a tarefa de conhecê-la será dificultada também, porque agora temos uma variável a mais para estudar, que é a própria profecia, com seus efeitos sobre os homens.

Outra vez, Soros abstraiu um pensamento que deve ser banal para um economista que trabalha no mercado financeiro, já que as bolhas não raro resultam de manipulação da crença dos investidores; e quanto mais manipuladores houver, mais difícil será investir.

Popper, porém, não era um economista; era um nefelibata que lia Parmênides em grego, que se interessava por física teórica e matemática pura, e que chegou a aprender marcenaria para viver como um trabalhador manual quando comunista. Popper até tinha um amigo Nobel em economia, Hayek, mas ele também era um teórico, e um teórico que trabalhou muito avaliando políticas públicas – era amigo e interlocutor de Keynes, por exemplo, do qual discordava muito, mas com o qual dividia o interesse pelos mesmos assuntos macroeconômicos. Hayek não era uma criatura do mercado financeiro anárquico, como Soros. E, de todo modo, Hayek acomodaria a existência da manipulação em sua concepção das ciências humanas, que inclui conhecer as crenças alheias usadas para embasar a ação. O que Hayek não fez, naturalmente, é dar um destaque à manipulação em si mesma como elemento importante das ciências humanas e da transformação social. E é isso que Soros faz.

Assim, se Popper, de um modo um tanto insólito, tratava o homem como um puro ente em busca da verdade, Soros dará um passo também insólito, e diz que a razão humana tem duas funções: a cognitiva e a manipulativa. Cito-o: “O conceito de reflexividade [aplica-se] unicamente a situações em que haja participantes pensantes. Os pensamentos desses participantes atendem a duas funções: uma é compreender o mundo em que vivemos, a qual denomino função cognitiva; a outra é mudar a situação em nosso benefício, a qual denomino função participativa ou manipulativa. As duas funções fazem a ligação entre pensamento e realidade, mas em sentidos opostos. Na função cognitiva, supõe-se que a realidade determine os pontos de vista dos participantes; a relação causal dá-se do mundo para a mente. Em comparação, na função manipulativa, a relação causal dá-se da mente para o mundo – as intenções dos participantes exercem efeito sobre o mundo, por assim dizer.” (Uma aula com George Soros, p. 14-15). Ou seja, ao pensar, ou bem o homem está em busca do conhecimento, ou da manipulação. Se Popper imaginava um homem angelical demais, Soros imagina-o demoníaco. Isso diz muito sobre a índole de Soros, e é de admirar que alguém publique tamanho sincericídio.

Pois bem: Soros vem do mercado financeiro, e foi ao mercado financeiro que ele aplicou a sua teoria primeiro. Um conceito interessante é o de “falácias férteis – interpretações da realidade que, embora distorcidas, produzem resultados que reforçam a distorção” (p. 20). Tais falácias têm tudo a ver com a formação de bolhas financeiras. Digamos que eu invente uma mentira e tenha êxito de convencer os outros de que tal coisa é um investimento maravilhoso. Mais e mais pessoas vão investir, e assim o valor dessa coisa vai subindo, porque se “todo o mundo” está comprando, essa crença é reforçada. No entanto, o meu domínio sobre a realidade, ao menos nesse caso, não é pleno, pois a verdade é que tal coisa não era tão boa quanto você disse. Uma hora a realidade se impõe, e é aí que estoura a bolha. Soros fez um gráfico mostrando como ganhar dinheiro com ela:

Notem que, se estivermos mais próximos da verdade que a maioria dos agentes, iremos lucrar com a bolha. Até certo ponto, enquanto as pessoas compram as ações, é um bom negócio comprá-las pelo mero fato de outras pessoas estarem fazendo isso. Quando a realidade se impõe, porém, as ações não enganam mais ninguém e os preços despencam.

Soros pretende que essa dinâmica não seja uma peculiaridade do mercado financeiro, mas sim das crenças humanas em geral. Tal como alguns manipulam os mercados financeiros quando lançam uma informação, os cientistas sociais manipulam a sociedade quando lançam uma teoria. Isso faz com que seja muito mais difícil conhecer a realidade, e haveria nas humanas um princípio da incerteza análogo ao que Heisenberg descobriu na física (grosso modo: a observação interfere na medição do objeto). No entanto, diz ele, “a descoberta do princípio da incerteza na física, de Werner Heisenberg, não alterou um mínimo que seja o comportamento das partículas quânticas, mas as teorias sociais – seja o marxismo, o fundamentalismo de mercado ou a teoria da reflexividade – podem afetar o tema a que se referem. É de se supor que o método científico seja devotado à busca da verdade. O princípio da incerteza, de Heisenberg, não interfere nesse postulado, mas, sim, a reflexividade das teorias sociais. Por que as ciências sociais deveriam restringir-se a estudar passivamente os fenômenos sociais quando podem ser usadas para transformar ativamente o estado das coisas?” (p. 30) Soros concorda então com aquela frase do jovem Marx que frequentava os muros das universidades, segundo a qual os filósofos (no caso, os teóricos sociais) já interpretaram demais o mundo e deveriam mudá-lo. No entanto, para Soros não deve haver revolução alguma. O mundo é um grande mercado de ideias e crenças; cabe ao cientista social manipulá-lo. Isso lembra mais Platão, com sua "nobre mentira", do que Marx. E Popper odiava os dois; odiava Platão sobretudo por sua defesa da mentira, como argumenta n'A sociedade aberta e seus inimigos.

Vejamos as falácias férteis no âmbito da filosofia. Soros cita duas como opostas: a do iluminismo e a do pós-modernismo. A primeira presume que o homem seja muito mais racional do que de fato é. Surgiu numa época de grande avanço científico; por isso, parecia verdadeira o suficiente para que os homens acreditassem nela e fossem bem sucedidos em várias empreitadas (sobretudo as científicas). Para Soros, “o Iluminismo interpretou equivocadamente a realidade ao introduzir uma dicotomia entre pensamento e realidade que concederia à razão obter o conhecimento perfeito” (p. 70). Mas aprendemos com Soros sobre a reflexividade, segundo a qual, nas humanas a realidade é pensamento também. Assim, considera que Popper caiu na falácia iluminista ao propor o seu ideal da sociedade aberta. Para Soros, então, não é que Popper errou por supor uma sociedade de cientistas: Popper errou por supor uma sociedade de cientistas sem considerar a reflexividade, caindo assim na falácia iluminista. “Nem o elegante modelo popperiano de método científico, nem a teoria econômica reconheceram a reflexividade” (p. 71), queixa-se.

Mas essa falácia fértil era fértil por conter “um fragmento de conhecimento”. Por isso “a dicotomia entre razão e realidade funcionou muito bem no que respeita ao estudo dos fenômenos naturais, mas foi enganosa no estudo das questões humanas. Como as bolhas para os mercados financeiros, assim estão as falácias férteis para outros campos da história” (p. 71). (Para Soros, o mercado financeiro, marcado por contingências, pertence à disciplina de História, e não a alguma outra mais abstrata.)

Uma vez estourada a bolha do iluminismo, veio a do pós-modernismo, que fica para a próxima.

Terminemos por hoje frisando que a crítica de Soros à sociedade aberta de Popper não é simplesmente que ele usou uma concepção da natureza humana assaz ingênua, senão que errou em teoria da ciência na medida em que desprezou a função manipulativa da razão humana. “Até eu”, queixa-se ele, “que descobri – ou inventei – a reflexividade nos mercados financeiros, fui incapaz de reconhecer que o conceito popperiano de sociedade aberta baseava-se na premissa velada de que a função cognitiva tem precedência sobre a função manipulativa – que estamos em busca da verdade, e não apenas tentando manipular as pessoas para que acreditem naquilo que queremos que acreditem” (p. 71-72). E manipular, como vimos, é um papel das ciências sociais.

Com a falácia fértil do pós-modernismo, entra em campo o poder da propaganda.

Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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