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Bruna Frascolla

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Soros contra o mestre: a função manipulativa da Open Society

O bilionário George Soros, financiador de várias pautas de esquerda nos Estados Unidos e em outros países. (Foto: Mario Tama/Getty Images/AFP)

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Como vimos, George Soros acredita que a razão humana tem duas funções: a cognitiva e a manipulativa. Somando-se isto ao fato de que as teorias sociais têm influência sobre o homem (fato que ele chama de “reflexividade”), Soros defende que a ciência social deve fazer uso da função manipulativa a fim de mudar o mundo, em vez de apenas estudá-lo. Para completar, defende que, em razão disso, o critério falseamento de Popper não pode ser aplicado com tanto rigor às teorias sociais.

Uma consequência danosa disso é a preferência pelas teorias catastrofistas. Se faço uma teoria sobre um comportamento humano da qual se deduz uma catástrofe iminente, graças à reflexividade eu motivo os homens a mudarem tal comportamento. Com a mudança do ambiente, dificulta-se o desmentido da minha teoria. Vimos isso muito bem na pandemia, com os famigerados “divulgadores de ciência” usando modelagem fuleira para prever milhões de mortos “se nada fosse feito” e depois atribuírem a si próprios a salvação de milhões de vidas por meio da conscientização. Já conhecíamos isso com o alarmismo climático e com o neomalthusianismo. Ainda assim, a boa ciência (que por enquanto ainda existe, mesmo sem holofotes) consegue criticar as medidas adotadas na pandemia, bem como o alarmismo climático e o neomalthusianismo.

Soros falava das falácias férteis, que têm o potencial de reforçar o erro. Vimos no último texto que ele aponta, como uma falácia fértil das ciências humanas, o iluminismo. A que peca em sentido oposto, é a do pós-modenismo. Se o iluminismo peca por considerar apenas a função cognitiva do homem, ignorando ou negando a função manipulativa, o pós-modernismo nega a função cognitiva (afinal, nada pode ser conhecido de modo objetivo), e considera que só há função manipulativa. É como se o mundo real não existisse de modo independente de nós, e o homem pudesse criar a realidade sozinho.

A visão de mundo pós-moderna, segundo Soros, “deu cria a uma abordagem amoral, pragmática da política, que pode ser resumida do seguinte modo: agora que descobrimos que a realidade pode ser manipulada, […] por que não nos dedicarmos diretamente à manipulação? Por que não buscarmos o poder, em vez da verdade?” (p. 77) Dado o seu paralelismo entre mercado financeiro e sociedade, eu esperava que a resposta fosse análoga à sua abordagem das bolhas financeiras, na qual a realidade termina por se impor. Mas a resposta é que “ainda que a realidade possa ser manipulada, o resultado está fadado a divergir das intenções do manipulador. Essa divergência deve ser reduzida a um mínimo, coisa que só se consegue com melhor compreensão da realidade. Essa linha de raciocínio é que me fez introduzir o compromisso com a busca da verdade como requisito para a sociedade aberta” (p. 78).

Uma parte desse raciocínio lembra a obra A sociedade aberta e os seus inimigos, de Popper, na qual lança um argumento contra o uso de teorias da conspiração pelas teorias sociais, a saber: as conspirações existem aos montes, mas dificilmente os conspiradores têm sucesso, porque o mundo é complexo demais para ser previsto por conspirações megalomaníacas. Mesmo quando os conspiradores têm sucesso na tomada do poder, nem assim conseguem controlar a situação da maneira como imaginavam. Esse raciocínio amiúde é usado para debochar de quem aponta conspirações, mas Popper usava os nazistas como exemplo real de conspiradores que conseguiram tomar o poder (e nem assim controlaram tanto a situação quanto gostariam). O seu argumento é, como de costume, epistemológico: do fato de as conspirações existirem, não se segue que possamos explicar tudo o que se passa na sociedade por meio delas. O nazismo tomou conta da Alemanha, mas nem tudo o que acontecia na Alemanha podia ser explicado pelo nazismo durante a vigência do nazismo. Os nazistas não eram oniscientes, por isso não podiam ser onipotentes.

Se Soros dividiu a razão entre cognitiva e manipulativa, podemos dizer às claras que, enquanto o discreto INET tem uma função cognitiva, a Open Society Foundations tem função manipulativa.

E parece que é o que Soros deseja ser. Ele leu o argumento epistemológico do mestre sobre conspirações como: "Você pode conspirar à vontade, mas uma hora as coisas vão sair do seu controle porque você não domina, nem pode dominar, toda a verdade." Por isso, nada mais natural que criar instituições para buscar a verdade. Com esse fito, Soros criou o INET (sigla em inglês de Instituto pelo Novo Pensamento Econômico), órgão puramente teórico e independente da Open Society Foundations, a qual é a sua super-ONG de ativismo.

Daí depreendemos que Soros quer manipular a realidade o máximo possível por meio das ciências sociais. Mas não só delas. Afinal, ele criou a Open Society com o fito declarado de proteger “o interesse público contra a intromissão de interesses privados” (p. 116). A autoimagem de Soros apresentada ao leitor é a de um ricaço que separa os negócios da filantropia, e divide a filantropia entre a busca do conhecimento, na qual ele não interfere, e na ação em “defesa do interesse público”. Ora, se ele dividiu a razão entre cognitiva e manipulativa, podemos dizer às claras que, enquanto o discreto INET tem uma função cognitiva, a Open Society Foundations tem função manipulativa. E isso é muito grave porque a super-ONG manipuladora de Soros financia universidades brasileiras, tais como a FGV e núcleos de universidades públicas, como mostrou esta matéria da Gazeta do Povo. Ou seja: ao mesmo tempo que inunda nossas instituições de conhecimento com dinheiro, transformando-as em centros de ativismo, Soros mantém um centro de produção de conhecimento privadíssimo em Nova Iorque e financia Cambridge com ele. Por que a universidade inglesa merece dinheiro do INET para produzir conhecimento, e as brasileiras merecem receber dinheiro da Open Society para produzir manipulação?

Se Soros não fosse o dono da máquina de propaganda, alguém poderia chamá-lo de racista, pois o povo brasileiro, que é negro quando convém, recebe manipulação, enquanto que o povo inglês recebe produção de conhecimento.

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Mencionei propaganda, vamos à descrição que Soros dá da realidade. Segundo conta, o momento em que ele resolveu dar atenção ao pós-modernismo foi a reeleição de Bush, ocorrida após ser pego na mentira quanto ao Iraque e lançar os EUA numa montanha de prejuízos de toda ordem. Ao contrário das bolhas financeiras, nesse caso a realidade não se impôs. Por quê? Segundo ele, por causa da força da propaganda: “As pessoas não estão muito interessadas na busca da verdade. Foram condicionadas por técnicas cada vez mais sofisticadas de manipulação, ao ponto de não mais se importarem em ser ludibriadas; na verdade, parecem decididamente convidar a isso. As pessoas acabaram acostumadas a receber informações pré-embaladas – daí a influência da propaganda política bem paga. Interessa-lhes mais serem entretidas que informadas – daí a influência de comentaristas populares como Bill O’Reilly e Rush Limbaugh.” (p. 74).

Soros está absolutamente correto quanto a isto: existem pessoas muito interessadas em política de uma maneira nada saudável, e que não tem nada a ver com a busca pela verdade. Atendem antes a alguma pulsão patológica ligada à política, em ambos os lados. (Já escrevi sobre isso, mas convido o leitor a simplesmente passear pelos comentários a este e este texto, onde há a acusação constante de os articulistas “passarem o pano” para o papa). Soros diria que tudo isso é gente que se deixa manipular por propaganda.

Continuemos: “As técnicas de manipulação, desenvolvidas gradualmente ao longo do tempo, tiveram origem na arena comercial do fim do século XIX, quando o empresariado descobriu que podia aumentar as margens de lucro ao distinguir seus produtos com a criação de marcas e a propaganda. Foi o que inspirou as pesquisas sobre as motivações dos consumidores, a análise das mensagens e o uso de grupos de discussão, que puseram em movimento um processo reflexivo que mudou o comportamento do público. A prática levou ao desenvolvimento de uma sociedade de consumo, depois estendendo-se à política e à cultura. Essas tendências solaparam as premissas veladas nas quais se baseavam a economia e a política. A teoria econômica tomava como dadas as condições da demanda e da oferta, e demonstrava o quanto os mercados livres, em condições de perfeita competição, induziriam a uma alocação ideal de recursos; contudo, o formato da curva da demanda não era dado de forma independente, mas sujeito a um processo de manipulação por via da publicidade. A teoria da democracia representativa presumia que os candidatos apresentariam a si mesmos e a seus programas, e o eleitorado escolheria aqueles de sua preferência; não previam que os candidatos viessem a estudar a opinião pública e, depois, dizer o que os eleitores queriam ouvir. Nenhuma dessas teorias levou em conta que a realidade pode ser manipulada” (p. 74 – 75).

Com o capital passeando pelo mundo tornou possível os lobistas comprarem os líderes políticos. Tão logo são eleitos, os líderes traem seus eleitores.

Assim, a propaganda teria corrompido a democracia dos EUA. Essa tese não é peculiar de Soros; podemos vê-la defendida com muita propriedade no premiado documentário O século do ego (2002), da BBC, que enfatiza o uso da psicanálise pelo sobrinho norte-americano de Freud para criar demandas comerciais e eleger candidatos de gigantes como a General Motors. Tese assemelhada está na obra do esquerdista Chris Hedges, que não se pretende original. Jonah Goldberg, de direita, aborda o tema também. E eu mesma, por conta própria, vinha observando que os EUA são um país cuja população é bombardeada por propaganda ideolológico-corporativa há gerações. Nos anos 40, a Planned Parenthood não tinha coragem de defender aborto porque era tabu; em 2022, o partido governista, em meio a uma inflação galopante, escolheu pautar as eleições no direito humano ao aborto, ao casamento gay e a remédios controlados. Soros diz que os EUA estão tão enfeitiçados por propaganda quanto um regime totalitário, e ele está certo. Logo, são um ambiente ótimo para exercer a função manipulativa.

Agora vou tentar resumir o quadro geral do estado de coisas descrito por Soros: os EUA e a Inglaterra capitanearam, desde os anos 70, a desregulação do sistema bancário e a globalização do capital. A crença na desregulação é um erro decorrente da falácia iluminista. Os grandes bancos descobriram que os Estados nacionais não podem deixá-los quebrar, por isso fazem todo tipo de imprudência, certos de que os governos irão financiá-los depois. Além disso, o capital passeando pelo mundo tornou possível os lobistas comprarem os líderes políticos. Tão logo são eleitos, os líderes traem seus eleitores, porque devem sua lealdade aos lobistas que o compraram de maneira corrupta, ou que bancaram as caríssimas eleições. Ao contrário do senso comum liberal, portanto, Soros não crê que a democracia em si mesma é menos sujeita à corrupção que ditaduras. Se antes a democracia servia para dar liberdade de expressão e fiscalizar o governo, agora, com o capital concentrado livre para circular pelo mundo, o povo não consegue mais exercer qualquer tipo de peso em seu próprio país. E não é só a democracia que sofre; a universidade e a medicina também, porque são compradas por lobistas.

A boa notícia (para nós) é que esse estado de coisas é insustentável. Para Soros, estamos assistindo à derrocada de um sistema iniciado com o Acordo de Bretton Woods, na II Guerra, que deu aos EUA o controle monetário global. A derrocada ocorre agora porque o próprio dólar está em crise e os EUA avacalharam a própria moeda nesse sistema capitalista desregulado no qual os bancos têm que ser salvos. Assim, a China, que não aderiu à Escola de Chicago, se manteve um país muito mais estável economicamente. O mundo deixaria de ser unipolar (com os EUA sendo o polo único) e passaria a ser multipolar (o jargão é esse mesmo.).

Uma última palavra sobre Popper, o professor de Soros. Na obra de dois tomos A sociedade aberta e os seus inimigos, um tomo se dedica a Platão e outro a Hegel. Popper odiava Platão por defender a mentira, e odiava Hegel por causa da sua concepção de Fim da História. No último capítulo da orba, Popper argumenta que qualquer doutrina que tente colocar a História como guia moral da humanidade – vício inaugurado por Hegel – cultiva a ética do sucesso: aquele código moral que vigorou “no final” é, ipso facto, o código correto. (Isto é literalmente progressismo: se é mais moderno, é superior e inexorável.) Contra a ética do sucesso, Popper defende a ética cristã.

Popper nega ainda que se possa usar a História como guia moral porque é impossível, para ele, escrever uma História Universal. Ao se fazer isso, fala-se somente de uns poucos; de uma minoria da humanidade. Para uma História ser universal, Popper diz que ela teria de tratar da biografia de cada alma humana – mas ela não trata senão de política e de políticos, um assunto bem sujo e que está longe de atrair o melhor dos homens.

Como cristão (não calvinista), Popper pretende estabelecer que Cristo estava certo mesmo que terminasse na cruz; que o poder temporal de Roma não significava nada para definir certo ou errado; e que mesmo que Roma esmagasse os apóstolos Cristo estava certo. Por isso ele é contra a “ética do sucesso”. E eis como ele descreve o tipo de ética defendida pelos adoradores do sucesso: “Faremos sacrifícios, dizem, mas em consequência obteremos honra e fama. Tornar-nos-emos ‘protagonistas’, heróis no Palco da História; por um pequeno risco, obteremos grandes recompensas. Esta é a duvidosa moralidade de um período em que apenas uma delgada minoria importava e que ninguém dava atenção ao povo comum. É a moralidade daqueles que, sendo aristocratas políticos ou intelectuais, têm o poder de entrar para os compêndios de história. […] O incontável número de homens que são inteiramente dignos quanto esses poucos, ou mais ainda, ficará sempre esquecido.” Popper jamais imaginaria que sua obra seria usada para sacralizar minorias em detrimento do povo comum (amiúde chamado de fascista e até de racista graças à cor da pele), nem para formar militantes que exaltam o "protagonismo".

Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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