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Bruna Frascolla

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Soros contra o mestre: antecedentes e contexto

O jovem George Soros. (Foto: Reprodução/YouTube)

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Eu li um ciclo de palestras de George Soros feitas na sua universidade em Budapeste em 2009, publicadas no Brasil com o título Uma aula com George Soros (Campus, 2010), e quero comentá-lo. Isso tomará um bom tempo porque é preciso contextualizar muita coisa, mas adianto que o projeto de vida confesso e declarado do ricaço húngaro, ex-aluno e admirador de Karl Popper, é ser reconhecido como filósofo.

George Soros batizou sua fundação com o nome de Open Society, isto é, Sociedade Aberta. Ele foi aluno do filósofo Karl Popper na London School of Economics. Popper é melhor conhecido na filosofia por seu sucesso na seara da epistemologia, isto é, da filosofia da ciência. Nem todo o mundo concorda com Popper nos dias de hoje, mas é inegável que ele conseguiu um feito: dar uma caracterização do método científico que fosse aceita pelos grandes cientistas do seu tempo (no mais das vezes, os cientistas modernos não estão nem aí para os filósofos do seu tempo) e categorizar dois importantes movimentos intelectuais (o marxismo e a psicanálise) como pseudociência. Ele voltou sua bateria contra o evolucionismo também, que desde a sua origem traz uma perigosa mistura de ideologia com ciência.

Por que Popper foi um filósofo gigante

Antes de Popper, filosofia da ciência no século XX era um onanismo intelectual de burgueses vienenses e de um aristocrata inglês que discutiam a possibilidade de verificar proposições como “O atual rei da França é careca”. Graças a essa turma, isto é, ao Círculo de Viena e a Bertrand Russell, o aristocrata vienense Ludwig Wittgenstein foi sagrado como grande filósofo – ninguém liga para Wittgenstein fora de círculos beletristas de humanas. Na filosofia da ciência, houve o furacão Popper, que despertou o interesse dos cientistas, e depois dele a disciplina da filosofia da ciência voltou a ser assunto de beletristas e acadêmicos de humanas, ou seja, irrelevante.

Com seu trabalho, Popper fez os cientistas acreditarem que não há teoria científica verdadeira, há teoria científica forte o bastante para ainda não ter sido desmentida pelos fatos. A busca pela verdade passa a ser eterna, com os cientistas pretendendo chegar o mais perto possível da verdade, sem jamais a abarcarem por completo. Assim, se houver uma teoria acerca dos fatos que não possa se revelar falsa em hipótese alguma, essa teoria não será científica, pois é essencial às teorias científicas a possibilidade de refutá-las. Se uma teoria tiver sempre uma explicação para dizer que seus erros não são erros, ela se assemelha à astrologia, que sempre tem um ascendente para explicar por que a pessoa não tem as características do próprio signo, etc. Não é possível provar em hipótese alguma que uma previsão astrológica estava errada – justamente por essa impossibilidade, a astrologia é uma pseudociência. O marxismo desenvolvido após as previsões de Marx se mostrarem falsas é como a astrologia; por isso, é pseudociência. O psicanalista sempre tem razão quanto ao seu cliente: se este aceitar o seu diagnóstico, é evidência de que o psicanalista acertou; mas se o negar, é porque causa do complexo de Édipo ou coisa similar, diagnosticado acertadamente pelo psicanalista. Por isso a psicanálise é pseudociência também. Para ser ciência, é preciso conviver com o risco de errar.

Da física à política

Popper acreditava que o método científico deveria ser estendido à política, e aplicou a ela a sua visão da ciência. Para ele, as sociedades podem ser divididas em abertas e fechadas. Nas primeiras, é possível trocar o dirigente sem derramamento de sangue e promover mudanças por meio da discussão racional. Nas segundas, tais coisas só são possíveis por meio da força. É a oposição entre reforma e revolução. Como as revoluções são indesejáveis por causa de sua sanguinolência, devemos ficar com as sociedades abertas, ou então fazer revoluções somente para estabelecer sociedades abertas.

Popper não faz nenhuma descrição detalhada de como “a sociedade aberta” funciona; ele apenas dá tais critérios para determinar se uma dada sociedade é aberta ou fechada. Por conseguinte, são possíveis várias formas de sociedade, já que uma classificação presume mais de um modelo e não é uma prescrição específica.

No entanto, Popper admite o caráter utópico do seu ideal: nas sociedades abertas, idealmente, os políticos deveriam se gabar dos seus erros em vez dos seus acertos. Descobrindo os próprios erros, os políticos vão, tal como os cientistas popperianos, se aproximando mais e mais da verdade, que é em si mesma inalcançável. O que não pode haver numa sociedade aberta é a censura de ideias. A censura é a arma dos tiranos para impedir o povo (concebido como um punhado de cientistas) de se aproximar da verdade. Assim como nunca estamos de plena posse da Verdade, um governante não deve se assenhorar plenamente do poder. E assim como as teorias científicas devem ser trocadas à medida que outras mais próximas à verdade apareçam, o mesmo se dá com os governantes, que não deixam de ser pensados como se fossem cientistas.

Fatos biográficos – sobrevivência à II Guerra

Esse, pois, foi o mestre que tanto encantou o jovem Soros. Vale mencionar também que ambos têm em comum a luta pela sobrevivência na II Guerra. Soros nasceu em Budapeste, Reino da Hungria, em 1930, num lar judeu não praticante. Como o reino não demoraria a ser conquistado pelos nazistas, testemunhou a luta do seu pai pela sobrevivência da família.

Popper nasceu no Império Austro-Húngaro, em Viena, em 1902, num lar de cristãos novos luteranos. Foi criado como luterano, mas era, etnicamente, judeu. Os nazistas se interessavam pelo critério étnico em detrimento do confessional – chegaram até a buscar freira em convento para incinerar como judia (caso da filósofa Edith Stein, canonizada por João Paulo II). Assim, Popper ficou em apuros quando Hitler anexou a Áustria. Conseguiu fugir com sua esposa para a remota Nova Zelândia, onde arranjou um emprego de professor universitário.

Popper defende a ética cristã na obra A Sociedade aberta e seus inimigos, e toda a sua retórica em prol da abertura liberal contra o fechamento tribal na certa tem um pano de fundo teológico, no qual uma religião aberta a todos os homens (o cristianismo) liberta-os de suas tribos (hebraica inclusa). Lutero estava longe de ser um filossemita, e judeus que se convertessem ao luteranismo sabiam muito bem disso.

Soros também é etnicamente judeu, mas não consegui encontrar nenhuma reflexão religiosa sua, nem mesmo ao tratar de ética (coisa que ele faz em seu livro). Outra semelhança relevante na biografia de ambos é pretenderem ser reconhecidos por suas ideias filosóficas. Mas essa semelhança serve para realçar as diferenças entre suas biografias.

Fatos biográficos – anticomunismo

Popper e Soros são dois anticomunistas. Soros cresceu sob a Cortina de Ferro e, ao que se saiba, nunca foi comunista e sempre gozou de um certo conforto material (segundo conta, seu pai comprou identidades falsas e vendia-as a outros judeus em apuros, além de ajudar alguns que não pudessem pagar). Ele foi à London School of Economics estudar para ser um grande filósofo, criou uma teoria epistemológica que ele acha o máximo e que o ajudou a ganhar um monte de dinheiro no mercado financeiro. Ainda assim, ninguém deu bola para a sua nova teoria; então ele, numa crise de meia idade, resolveu virar filantropo e gastar um monte de dinheiro em ideais políticos mundo afora. Ou seja: brincar com experimentos sociais.

Popper era um pé rapado. Na juventude, era um comunista convicto e chegou a se tornar marceneiro a fim de viver como trabalhador manual a despeito da formação universitária – difícil imaginar, portanto, alguém que ligue menos para dinheiro. A despeito disso (ou por causa disso), seguiu muito interessado em filosofia e ciência. Assim, quando o fenômeno astronômico previsto pela Teoria da Relatividade de Einstein se confirmou, Popper teve um estalo: dentre os grandes nomes da ciência da época – Marx, Freud, Adler e Einstein – só um era capaz de fazer previsão e acertá-la; os demais erravam e contavam com um séquito de adoradores para negar os "supostos" erros por meio de teorias ad hoc. Daí vem a sua filosofia da ciência. Os marxistas eram como os freudianos, não como Einstein. Depois de Marx fazer uma previsão e errar, os marxistas passaram a elaborar teorias para fazer com que Marx estivesse sempre certo, a despeito dos fatos. A partir daí, e talvez com raiva dos Partidos Comunistas durante a vigência do Pacto Molotov-Ribbentrop, Popper se torna um anticomunista.

Fatos biográficos – dois amigos austríacos liberais

Popper tentou expor suas objeções científicas ao Círculo de Viena, mas foi esnobado. Foi na Nova Zelândia que ele teve paz para escrever o catatau A sociedade aberta e seus inimigos, e publicou-a em 1945. A obra foi escrita durante da II Guerra Mundial, e ser um anticomunista antinazista implicava, à época, ser um liberal. Durante a vigência do Molotov-Ribbentrop (1939-1941) a II Guerra opunha o “mundo livre”, capitalista, às ditaduras caudilhescas da Europa, América do Sul e Japão. Após a deflagração da Operação Barbarossa (quando Hitler trai Stalin e invade a URSS), os comunistas passaram para o lado do mundo livre e garantiram a vitória dos Aliados contra o Eixo. O conflito entre o “mundo livre” e a Cortina de Ferro seria postergado para a Guerra Fria – quando o material de liberais da II Guerra ganharia interesse renovado.

Outro liberal austríaco a publicar uma defesa do liberalismo em conjuntura semelhante foi o aristocrata Friedrich von Hayek, primo de Wittgenstein. Em 1944 publica O caminho da servidão, que é uma obra sobre política. Nela, Hayek pretende mostrar que a concentração de poder político e econômico defendida pelo socialismo leva inevitavelmente à servidão, isto é, à perda de liberdade e à escravização dos cidadãos. Ele defende o capitalismo e a democracia na medida em que separam poder político de poder econômico.

No seu livro, Soros defende a separação entre política e economia, mas não atribui essa ideia a Hayek. Ao mesmo tempo, acusa-o de ser o proponente do fundamentalismo de mercado. Em resenha do mesmo livro publicada neste jornal por Rodrigo Constantino, Lucas Berlanza diz que Soros comete um erro ao atribuir o fundamentalismo de mercado a Hayek, pois foi obra de Friedman e sua Escola de Chicago.

É compreensível a ambiguidade. Hayek era um grande crente na harmonia do mercado – mas essa crença não chegava à autorregulação e ao anarquismo, pois ele apoiava a lei antitruste, ao contrário da Escola de Chicago. Hayek era um entusiasta do mercado, mas era também um liberal que temia a concentração do poder econômico, pois o poder econômico concentrado (coisa defendida pelo socialismo) levaria à escravidão.

Hayek, o economista, e Popper, o filósofo, eram muito amigos e se influenciaram mutuamente. Graças à influência do Nobel em economia, Popper é levado à London School of Economics para ser professor. E lá recebe Soros como aluno.

Continua no próximo texto.

Conteúdo editado por: Jônatas Dias Lima

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