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Bruna Frascolla

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Thomas Sowell e as estatísticas racistas

Thomas Sowell. (Foto: Reprodução/YouTube)

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A originalidade só veio a ser reconhecida como valor intelectual na Modernidade. Antes disso, “inovação” era um termo pejorativo, usado em acusações. O Pe. Malebranche, que escrevia na virada do século XVII para o XVIII, insistia para que ciência e religião fossem tratadas de maneira diferentes: na religião deveria valer a autoridade, de modo que inovação e heresia podem ser tidas como sinônimos; na ciência, não. Os antigos deveriam ser criticados livremente, e inovação poderia ser uma coisa boa.

Entre o vício medieval (de considerar a inovação uma coisa má em si mesma) e o vício moderno (de considerá-la boa em si mesma), é evidente que o medieval é mais compreensível. Se a verdade é uma só, os erros possíveis são infinitos. Assim, se faço uma coisa diferente de todo o mundo, há imensas chances de eu estar errada.

Explicação cultural para desigualdades

Por isso devo dizer que fiquei contente ao ver que minha principal hipótese para tradicionalmente haver poucos negros na elite econômica brasileira não é original porque estou ao lado de Sowell, pois em Black Rednecks and White Liberals ele também dá uma explicação cultural para a diferença entre negros e brancos no que concerne ao êxito econômico. A minha hipótese, aventada timidamente num dos meus primeiros artigos para este jornal, é: a cultura brasileira pré-imigração é medieval e anticapitalista; assim, seria mais razoável fazer um corte entre brasileiros antigos, anteriores à imigração, e brasileiros recentes, que partilham da cultura moderna dos imigrantes. Os brasileiros antigos são os pobres; a região brasileira com mais brasileiros antigos é a mais pobre. Os negros são todos brasileiros antigos; seus ancestrais estão aqui desde o tempo da escravidão. Onde há uma montanha de descendentes de imigrantes há riqueza, e o enriquecimento do Centro-Oeste foi concomitante a uma migração de sulistas.

Isso não quer dizer que os brasileiros antigos não façam nada da vida. Seus valores diferentes os levam a empenhar os esforços em outra direção. Se deixarmos a riqueza de lado e resolvermos que a coisa mais importante na vida de um homem é a literatura, encontraremos, na cultura brasileira, um predomínio de mulatos e de nordestinos. Ao mesmo tempo, se olharmos para os vales cheios de alemão entre o nordeste do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, não encontraremos lá grandes coisas, a despeito de a imigração datar do século XIX. Seu enriquecimento não é acompanhado pela preocupação com a memória histórica. E ainda que os colonos ingressem no mundo das letras via universidade, isso não implicou um significativo conhecimento e documentação da história e cultura daquela região por parte da academia brasileira.

Ainda que existam preconceitos contra negros e colonos, o racismo é uma explicação rudimentar demais para ser verdadeira. Assim como não há brasileiros antigos dizendo aos colonos: “Não irás se brilhar na literatura nem dar ares institucionais à preservação de sua memória histórica”, tampouco há um batalhão de brancos dizendo aos negros: “Não irás ser rico!”

Confusão entre cor da pele e cultura

Ao tratar da escravidão na América, Sowell costuma comparar os Estados Unidos ao Brasil. Vieram muito mais negros para o Brasil do que foram para lá. Os negros começaram a chegar às colônias inglesas da América no século XVII, quando elas ainda não eram os Estados Unidos, e quando a Grã-Bretanha ainda tinha distinções culturais muito marcadas entre os ingleses e os povos de origem celta (isto é, os escoceses, galeses e irlandeses). Os celtas eram muito xucros até começarem a sofrerem o processo de anglicização e escolarização no século XVIII. Já na Grã-Bretanha existiam as expressões redneck e cracker para designar culturas de origem celta, e eram já expressões com conotação pejorativa. Para se ter uma ideia, na cultura clânica escocesa era bonito defender a honra sem qualquer consideração pela vida humana. Assim, os escoceses mais xucros achavam bonito não engolir um desaforo besta qualquer e morder fora o nariz do ofensor, ou arrancar-lhe os testículos com as mãos. A falta de pendor para o trabalho regular é mostrado pela escassez de couro, não obstante a abundância de gado e o talento para escalpos. Que os escoceses eram excelentes escalpeladores sabia-se desde o século XVI, quando eles ainda brigavam feio e escalpelavam o desafeto.

As colônias sulinas dos Estados Unidos receberam essas flores de pessoas antes do processo de anglicização. A cultura cracker e redneck atravessou o Atlântico antes de morrer na Europa e deste lado ficou preservada. Chegou a haver pontos dos Estados Unidos já independentes em que a população isolada não sabia falar inglês, mas sabia falar gaélico. E o mesmo lugar que recebeu essa montanha de celta xucro recebeu a maioria dos negros – que ficaram convivendo por séculos com essa cultura e aderiram a ela. Ao cabo, o que se chama de black culture nos Estados Unidos seria a redneck culture, segundo Sowell. A propensão ao alcoolismo, à violência, à dramaticidade, ao desprezo pelos estudos e a uma religiosidade extática, todos atribuídos usualmente à black culture, são, na verdade, traços de uma subcultura celta adotada pelos negros que foram para o Sul dos Estados Unidos. E aconteceu de serem a maioria dos negros.

Uma coisa que Sowell fala, e que é difícil de se ler por aí, é que antes das leis Jim Crow existiam mulatos livres nas colônias do Norte gozando de cidadania e estudando nas mesmas escolas que os brancos. A animosidade contra os negros teria se generalizado durante a II Guerra por causa do êxodo rural rumo aos centros urbanos industriais, nos quais florescia a indústria bélica. Como os poucos negros e mulatos de cultura yankee do Norte tinham o mesmo aspecto físico que as massas negras de cultura redneck recém-chegadas do Sul, os negros todos foram confundidos como uma única cultura. Criou-se uma confusão entre cor da pele e cultura.

Essa confusão é muito mais fácil de ocorrer lá do que cá, já que lá há muito mais brancos do que aqui, que cá há muito mais negros do que lá, e que a miscigenação com índios lá foi muito mais tímida do que cá. Se aqui as mulheres nativas serviam para multiplicar o diminuto contingente de súditos da coroa portuguesa, às colônias inglesas migravam homens e mulheres, sem a generalização da prática da miscigenação. (Mas houve no Sul miscigenação com índios. O aristocrata “white” proprietário de escravos, John Randolph of Roanoke, era descendente da índia Pocahontas.) Lá eles tinham uma massa branca urbana, não-miscigenada, que via chegar massas negras rurais vindas do Sul.

Demografia e malabarismo estatístico

No quadro urbano dos Estados Unidos, existiam os blacks (aí compreendidos os negros, os mulatos mais claros e até o mestiço branco) e os whites (os europeus sem mestiçagem), bem como os rednecks e os não-rednecks. Ser preto ou branco era algo de fundo biológico, ao passo que ser ou não um redneck é algo meramente cultural. Sowell não pensa duas vezes em caracterizar essa cultura como contraproducente. Na sua categorização, existem os black rednecks e os white rednecks.

Tanto os blacks quanto os rednecks são minoritários na população dos Estados Unidos. Por outro lado, a maioria dos blacks são rednecks, ao passo que, do imenso contingente white, apenas uma minoria ínfima é redneck. O branco pobre de origem celta costuma ser chamado de white trash (lixo branco) nos Estados Unidos. Mas como são uma parcela pequena demais dentro do conjunto dos brancos, não há uma confusão entre a cultura do “lixo branco” e a “raça branca”.

E aí abre-se o espaço para criar estatísticas que negligenciem totalmente o caráter cultural das populações dos Estados Unidos e foquem só em raça, colocando os negros como inferiores e os brancos como superiores. Todos os crimes do white trash são diluídos na imensa massa de brancos oriundos de outras culturas, ao passo que todos os crimes dos rednecks ficam concentrados na coluna dos negros.

Um exemplo interessante dessa cegueira cultural das estatísticas é a denúncia de que poucos negros têm negócios. A aversão dos brancos aos vizinhos rednecks acabou gerando bairros negros – os famosos guetos. Neles, misturavam-se os negros do Norte aos recém chegados. Pois bem: dentro desses mesmos bairros, os black rednecks não eram donos dos negócios. Os negros bem sucedidos que tinham comércio ali dentro costumavam ser de origem caribenha.

No Brasil, era comum apontarmos as desigualdades regionais e fazermos um corte entre o Nordeste pobre e o Sudeste rico. Os Estados Unidos preferem racializar, e pouco tocam no relativo subdesenvolvimento dos estados redneck. Agora caminhamos no mesmo sentido de lá, e atribuímos a pobreza do Nordeste à suposta cor negra dos seus habitantes. (Suposta, porque o IBGE transforma pardo em negro.)

Da descrição à prescrição

A cultura não é estática. Segundo Sowell, a prole dos black rednecks estava se aculturando aos estados do Norte, e a taxa de filhos legítimos tendia a se igualar à dos brancos. Houve uma guinada propagandística nos anos sessenta que passou a racializar a cultura, tratando o black como essencialmente redneck. Os descendentes dos celtas ficaram livres para mudar de cultura e progredir na vida. Os negros, não: são artificialmente mantidos nos grilhões de uma cultura ruim graças, em parte, à propaganda dos “white liberals” (progressistas ou esquerdistas brancos). Qualquer tentativa de estudar e trabalhar duro são tachadas como “act as white”, “agir como branco”. O nome disso é racismo.

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