Ouça este conteúdo
Com uma plotagem de povo ao fundo, o velho de barba branca desenterra aquelas figuras de linguagem outrora tão eficazes. Fala da falta de uma refeição como a pior coisa do mundo. Fala dos “eles” que não aguentam ver um operário no poder. Fala que sofreu a maior injustiça jurídica em 500 anos de história. E aqui matamos a charada: nossa história não tem 500, senão 520 anos.
Ele está em algum lugar dos anos 2000, falando exclusivamente para gente que nunca passou fome, cujos antepassados próximos nunca passaram fome e que se impressiona fácil com um (ex) pobre legítimo. Nossa sociedade tradicional sempre idolatrou berço, então alguns cavalheiros tradicionais, que se sentem muito revolucionários, adoram berço pelo avesso, de modo que a infância miserável substitui o sangue azul. Não importava se o fidalgo era honesto; não importa se o ex-pobre é honesto.
Dizia Lula, muito enfático, que a pior coisa no mundo é não ter o feijão e a farinha para dar ao filho no almoço. Qualquer um com um mínimo de senso crítico pode pensar em algo pior que não poder dar feijão e farinha na hora do almoço. É não ter comida para dar por dias a fio. É ver o filho morrer. É saber que o filho morreu, mas nunca encontrar o corpo.
O toque da farinha no feijão é para enfatizar a origem nordestina e comover quatrocentões decadentes. (Em São Paulo, graças à migração maciça, deve ser conhecimento comum que nordestinos costumam comer feijão com farinha, em vez de farofa ou arroz. Eu mesma sou adepta.)
Quanto à maior injustiça jurídica em 500 anos, veja-se que ele sequer foi condenado à morte, como Tiradentes e outros heróis da história brasileira. Nessas horas, o movimento negro não lembra os mulatos enforcados em 1798 na Praça da Piedade, em Salvador. Eles serviram de bodes expiratórios na Conjuração Baiana, que tinha líderes bem-nascidos como Cipriano Barata. Pena branda para o branco do topo do movimento, pena de morte para os mulatos remediados da base. Mas Lula é o maior injustiçado em 500 anos de História. Sendo que nós teremos 521 anos de História em abril.
Nos anos 2000
Mas ele está certo em passar 20 anos falando que temos 500 anos de história. Todo o discurso, saudosista, foi feito para alguém que está lá pelos anos 2000. Alguém que não viu Mensalão, não viu a crise de 2014, não viu Petrolão, não viu a desmoralização do falso Dom Sebastião que encantou as massas. Alguém que não viu Gleisi e Lindbergh garantindo que, se Lula fosse preso, haveria sangue nas ruas, caos social, um Deus-nos-acuda.
E o que houve foi só uma palhaçada regada a cachaça no sindicato de São Bernardo do Campo. Quando o carro saiu transportando o ex-presidente, ouviram-se fogos e xingamentos. Até teve uma claque homicida disposta a derramar o sangue de um desses indivíduos que xingavam. O discurso foi para a Carolina de Chico Buarque: “O tempo passou na janela/ Só Carolina não viu.”
Alexandre Garcia, neste jornal, apontou que Humberto Costa divulgou no Twitter, na véspera da decisão de Fachin, um vídeo com Lula fazendo ginástica ao som de “Tô voltando”, de Chico Buarque . Só que a música da volta foi mesmo “Carolina”, especialmente bonita na voz de Elizeth Cardoso acompanhada por Jacob do Bandolim e Zimbo Trio no finado Canecão.
Existiam dois Lulas em palanque: o piegas, que agradava intelectual, e o despachado, que agradava povão. Antigamente, o Lula piegas falava de pobreza, pois os intelectuais tinham todos aquele jeitão de teólogo da libertação: uma mistureba mística que está mais para fascismo, mas que se diz marxista só porque se enxerga como um guerreiro ao lado dos pobres numa luta contra os ricos gananciosos e venais. Esse negócio de conciliar empresários nacionalistas com sindicatos pelegos é fascismo, não é marxismo. Lula não fala em abolir propriedade privada; fala em usar o Estado para reger a economia, tal como pretenderam Mussolini e Hitler.
Pois bem: já escrevi antes sobre esse nicho confuso da sociedade brasileira, que é o da classe média universitária politizada de formação católica, que desliza entre extrema direita e extrema esquerda. No Estado Novo, integralistas instrumentalizava associações estudantis e a Igreja para lutar contra a ditadura do momento. Depois da desmoralização do fascismo e da ascensão da URSS, toda essa estrutura estudantil e católica passou a se dizer marxista e lutar contra a ditadura do momento, embora nunca tenha mudado de ideia quanto às teses centrais: querem um Estado corporativo anticapitalista que force uma comunhão mística e piegas entre os homens, transformando a terra num Éden 2.0, cheio de amor compulsório.
No discurso (e é discurso; a imprensa anunciou uma entrevista, sendo que entrevistador não havia), Lula falou o beabá do identitarismo, repetiu o credo uspiano da guerra racial e até a tese de que o povo só elegeu Bolsonaro por causa do zap-zap. E falou um monte de besteira que os checadores não checaram, tal como a expulsão do Zé Gotinha por Bolsonaro e a destruição da economia brasileira pela Lava Jato. Tudo se passou como se a única razão para a crise de agora, da Covid-19, fosse a Lava Jato e a falta de gasto estatal. Um delírio.
Quem falou foi o Lula dos intelectuais. Ainda por cima, se meteu a culpar as igrejas evangélicas pela disseminação da Covid-19. Ele, que se elegia com voto evangélico, agora parece mais interessado em apelar para os sentimentos de Contra-Reforma dos leonardos boffes.
Foi um discurso reacionário, que prometia a volta a um passado idílico. Lula encantou por fazer as Carolinas crerem que está ao nosso alcance voltarmos ao tempo em que os pobres eram submissos a letrados empolados, em vez de ouvirem o pastor. Ao tempo em que a vida econômica da sociedade tinha um princípio ordenador centralizado, chamado Estado, personificado por algum amigo dos letrados empolados e pronto para distribuir sinecuras a todos os bem-nascidos ou bem diplomados. Ao tempo em que o sertanejo, isolado e desconfiado, acreditava que o Bolsa Família era condicionado à permanência do PT na presidência.
Mal sabem as Carolinas que lá fora “uma rosa nasceu/ todo mundo sambou/ uma estrela caiu”. A estrela que caiu era vermelha, com as letras P e T. Carolina não viu a mudança de mentalidade ocorrida nesses vinte anos e espera que todos continuem tendo respeito pelos bem-nascidos e pelos diplomados. Respeito esse traduzido em fonte de renda estável e padrão de vida elevado, isento de esforço.
O amor que já não existe
Gostemos ou não, o Brasil tem isso de ungir alguns políticos com o amor do povo. Como os brasileiros são rápidos demais na autodepreciação, o primeiro impulso de muitos será dizer que isso é coisa de gente ignorante e atrasada. Não olham para a letrada, ex-rica e ex-chique Argentina, que tem uma múmia de Perón num mausoléu, muito embora Perón tenha transformado a Argentina em ex-rica. Contemporâneo de Perón foi Vargas, que também era mistificado por brasileiros. Não obstante, Vargas passou. Esquecemo-nos dele. Virou relíquia de letrados.
É interessante que a máquina do PT tenha escolhido interpretar o ato de Fachin como “Lula Livre”. O que Fachin fez foi tornar Lula um potencial candidato. Ele era ficha suja, tornou-se ficha limpa. Mas livre ele já estava. Acontece que ele não é mais amado pelo povo. Quem sai nas ruas e causa comoção popular, agora, é Bolsonaro. Só Deus sabe até quando, mas por ora é Bolsonaro. Cada manifestação de amor popular é documentada pela imprensa, que chama de aglomeração e avalia o uso de máscaras pelos presentes. E Lula, livre? Por onde andou?
Podem dizer que os lulistas são conscientes e que espalhar vírus é coisa de bolsomínion. Quem quiser, que acredite. Aposto que, se houvesse manifestação popular, receberia da imprensa antibolsonarista um tratamento nos moldes do Black Lives Matter: gente consciente, de máscara, se manifestando pelo Bem. Enquanto isso, o povo que saúda Bolsonaro é gado que ouve o mito e não fica em casa.
Quem ganhou esperanças com o discurso de Lula é Carolina: “Carolina/ Nos seus olhos tristes/ Guarda tanto amor/ O amor que já não existe”. O amor agora é pelo Mito.
Longe de mim prever resultado eleitoral em pandemia, com um ano de antecedência e muita água para rolar. O que eu sei é que, mesmo que Lula porventura volte à presidência, o tempo passou, e tempo não volta. Carolina não viu, mas eu vi.