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Os tempos mudam tão rápido, que nem mesmo os clichês bacanas de ontem são compatíveis com os clichês bacanas de hoje. Quem se lembra da palavra “consumismo”? Pode-se dizer que o consumismo era tão malvado nos anos 90 e 2000 quanto o racismo estrutural é na virada dos anos 2010 para os 2020. Àquela época não estávamos familiarizados com a expressão de hoje; hoje a expressão tão usada àquela época sumiu. Mas tanto àquela época como hoje, não sabemos bem o que significa aquele papão de aplicação difusa.

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Quando eu crescia, as professoras falavam de buraco na camada de ozônio e de poluição. Mostrava-se às crianças o tempo que uma garrafa plástica levava para ser decomposta. Aí entrava em cena o consumismo: os homens consomem demais, por isso poluem demais, por isso vão acabar com o planeta. Mas o que era consumir demais? Se o grande problema eram as garrafas plásticas, então qualquer um que fizesse uso de garrafas plásticas era um problema. Todo consumo parecia consumo demais e nenhuma solução pontual era apontada. Por exemplo: se as garrafas plásticas eram um problema grave, por que não vemos material de limpeza ser vendido em bombas às quais levássemos embalagens de longa duração? Só compramos materiais de limpeza em garrafas plásticas; então, a menos que deixemos a casa suja, estaremos incorrendo em consumismo e acabando com o planeta.

Ao cabo, a crítica ao consumismo parece ter sido, antes de tudo, um mecanismo de desmoralização. É como se nos dissessem, desde crianças, que nossa existência pesa; e que somos um câncer no mundo.

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Papão real

No entanto, o consumismo parece ter feito recentemente a mesma trajetória que o racismo estrutural faz hoje: passar de fantasia importada a realidade nacional. Primeiro a propaganda do racismo estrutural tem esse efeito desmoralizador sobre as crianças e os ingênuos brancos, afirmando que nada podem fazer porque são racistas de nascença. O racismo está em toda parte, e o mero fato de ser olhado de um jeito diferente já faz de um branco um partícipe do racismo estrutural. Quer queira, quer não, ele é um peso no mundo. Com base nisso, cria-se uma burocracia – seja empresarial, seja estatal – baseada em classificações raciais que visa ao tratamento desigual das pessoas, punindo ou premiando conforme a raça. Uma vez criada, tem-se uma coisa coisa real que merece ser chamada de racismo estrutural. A crítica de um fantasioso racismo estrutural precede a criação de um racismo estrutural.

Lembrei-me, então, do velho papão do consumismo ao ser perturbada por mil ofertas de descontos incríveis para coisas que não quero. O motivo, claro, é a Black Friday. Como o fato de o nome ser em inglês dá a entender, é uma coisa peculiar dos Estados Unidos que está entre nós há alguns poucos anos – na certa, menos de dez.

Antes disso, tínhamos ciência da Black Friday por imagens da TV que mostravam norte-americanos esperando as portas das lojas se abrirem para então correrem ensandecidos para agarrar produtos. Ninguém achava aquilo bonito, nem uma coisa digna de ser imitada. Pense bem: que tipo de coisas faria você, leitor, ficar plantado esperando, para depois sair correndo feito um maluco pra pegá-las? Você está passando por necessidades? Eu só me imagino ansiosa e correndo daquele jeito num cenário de guerra. Corre a notícia de que a Cruz Vermelha vai distribuir alimentos e eu, que estou há dias sem comer, fico desesperada esperando, quem sabe com a incumbência de garantir comida para mim e para familiares mais frágeis. Aí, sim, se justifica uma ansiedade como aquela que saía no jornal. Mas claramente não era esse o caso. As pessoas iam lá porque tinham dinheiro sobrando, comprar coisas que elas não planejaram comprar, e iam atrás exclusivamente do preço barato. A ideia da Black Friday é você comprar por causa do preço, e não por causa da coisa.

Aí está algo digno de ser chamado de consumismo e tratado como bicho papão.

Prazer estranho

Hoje nos espantamos muito olhando para as massas eufóricas de regimes totalitários. Hoje sabemos, também, que a propaganda foi uma peça-chave para alcançar esse resultado. Ainda assim, eu acho menos compreensível essa multidão nas portas das lojas do que as multidões que se reúnem para saudar um Duce. Vejam bem: a pessoa que acredita na propaganda de um regime totalitário acredita que o Duce é a pessoa capaz de dar um futuro grandioso à própria nação. Todo ser humano normal quer que sua comunidade política – seja ela um país, um bairro ou uma tribo – tenha um futuro bom, porque o futuro do lugar em que vivemos é, também, o nosso futuro e o futuro das pessoas às quais queremos bem. Mas e a pessoa que vai enfeitiçada para a porta de uma loja? Em que ela crê? Por que um menor preço causa tanta euforia?

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Não se trata de música (músicos têm uma legião de fãs loucos), nem de qualquer forma de arte, nem de esporte. Trata-se de uma ideia abstrata: comprar o máximo de coisas abaixo do preço. Depois das compras, a pessoa fica com uma fatura do cartão gorda olhando para a tralha acumulada. De repente, o objeto é apenas um objeto, e não um preço sensacional. E aí ele perdeu o encanto.

Parece ser um sentimento parecido com o que guia os comilões compulsivos. A diferença é que os comilões ao menos têm algo de natural para explicar seu movimento: as papilas gustativas. Já o prazer do comprador compulsivo é inteiramente artificial.

Mudança na paisagem

Dos tempos em que víamos a Black Friday na TV para cá, as coisas mudaram. Fica difícil sabermos quantos dos brasileiros aderiram à mania consumista olhando para as portas das lojas, porque as lojas agora não precisam de portas para vender. Em vez disso, há as gigantes do varejo online, como a Amazon (estrangeira pioneira) e o Magazine Luiza (nacional). Assim, sem precisar se prestar ao papelão de ir para a porta da loja e disputar corridas, o viciado pode pegar o seu smartphone e ir clicando nas ofertas incríveis de coisas desnecessárias. Tal como a obesa que para no drive-thru do McDonald's e se entope de batatas fritas na própria alcova, afastada dos olhos do público, o consumista sai clicando os diversos botões de “comprar em um clique” e castiga o cartão de crédito. Só quem vai saber dos excessos é o entregador.

Ou não. Poderia ser assim, mas temos redes sociais. No Instagram, o comprador compulsivo pode ostentar as coisas que comprou na Black Friday – na verdade, vai se sentir instado a fazer isso. Pois no Instagram as pessoas ficam fotografando suas vidas maravilhosas, e parte de suas vidas maravilhosas é ostentar bens de consumo. Então o endividado terá alguma compensação por suas tranqueiras recém-adquiridas ostentando-as nas redes sociais. Ao fazer isto, passará para os seus contatos a impressão de que vive uma situação financeira muito mais confortável do que a realidade – e os tais contatos, a seu turno, também se endividam para ostentar. No fim, há um blefe generalizado no qual todo o mundo se sente pobre porque não sabe que todo o mundo está endividado.

E o meio ambiente?

Na verdade, o conceito de “consumismo” data de 1899, quando apareceu no livro A teoria da classe ociosa, de Thorstein Veblen (1857 - 1929), um cientista social nascido nos Estados Unidos, filho de imigrantes noruegueses. Segundo notava o homem, já naquela época surgia o fenômeno novo de as massas comprarem objetos com o fito de se distinguir, e não por causa da utilidade desse objeto. Daí resultava uma montanha de desperdício.

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A compra por compulsão é um fenômeno diferente da compra por status, mas ambos estão associados e encontraram no Instagram um fermento poderoso. Você compra por compulsão objetos de marca que estão com um preço incrível e vai ostentar no Instagram. Não peça a nenhum fã da Apple para explicar por que o relógio da marca é tão importante; o mero fato de ser Apple deveria ser explicação suficiente. Para piorar, sempre há um Apple novo, razão pela qual é urgente jogar fora um objeto que funciona e trocá-lo pela versão aprimorada, mesmo que você nem saiba quais aprimoramentos são esses. Se você não sabe quais aprimoramentos são esses, não tem nenhum motivo para crer que eles serão úteis para a sua vida. E para piorar mais ainda, toda essa quinquilharia eletro-eletrônica é muito mais poluente do que qualquer garrafa PET usada para me assustar quando eu estava na escola. Como os ecologistas mudaram!

O consumismo não só sumiu do vocabulário, como o consumo é constantemente promovido como um mecanismo de “empoderamento”. Que a “mulher negra” faça dez abortos “seguros”, vire CEO e faça o que realmente importa: comprar roupas de grife e tirar selfies com o iPhone de última geração. E a preocupação com a poluição? Aparentemente, não é nada que não se possa comprar. O problema não são os iPhones e a produção de supérfluos, mas sim os pecuaristas que insistem em ter vacas que soltam pum e os agricultores que insistem em matar as girafas da Amazônia para plantar soja.

O futuro radiante que nos aguarda é trabalhar muito para comprar iPhones e pagar créditos de carbono.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]