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Me parece que a Modernidade inaugurou, no Ocidente, um jeito novo de avaliar as sociedades. Quando alguém diz “O país A é melhor que o país B”, a frase é entendida tacitamente como “O país A é mais rico que o país B”. Alguns irão mascarar esse pensamento dizendo que o importante, mesmo, é a educação – mas para justificar isso logo apontarão os reflexos econômicos que a educação tem, como no caso dos Tigres Asiáticos. As pessoas dificilmente expressam, mas a ideia é que a economia é a medida de uma sociedade boa ou ruim. Então se você tiver mil doenças e depender de medicamentos que a sociedade (ou você mesmo) é capaz de bancar, a sua sociedade será considerada melhor do que uma outra em que você não teria nem os problemas, nem o dinheiro para medicá-los.

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Na Bíblia, quando se diz que Sodoma e Gomorra são cidades piores do que as demais, entende-se não que sejam mais pobres, nem menos escolarizadas, senão que seus habitantes são mais imorais. O Ocidente viveu por milênios convivendo com esse critério moral para julgar sociedades. Com a elevação da Economia à condição de panaceia, acabamos jogando a moralidade fora.

Mas moralidade é um assunto divisivo demais, já que as sociedades ocidentais são talhadas de modo a respeitar um leque amplo de moralidades. Eu queria propor um indicador não-econômico para avaliar as sociedades em torno do qual é mais fácil construir um consenso: saúde mental. Ao meu ver, jamais deveríamos dizer que uma sociedade cheia de doenças mentais é boa, por mais rica e escolarizada que seja essa sociedade.

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Dados escassos

Ontem vimos aqui um mapinha brasileiro da ocorrência de suicídio por estados da federação. Chama a atenção que um estado pobre e subdesenvolvido como o Maranhão tenha uma taxa de suicídios muito melhor do que um estado rico e desenvolvido como Santa Catarina. Também não podemos dizer que pobreza implica menos suicídios, já que a taxa do Rio de Janeiro é melhor do que a de Roraima.

Mas o suicídio é uma das possíveis consequências de doenças mentais. Um índice que eu gostaria de ver é o de gente medicada para problemas mentais: uma demografia do Rivotril e dos antidepressivos.

Um estudo interessante que encontrei é focado no estado do Rio de Janeiro, que aponta uma correlação entre maior IDH e mais uso de Rivotril. No entanto, o uso de Rivotril não é só coisa de rico. Outro estudo, feito numa farmácia comunitária no interior do Ceará, conseguiu delinear o seguinte perfil: mulher, idosa, pouco escolarizada, pobre e pegou a receita com algum médico não-psiquiatra. Ambos os estudos alertam para o problema do mau uso do remédio.

Doença mental induzida?

Tradicionalmente, as pessoas não gostam de revelar que têm uma doença mental, e rejeitam a ideia de ir a um psiquiatra porque não querem parecer malucas. É claro que isto pode ter efeitos danosos, como vimos na história da suicidóloga mencionada no texto de ontem. Doenças mentais podem ter as consequências mais nefastas quando não tratadas. Por outro lado, me parece que a campanha para quebrar esse tabu passou do ponto, e hoje é completamente normal, para um certo círculo social escolarizado, desfiar um rosário de doenças mentais e viver medicado. Eu acho que isso é uma doença mental autoinduzida, e que isso só pegou por vivermos numa época de maus valores.

Vou usar uma comparação com o corpo para deixar o meu pensamento claro. Um homem que precisa de cadeira de rodas não deve se envergonhar disso. Agora imaginemos que ortopedistas se empenhem em transformar cadeiras de rodas em mania nacional. Cadeira de rodas é recomendada para quem deu uma topada com o mindinho. O povo acha uma beleza passar o dia sentado e gosta de pedir aos outros que empurrem a sua cadeira. O resultado disso seria um malefício às próprias pernas e uma dependência real dos outros.

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Sim, há cadeirantes independentes que conseguem fazer tudo sozinhos. Do mesmo jeito, há gente com problemas mentais que conquista uma vida autônoma. Mas o que vemos com a propaganda contra a “psicofobia” é a apologia da fraqueza e da falta de autonomia. Sentar no colinho do terapeuta, chorar e criar dependência de medicamentos é vendido como bravura.

Minha percepção pessoal

À falta de demografia, vou usar minha percepção pessoal para traçar um perfil do medicado. Foi depois de eu entrar na universidade – portanto, a partir de 2008 – que eu me deparei pela primeira vez com algum amigo que não tinha problemas em dizer que tomava antidepressivos. Ele tem a mesma idade que eu (31) e havia se assumido gay. Tudo bem que, em 2008, se assumir gay não era tão comum quanto hoje. Mas ainda assim eu me lembro de ter ficado boquiaberta com a coisa do antidepressivo, e não com ele ter se assumido gay. À época eu inferi que foi um trauma excepcional para ele. Hoje eu já infiro outra coisa: a praxe das famílias de classe média alta é levar os problemáticos para um psicólogo, os psicólogos são aquela belezura que nós vimos no artigo de ontem e, vendo um gay, dizem OH e mandam para um psiquiatra, que também vai ver um gay, dizer OH e receitar um monte de remédio para essa vítima da homofobia estrutural. O laboratório agradece.

De lá para cá, fui assimilando a ideia de que todo mundo da minha idade e classe social, menos eu, toma remédio psiquiátrico. Pouco antes da pandemia, porém, tomei outro susto. Chamei para tomar uma cerveja um outro amigo gay, um pouco mais novo do que eu, e ele respondeu com muita naturalidade que não poderia sair àquele dia porque tinha mudado as doses dos remédios psiquiátricos. O meu espanto foi com a naturalidade.

Eu tive poucos amigos mais novos do que eu. De três, dois eram gays com diagnóstico de autismo leve e pelo menos um tomava remédios psiquiátricos. O único que não tinha diagnóstico psiquiátrico (ou, se tinha, tinha brios suficientes para esconder) era o filho de uma gari solteira.

Entorpecimento desconhecido

Nós temos lido sobre aumento de venda de Rivotril no Brasil. Por que a população de repente resolveu que viver sedada é uma boa ideia? Eu consigo imaginar pelo menos um motivo para isso, que é a má qualidade dos profissionais formados pelas faculdades de psicologia. Ninguém se trata, todo mundo se medica. Mas quais as consequências disso? Que eu saiba, ninguém pesquisa, ou, se pesquisa, ninguém se empenha em expô-las à população.

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Faz sentido puxar os cabelos por causa do uso recreativo de drogas enquanto a ideia de uma vida sedada é socialmente aceita sem sequer ser discutida? Ao meu ver, o ideal de viver à base de medicamentos controlados não é muito diferente do ideal de viver em Cracolândia. Ambos são a normalização do entorpecimento. Em toda a história da humanidade, o entorpecimento deliberado esteve presente. Mas aquilo que era limitado a festas e a cerimônias religiosas de repente virou um ideal de normalidade. Isso não é mudança pequena.