É muito difícil saber o que está acontecendo no Brasil agora. A principal razão para isso é a segmentação de público que as redes proporcionam. Vemos isso com os adolescentes: hoje existem ícones com milhões de fãs que são completos anônimos para a maioria da sociedade. Uma coisa era o adolescente que via TV na sala, sem privacidade. Outra é o adolescente que vê de tudo na palma da mão, com privacidade. Nós selecionamos o que queremos ver; e vários de nós selecionamos as mesmas coisas, formando comunidades online sem que a nossa família saiba. Acontece com influencers de adolescentes. E acontece com a política também.
Como eu não tenho Instagram, dependo de terceiros para descobrir que um perfil com mais de dez mil seguidores estava ainda esta terça dizendo que a presidência de Lula é uma farsa e Heleno está no comando. Eu não sei qual é o perfil do manifestante que se desloca quilômetros de sua terra natal e efetivamente fica acampado na porta do Quartel em Brasília. O máximo que conheço é o manifestante que, antes da posse, ia para a porta do quartel em sua própria cidade para pedir o artigo 142 — muito embora o 142 precisasse ser invocado por Bolsonaro. Temos então de lidar com a possibilidade de os manifestantes acampados em Brasília serem um monte de doidos.
Mas mesmo que essa possibilidade se confirmasse, isso não seria muito instrutivo. O mundo também é dos desajustados; os desajustados podem estar certos quanto a alguma coisa. Se pretendêssemos limpar a política dos desajustados, o mundo se tornaria a Casa Verde de Simão Bacamarte.
A situação dos quartéis estava da seguinte maneira: em meio à escalada censória do STF, os comandantes das três Forças Armadas divulgaram uma nota em que se comprometiam com o direito à livre manifestação. O resultado foi que as portas dos quartéis se transformaram em áreas seguras para manifestações antipetistas. Há muito se temia uma tentativa de replicar o ataque ao Capitólio no Brasil. Com os manifestantes concentrados na porta do quartel, eles ficavam às vistas dos militares ao tempo que ficavam distantes do “Capitólio”. Mas quanto tempo essa paz poderia durar?
O que não fazer
Voltemos à possibilidade de haver muitos desajustados no acampamento. (Se é que o acampamento preexistente foi mesmo o problema, e não os milhares de recém-chegados dos tais cem ônibus que apareceram no final de semana.) Não bastaria Heleno aparecer para desmobilizar e negar tudo, pois na verdade seria um sósia e o verdadeiro Heleno estaria noutro lugar. Poder-se-ia dizer que o verdadeiro Heleno estava refém nos porões do STF aguardando o resgate dos patriotas. Nesse caso — e em muitos outros similares que poderiam ocorrer quando se reúne gente doida — a coisa escalaria. Escalando, caberia às forças policiais do Distrito Federal impedir que depredassem os prédios públicos, bem como o patrimônio histórico e artístico ali dentro. Mas a coisa escalou e as autoridades — federais e distritais — tinham ido comprar cigarro e nunca mais voltado. Estranho.
De todo modo, era certo que ali estava um barril de pólvora sob cuidados paliativos do Exército. A única alternativa proposta era ilegal, que era evacuar o acampamento na marra. Se é difícil dizer o que poderia ser feito, é bem fácil dizer o que não deveria ser feito: alimentar o desequilíbrio mental preexistente, alimentando pânico por meio de hipérboles.
O deputado eleito Gustavo Gayer alega que há em Brasília “campos de concentração nazistas”. Não consta que haja câmaras de gás em Brasília. Sem “mas”. No mesmo dia, o militante Pedro Pôncio vai além: “Auschwitz já é realidade no Brasil, do jeito que estão colocando tudo na conta do AGRO o próximo capítulo será Holodomor!" Ele tem 118 mil seguidores no Twitter e 141 mil no Instagram.
Voltemos a Gayer, com seus 480 mil seguidores no Twitter, 569 mil no Instagram e 1,13 milhão no Youtube. Ele anunciou que “O sistema se prepara para fechar um dos maiores meios de comunicação do Brasil e criminalizar jornalistas que se atrevem a falar o que pensam”. Depois, que “Em breve a imprensa convencerá a parcela dos imbecilizados que matar quem pensa diferente é vital para a proteção dessa nova 'democracia'.” Divulgou-se muito no Instagram uma “nota de falecimento” com a foto de uma adorável velhinha de chapéu que morrera no “campo de concentração”. No fim das contas, a velhinha era de um banco de imagens e não havia morrido ninguém. O boato correu solto por horas antes de ser desmentido pela PF. E sabe-se lá a quantos o desmentido chegou.
Eu vi tudo isso sem pertencer a esse nicho mais exaltado da direita e sem ter Instagram (que parece ser a rede favorita desse público). Imaginem a que material não são expostas as pessoas desse nicho. E agora considerem que elas acreditam em tudo. Isto é a receita para causar desespero. O que pessoas desesperadas fazem?
Do lado de lá, paixão de guerra civil
Há quem diga que os “patriotas” envenenados pelas redes sociais são uns coitados e massa de manobra. Eu concordo e discordo. Concordo porque é verdade, mas discordo porque não é a história toda. Nos tempos digitais, você tem poder de escolher o conteúdo consumido. Essas pessoas escolheram se deixar doutrinar. Têm alguma paixão mórbida que é compensada por esses influencers, e tais pessoas se deixam levar.
Isso não é nem um pouco diferente do que aconteceu na esquerda a partir de 2016. Os que riem do “só mais 72 horas” não podem falar nada dos que esperaram uma ditadura nazifascista desde quando Temer virou presidente. A saúde mental de pessoas do meu convívio foi para as cucuias naquela época e nunca mais voltou. A cada semana, de 2016 a 2022, havia um motivo para acreditarem que era o fim do mundo. Daí eles ficam nas redes sociais disseminando pânico e recebendo likes em troca. A vida deles vira isso.
E como estão os loucos da esquerda agora? Pregando guerra civil. Logo após o quebra-quebra do domingo, manifestações “em defesa da democracia” foram marcadas. Circula em redes sociais um vídeo de Boulos se inflamando contra Tarcísio; no Twitter, digitando "guerra civil", muito se vê um print de Janones respondendo aos seguidores que “entre uma guerra civil e uma ditadura, escolho a primeira opção”. O seguidor tinha contestado a ideia de convocar uma manifestação.
“Sem anistia” X “Anistia geral, ampla e irrestrita”
No Largo de São Francisco, dentro da tradicional Faculdade de Direito da USP, pode-se ver uma multidão gritando “Sem anistia”. O que é um baita contraste com os esquerdistas de 30 anos atrás, que clamavam por “anistia ampla, geral e irrestrita”. E não se diga que era apenas por os esquerdistas estarem em baixa à época da campanha. Em 2010, pleno governo Lula II, o STF julgou um pedido da OAB para rever a Lei da Anistia (permitindo a punição de torturadores) e indeferiu. Renderam manchetes as lágrimas do ministro Eros Grau, um ex-comunista preso e torturado pelo regime que foi o relator da decisão e defendeu, com sucesso, a manutenção da lei sem alterações. Segundo a matéria da Folha, a cúpula do governo Lula estava rachada e ele não se manifestou sobre o assunto.
Creio que a conversão do esquerdista médio nessa coisa psiquiátrica tenha se iniciado no governo Dilma. Ali, inclusive, ocorreu a Comissão da Verdade, que não tinha a menor intenção de neutralidade, nem de respeitar a Anistia. A Comissão foi aberta no finzinho do governo Lula (novembro de 2012), na certa só por causa da garantia jurídica dada pelo STF, e se transformou num circo midiático com Dilma.
A esquerda — mesmo petista — já foi muito melhor do que é hoje. E a direita, pelo visto, vai pelo mesmo caminho. O vício em redes sociais explica isso mais do que qualquer reviravolta ideológica.